TEATRO

 
Farsa de Inês Pereira
GIL VICENTE
 

(Entra Lianor Vaz)

LIANOR
Jesu a que me eu encomendo! Quanta cousa que se faz!

MÃE
Lianor Vaz, que é isso?

LIANOR
Venho eu, mana, amarela?

MÃE
Mais ruiva que uma panela.

LIANOR
Não sei como tenho siso! Jesu! Jesu! que farei? Não sei se me vá a el-Rei, Se me vá ao Cardeal.

MÃE
Como? e tamanho é o mal?

LIANOR
Tamanho? eu to direi:

Vinha agora pereli Ó redor da minha vinha, E hum clérigo, mana minha, Pardeos, lançou mão de mi; Não me podia valer Diz que havia de saber S'era eu fêmea, se macho.

MÃE
Hui! seria algum muchacho, Que brincava por prazer?

LIANOR
Si, muchacho sobejava Era hum zote tamanhouço! Eu andava no retouço, Tão rouca que não falava. Quando o vi pegar comigo, Que m'achei naquele p'rigo: - Assolverei! - não assolverás! -Tomarei! - não tomarás! - Jesu! homem, qu'has contigo?

- Irmã, eu te assolverei Co breviairo de Braga.

- Que breviairo, ou que praga! Que não quero: aqui d'el-Rei! - Quando viu revolta a voda, Foi e esfarrapou-me toda O cabeção da camisa.

MÃE
Assi me fez dessa guisa. Outro, no tempo da poda.

Eu cuidei que era jogo, E ele... dai-o vós ao fogo! Tomou-me tamanho riso, Riso em todo meu siso, E ele leixou-me logo.

LIANOR
Si, agora, eramá, Também eu me ria cá Das cousas que me dizia: Chamava-me «luz do dia». - «Nunca teu olho verá!» -

Se estivera de maneira Sem ser rouca, bradar'eu; Mas logo m'o demo deu Catarrão e peitogueira, Cócegas e cor de rir, E coxa pera fugir, E fraca pera vencer: Porém pude-me valer Sem me ninguém acudir...

O demo (e não pode al ser) Se chantou no corpo dele.

MÃE
Mana, conhecia-te ele?

LIANOR
Mas queria-me conhecer!

MÃE
Vistes vós tamanho mal?

LIANOR
Eu m'irei ao Cardeal, E far-lhe-ei assi mesura, E contar lhe-ei a aventura Que achei no meu olival.

MÃE
Não estás tu arranhada, De te carpir, nas queixadas?

LIANOR
Eu tenho as unhas cortadas, E mais estou tosquiada: E mais pera que era isso? E mais pera que é o siso? E mais no meio da requesta Veio hum homem de hüa besta, Que em vê-lo vi o p'raíso,

E soltou-me, porque vinha Bem contra sua vontade. Porém, a falar a verdade, Já eu andava cansadinha: Não me valia rogar Nem me valia chamar: - «Aque de Vasco de Fois, Acudi-me, como sois!» E ele... senão pegar:

- Mais mansa, Lianor Vaz, Assi Deus te faça santa. - Trama te dê na garganta! Como! isto assi se faz? - Isto não revela nada... - Tu não vês que são casada?

MÃE
Deras-lhe, má hora, boa, E mordera-lo na coroa.

LIANOR
Assi! fora excomungada.

Não lhe dera um empuxão, Porque sou tão maviosa, Que é cousa maravilhosa. E esta é a concrusão. Leixemos isto. Eu venho Com grande amor que vos tenho, Porque diz o exemplo antigo Que a amiga e bom amigo Mais aquenta que o bom lenho.

 
Farsa de Inês Pereira
>>>>>>>>>>Inês está concertada Pera casar com alguém?
 
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