Há algures uma cidade interrompida onde a luz
já se vai perdendo prostrada entre as âncoras
como estiletes arejados enjaulados nas palavras, do
deves ir pela tarde mágica das trovoadas ávidas
quando Cascais vai morrendo um pouco menos
apesar de o miolo da carne infindável ser sangue
emergindo como fungos atiçados junto à pele
em ciclos de intempéries e migrações filicídias,
vai procurá-lo nos jardins embora não te fale enxutas
(esquecerás que transportas o contágio das dores
e as manhãs ressuscitarão secas sobre os espigões
ao longo das vozes aguçadas a cidade coagulada
ardendo no éter da asma sob o ritual dos êmbolos),
pergunta na praça das súplicas enxutas dos velhos
por aquele homem que menstruou a sílaba nua
quando na cidade passava o ar odorífero das ilhas
e que lutou nos campos da cal contra as cobras
para que a escassa estria ainda se ouça torrencial,
no absurdo da busca da casa do espectro da areia
habita a transparência materna dos últimos dias
senta-te sob os salgueiros com a cabeça inclinada
ouve o vento e cheira as entranhas certas da morte
o corpo estilhaçando-se em matizadas direcções,
pára e não digas nada ao ouvido das nascentes
(enquanto escutas as patas frágeis da magnólia
bebe a cidade pelo sexo aberto das fêmeas azuis
guelras por onde resfolega toda a luz preambular
como se fosse a redentora faísca do corpo vegetal),
aí,junto à água o engenho das bigornas brancas
o fogo das mãos sagazes ardendo como ofício puro
casulo entre as bilhas onde habita Herberto Helder.
In, O Arquipélago do espanto (inédito) |