José Régio foi uma das personalidades que apoiou o General Norton de Matos na fase de ditadura mitigada a que correspondeu o período da sua candidatura à Presidência da República. Planeando ir a Beja ao comício que o candidato aí realizaria em 30 de Janeiro de 1949, " uma ocorrência inesperada e dolorosa impedirá essa viagem. Francisco Bugalho morre em Castelo de Vide no dia 29, e José Régio vai acompanhar o corpo do camarada das lides presencistas até à sua última morada. A amizade sobrepôs-se ao ardor - se por acaso o havia - da luta politica." .
Para Cristóvam Pavia foi um golpe duríssimo. Mais do que um modelo, seu pai era para si o garante da permanência da sua infância, pelo que o jovem poeta se sentiu como um garoto desamparado e obrigado, em consequência, a assumir a sua "situação de adulto". O braço forte do pai já não mais o poderia amparar.
Aquele que se pensa ser o primeiro poema de Cristóvam Pavia escrito após esse trágico acontecimento possui marginalmente uma nota dolorosa: "Para ser lido muito devagar". Chama-se "Écloga": "Na folha bailada, / levada / no vento, / vai meu pensamento. / Na cinza dolida, /espargida / pelo rio, / o meu olhar frio.../ E no teu sorriso / da mais lisa / quietação, / o meu coração.". Cito António Luís Moita: " Francisco Bugalho (que intuíra, num poema escrito anteriormente, vir a chegar, sem dar por isso, ao fim, sem viver o que quis) morrerá pouco tempo depois de ter escrito Reverdecer . Mas a sua voz, ao calar-se, não fica de facto silenciosa. Outra, dela nascida, vai iniciar uma rápida e dolorosa ascensão, até atingir, nos seus melhores momentos - como afirma José Bento - 'a mais funda expressão mística da poesia portuguesa da segunda metade do século' ." .
António Manuel Couto Viana, que com David Mourão-Ferreira e Luís de Macedo dirigiu a revista Távola Redonda (1950-54; 20 números) onde Cristóvam Pavia colaborou, dá o seguinte retrato do poeta, um ano depois: "Tinha então dezasseis anos (menos 10 do que eu), era alto e espesso, com uma face menineira onde um farto buço aloirado destoava. Os olhos, límpidos, escondiam-se por detrás dumas lentes grossas. [...] Vestia de luto e, na lapela do casaco, exibia um distintivo da Causa Monárquica. Falava com frases curtas, rápidas, quase com brusquidão, num atropelo de tímido. Olhava fixo, olhos nos olhos, acenando, violentamente, com a cabeça, a uma concordância ou a uma negativa." . E mais adiante, ainda: " Apesar da sua poesia adulta (adulta no rigor com que se estreitam fundo e forma), Cristóvam não passava, nessa época (e por quanto tempo ainda?) de um adolescente." . É o próprio Cristóvam Pavia que conta a A.M. Couto Viana a procura do estado de pureza, a busca insistente da infância: "Sentia que o menino que fui estava irremediavelmente morto, sentia uma grande saudade e ao mesmo tempo uma pena enorme - é o único morto a quem ninguém põe flores, o único de quem ninguém se lembrava, nem a mãe." . Na continuação deste seu estado de espírito, surge o seu magnifico "Réquiem", dedicado ao menino que habitava em si - e que continuaria a habitar.
No início da década de 50 os contactos com António Luís Moita intensificaram-se e aprofundaram-se. Este poeta, conjuntamente com António Ramos Rosa, Raul de Carvalho, Luís Amaro e José Terra tinha fundado em 1951 a revista Árvore (1951-53; 4 números) - a cujo titulo tiveram de acrescentar "folha de poesia", por o regime salazarista não permitir "a publicação de colectâneas de versos ou prosas sob a designação de revistas" . Cristóvam Pavia colaborou nessa revista, levado pela mão de António Luís Moita. Nesse mesmo ano, este editou o seu livro Rumor, aparecido sob a chancela das "Edições Árvore". O seu poema Rumor : "Ah, que não venham lúcidos, falar/ localizar a fonte da torrente.../ como podem sentir que há-de ser mar / esta indizível, trémula nascente?/ Como podem sentir que há-de ser mar/ este indizível, trémulo perfil?/ Ah, que não venham lúcidos falar.../ Penso Dezembro quando canto Abril.".
Os contactos entre os dois poetas ganharam maior intimidade no Verão de 1951: “As formais visitas de família - que tinham sempre lugar em Castelo de Vide - serviram-me de pretexto para a aproximação. Eu mal lhe conhecia os versos; mas adivinhava, naquele adolescente tímido, sempre fugitivo, um ser invulgarmente sensível. Por gratidão à memória do pai, estendi a mão ao filho. E ele acabou por aceitá-la, estreitando-a na sua. Tinha, nessa altura, 17 anos e eu 25. A amizade que ligara nossos pais iria - como veio a acontecer - apadrinhar a nossa, prosseguir em nós. E, como era tradicional, cimentar-se nas férias." .
Este estreitar de laços tinha muitas vezes tradução em longas caminhadas conjuntas pelos contrafortes da Serra de S. Mamede, após o que os dois poetas conversavam sobre tudo um pouco. Contudo, quando a conversa tocava o tema "Cristóvam Pavia", este, sempre tímido e reservado, defendia-se, aflito: "Logo escrevo e digo-lhe tudo!". Era através dessas epistolas - cartas e postais - que Cristóvam Pavia deixava escapar um que outro projecto, realizações ou estados de espírito. Estes, ora pendiam para uma salutar alegria ora para a tristeza profunda, numa rápida e desconcertante alternância de humores."Eis a minha Vida: / Um sorriso entre lágrimas.../ Uma lágrima entre sorrisos.../ E a Poesia pairando sobre tudo!", como ele mesmo um dia afirmou num poema dedicado a David Mourão-Ferreira. Na vida desse "poeta de fasto talento e nefasto signo" como lhe chamou João Gaspar Simões, uma das maiores alegrias foi um filme que certo dia viu em Lisboa, intitulado “O Retrato de Jennie, "a coisa mais maravilhosa que conheço". A película, com Jennifer Jones, Joseph Cotten e Lilian Gish, entre outros, é - resumidamente - a história de um jovem pintor que encontra uma rapariga de 13-14 anos, pela qual se apaixona. Contudo, se a moça umas vezes lhe parece ser uma realidade, noutras parece-lhe ser um sonho, nomeadamente porque nalgumas semanas envelhece vários anos, tornando-se uma mulher. Este tema, tão caro Cristóvam Pavia por coincidir com um problema pessoal de amor escondido, movendo-se portanto entre o que é e o que não é, entre a realidade e o sonho - que se expressaria também na sua poesia, de forma nada sensual mas antes reflexo de um "amor todo alma" - fascinara este eterno menino, ainda mais feliz quando Sebastião da Gama, poeta que muito admirava, expressou opinião idêntica à sua em relação ao filme. No entanto e ao contrário do poeta de Estremoz, o jovem "Chico" António nunca encontrou aquela pessoa que lhe "enchesse a vida" (sic), como ele desejaria. Durante esse período de estreitas relações com António Luís Moita, Cristóvam Pavia matriculou-se na Faculdade de Direito de Lisboa. Certamente muito pouco identificado com a temática do curso, o seu espírito dirigia-se continuamente para as planícies tão suas. O poema Planície ("Das folhas dos lameiros amarelos, / Da baixa neblina gotejante, / O manso sortilégio veio chegando.../ E vós, Amigos, vós julgais-me aqui ") tem a indicação marginal "Lisboa, Faculdade de Direito, dia 9 de Novembro ou 10 de Novembro de 1951". Apesar desta sua inadaptação, nos três anos seguintes persistiu em matricular-se em Direito. Ao contrário de seu pai, não chegou a terminar o curso. Em 1954, finalmente, matriculou-se na Faculdade de Letras, em Filologia Germânica, curso que, aliás, nunca completou já que, apesar de ter concluído a parte curricular, não apresentou a tese então requerida.
A partir de 1954 o contacto de Cristóvam Pavia e de António Luís Moita atenuou-se. Este último casara-se, pelo que Castelo de Vide lhe começou a rarear, acabando por se frustrarem muitos dos possíveis encontros. Em 1956 Cristóvam Pavia foi obrigado a cumprir serviço militar em Mafra, enquanto António Luís Moita deu à estampa o seu segundo livro, Teoria do Girassol. Com um lirismo autêntico que continuou Rumor, expressa a meditação e posterior cristalização de experiências e emoções - José Gomes Ferreira dele disse um dia que "escrevia com a vida" - o que, em meu entender, é o elo de ligação de toda a sua poesia, e que igualmente explicará os seus por vezes longos silêncios literários.
Entretanto, em 1959, Cristóvam Pavia publicou o seu único livro de poemas, a que simplesmente deu o título de 35 Poemas, tinha então 25 anos. Morreria precisamente dez anos mais tarde. António Manuel Couto Viana observou que a sua vida teve várias coincidências deste género. Uma delas, prolongada no tempo, relatada pelo poeta Nicolau Saião: seu tio Adolfo Bugalho (médico, pintor e autor de apontamentos teatrais) com quem Cristóvam falara várias vezes do seu interesse por ”O Retrato de Jennie” e que aquele não tivera oportunidade de ver no cinema, faleceu precisamente horas antes da sua única projecção na RTP.
Numa critica ao livro, já após a morte do poeta, exactamente 20 anos após o passamento de seu pai e 40 depois da estreia deste na Presença, José Régio, que Cristóvam considerou "le plus grand poète du Portugal", disse:"Antes de mais, autenticamente, trinta e cinco poemas. Quero dizer que se me afigura impossível possuir o sentimento da poesia e não sentir, ao ler essas composições, que se está comunicando com um verdadeiro poeta. Nem, de outro modo, haveria a comunicação. [...] Como também sucede com muitos outros, que a isso devem grande parte do seu triunfo público e da sua força intrínseca, - da sua poesia comunicativa - as coisas ditas no livro de Crist’vam Pavia foram vividas." . É bem isto a poesia de Cristóvam Pavia: uma nostalgia tornada comunicação. Apesar da sua timidez extrema, tinha uma profunda necessidade de comunicar. Exemplo deste imperativo foi o que ocorreu certa vez em Lisboa: viajando de eléctrico avistou António Luís Moita, que passava. Distraído, desceu impetuosamente do veículo em pleno andamento. Com naturais consequências, que quase foram trágicas...
E José régio foi verdadeiramente imparcial na sua critica, uma vez que já anteriormente havia elogiado a sua poesia, ainda antes de saber ser Cristóvam Pavia o pseudónimo do jovem filho do seu amigo e companheiro de Coimbra - uma vez chegou mesmo a fazê-lo à mãe do poeta, quando ambos viajavam de comboio.
O vasto e complexo mundo interior de Cristovam Pavia, no entanto, não se preenchia em pleno com este pseudónimo, tendo o poeta sentido necessidade de escrever, mais tarde, também sob os "semi-heterónimos" de Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo Menezes da Cunha Ferreira, " que traduzem, respectivamente, e grosso modo, um humor anárquico e surreal, um erotismo exaltado e um portuguesismo lorpa.". E Cristóvam Pavia, para além do simples pseudónimo que impossibilitasse qualquer tipo de confusão com o nome do pai, que significará? A opinião de António Luís Moita sobre este assunto é bastante interessante. Segundo ele, o nome de Cristóvam deriva de "Cristovão", santo protector dos viajantes (dos caminheiros, portanto - e como ele gostava de andar!) , terminando numa forma mais bela e inacabada do que "Cristóvão", deixando assim tudo em aberto. Esta presença do inacabado também aparecerá na escolha de Pavia (como diz o provérbio, "Roma e Pavia não se fizeram num dia"). Seria como se o poeta se reconhecesse como um homem em construção permanente. Por tudo isto lhe chama António Luís Moita "Caminheiro do Sonho". Como ele próprio refere, "toda a grande poesia é ambígua, embora clara"...
Cristóvam Pavia chamava aos poetas "mastigadores do mundo". Este deixou na sua boca um travo amargo, suficientemente amargo para nos primeiros anos da década de 60 o ter obrigado a alternar a sua permanência entre Portugal e Haidelberg, na Alemanha - para onde partiu em Agosto de 1960, aí trabalhando como ajudante de pedreiro integrado numa cura psico-terapêutica. Pelo meio, breves passagens por França e pela Suiça.
Quanto a António Luís Moita, uma série de problemas pessoais graves tornaram-no incomunicável e incapaz mesmo de escrever durante vários anos, logo após a edição pela "Portugália" do seu livro Sal (1962), que reuniu poesias de 1957 a 1961.
Este, alguns anos mais tarde, ao folhear um jornal da tarde, leu a notícia simples, fria e dura, da morte do amigo "Chico" António, em 13 de Outubro de 1968, sob o rodado de um comboio, em Belém. Morrera Cristóvam Pavia, por coincidência no mesmo dia em que no Brasil falecera também Manuel Bandeira, um dos poetas (se não mesmo o poeta) que o jovem mais admirava... |