Terá o nordeste alentejano essa fascinante característica de criar nos poetas as "asas e raízes " de que fala Régio no seu Fado Alentejano? Não deixa de ser interessante sublinhar este aspecto, bem como a atracção que poetas exteriores à região têm sentido pelo seu perfil geográfico e humano, possuidor de uma atmosfera poética muito especial. Além do conhecido e algo paradigmático caso de José Régio em Portalegre, não podemos esquecer-nos do de Branquinho da Fonseca, por exemplo, que dedicou interessantes páginas à vila de Marvão (o conto O Conspirador , do seu livro Caminhos Magnéticos), onde foi Conservador do Registo Civil; mas também o de Mário Saa, próximo de Avis e, um pouco mais para o sul, o de Sebastião da Gama, que se deixou prender à bonita cidade de Estremoz, aí encontrando, talvez, a fraternidade cósmica de que tantas vezes falou.
Os nascimentos de Francisco Bugalho e de Cristóvam Pavia em Lisboa queremos considerá-los como meras ocorrências acidentais. David Mourão-Ferreira teceu em tempos oportunas considerações acerca da "adaptação" ou "adopção" de Francisco Bugalho em relação ao Alentejo. No que se refere a António Luís Moita, poeta de qualidade e com preocupações de cariz universal, há desde já a certeza de que, como queria Apollinaire, ele terá encontrado a vitória ao ver bem ao longe e ao ver bem ao perto e dando a tudo um nome novo. O facto de não residir no Alentejo é pois, também aqui, simplesmente circunstancial.
António Luís Pinhão de Jesus Moita nasceu em Lisboa em 1925, aí tendo feito os estudos liceais. No entanto, muitas das suas férias escolares foram passadas exactamente em Castelo de Vide, em casa de parentes seus. Foi nessa vila - Castelo da Vida , como já alguém lhe chamou - que António Luís Moita, então com uma dúzia de anos, contactou pela primeira vez com Francisco Bugalho e com Cristóvam Pavia. É o próprio poeta quem o recorda: "Na estrada que liga Castelo de Vide a Marvão, junto ao portão da quinta de uns primos meus, Francisco Bugalho, montando uma égua, pára uns minutos para saudar o meu pai, seu velho amigo. Veste de linho branco. A cor do fato (sei-o agora) acentua-lhe o negro do cabelo escorrido e do bigodinho estreito, à John Gilbert. Usa botas altas, castanhas, quase da cor da montada, cuja impaciência as rédeas refreiam. À sua frente, escarranchado, seguro pelos braços fortes do cavaleiro, um menino de 4 anos, estranhamente quieto e silencioso, fita-me do fundo muito claro de dois olhos enormes","olhos verdes como as águas", no dizer de Francisco Bugalho. Esse olhar o poisou o jovem desde muito cedo sobre tudo o que o rodeava, precocemente inquirindo e perscrutando, como mais tarde António Luís Moita e seu pai ouviram a um Francisco Bugalho preocupado mas agradavelmente surpreendido: ao que parece, o pequeno "Chico" António, com apenas oito anos, foi apanhado a ler um dos últimos volumes de uma enorme História de Inglaterra, isto pouco depois de ter dito ao pai a sua primeira poesia: "O paizinho lê livros na salinha/ Enquanto a mãe faz bolos na cozinha". António Luís Moita, agora com 16 anos, havia entrado no espaço intimo de Francisco Bugalho por o poeta saber pelo pai do jovem que este também já fazia versos, meio às escondidas..."Promovido, assim, a confrade incipiente ou, talvez melhor, a pessoa crescida, a aparência um tanto austera do poeta de Margens, que a principio me intimidava, liquefez-se. Aquele homem grande - que ria pouco - sabia afinal sorrir. E o sorriso, ao abrir-se, transmitia bondade imediata" .
Num livro editado mais ou menos por essa altura, Canções de Entre Céu e Terra (1940) e tal como o próximo organizado graficamente pelo pai de António Luís Moita, Francisco Bugalho fixou com grande ternura e carinho a ânsia curiosa do filho: "Meu menino ama os cães/ Os gatos, as aves e os galos/ (S. Francisco de Assis em menino pequeno) / E fica horas sem fim / Enlevado a olhá-los".
Por essa época já a Presença se tinha afundado. A sentença de morte da revista, que o poeta tanto amava e que, aquando da cisão de Junho de 1930 (saídas de Branquinho da Fonseca, Edmundo de Bettencourt e Miguel Torga) foi "um dos mais fiéis pilares da revista salva do naufrágio" , fora lavrada precisamente na casa onde António Luís Moita e seu pai ouviam aquelas novas sobre o pequeno "Chico" António. Foi ainda por essa altura - Outubro de 1940 - que este passou a residir em Lisboa, em casa do avô materno, o Prof. António Flores, docente da Faculdade de Medicina.
Aquando desta sua ida para a capital já Cristóvam Pavia transportava consigo uma sólida - apesar de curta - vivência familiar ligada ao mundo rural e que ao longo de toda a sua vida sempre o acompanhou. Giovanni Papini disse um dia ser a cidade uma represália à natureza selvagem. Nada mais justo para o jovem poeta, para quem Lisboa, plena de "pasmo, calor e moscas", seria o espaço urbano opressor por excelência, essa Lisboa cuja aproximação o angustiava e da qual ele expressou mais tarde na sua Litania da Rua dos Fanqueiros aquele que entendia ser o seu ambiente físico e espiritual: " Ó porque será este chulé ibérico/ Em Espanha é pitoresco mas aqui é pindérico/ Ó Rua dos Fanqueiros/ Ó Salazar com teu rebanho de sacristas/ Pensar que isto já foi terra de sardinha e de fadistas [...]." .
Sete anos mais tarde começou a frequentar o 4º ano do Liceu D. João de Castro. Nada sei do que Cristóvam Pavia escreveu durante estes anos (1940-47) - a sua pouca idade certamente não foi óbice a um aprofundamento do seu sentir poético - até porque muitos dos seus escritos se encontram ainda por revelar, escondidos por vontade expressa do poeta, que começou por esta altura a utilizar o pseudónimo. Que nos revelariam eles? Certamente uma poesia bastante precoce, fruto de uma vida extremamente viva e vivida - afinal, a "bagagem" com que se fazem os versos, como queria Rilke e que seu pai, numa das sua últimas poesias, intuiu : "Perdeu de todo seu brilho/ A esperança de dias novos/ E embora haja os renovos/ Com que me não maravilho/ Vou sentindo que são novos/ No fresco olhar de meu filho". O poema, significativamente, intitula-se Reverdecer . Expressariam ainda, creio-o, partes do seu mundo interior, vasto, sensível e complexo mas sempre muito ligado às pessoas, aos animais, às coisas e aos acontecimentos. Numa tão lúcida quanto bela abordagem à sua produção poética, o poeta José Bento referiu ser esta " expressão do homem que ele foi: há um profundo paralelismo entre os seus poemas e os dias que ele viveu". E mais adiante acrescentou: "A poesia de Cristóvam Pavia é a revelação de si próprio, duma personalidade em conflito com o mundo em que vive e em que procura uma fuga pela recuperação da infância morta [...]. Pode considerar-se a sua poesia uma continuação e uma superação do espírito da Presença, a que não podia deixar de sentir-se ligado por seu pai [...]." .
Enquanto Francisco Bugalho demonstrava nos seus versos reconhecer no filho não apenas o germinar de uma expressão lírica fundamental mas também o continuador com novas planícies para descobrir e editava, em 1947, o seu último livro ( Paisagem ), Cristóvam Pavia passava no liceu pelo que considerava ser " a horrível e impossível Arte Social". Num poema intitulado Aspiração , desabafou: "Oh, ser eu qualquer palerma/ Vestindo decentemente/ Viver sempre bem alegre/ E agradar a toda a gente. / Ser um rapaz mais vulgar, / E deixar as fantasias./ (Este sentir e pensar/ só serve para arrelias) / E ser o campeão da bola/ Na equipa do liceu, / E ser o moço estarola / que nunca se comoveu." . Neste singelo e muito sincero poema encontram-se já expressas duas características fundamentais da sua personalidade e que de forma marcante se projectaram nos seus poemas: uma timidez profunda e algo doentia e a inadaptação a conveniências sociais e literárias, derivadas, a meu ver, do fascínio pelas vivências infantis e subsequente tentativa de regresso à infância (mesmo que realizada apenas através da reconstrução interior e espiritual das suas coordenadas básicas), o esforço de um quimérico enraizamento num paraíso que o poeta apercebia cada vez mais perdido. Estes aspectos, bem como a sua grande religiosidade, são essenciais para a compreensão da sua poesia e, talvez, de toda a sua (curta) vida. Como fundamental é também um acontecimento que no ano seguinte o marcou decisivamente: a morte prematura de seu pai em 29 de Janeiro de 1949.
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