Disse Yeats que “a vida de um homem é o vôo… sua luta cega na rede das estrelas”. Esta última nota luminosa envolve à perfeição o ato de passear, não pela estrutura, mas sim pela deliciosa astronomia, a estética quântica de Expíritu (Ediciones Azar), poemário do escritor, editor e tradutor mexicano Rubén Mejía. Não é fácil, certamente, revolver estes versos vivos e inteligentes, breves poemas, certeiros como uma fina flecha no alvo da página e da vida. Não é fácil, apesar de que Mejía expresse em aparência algo comum na poesia filosófica e na filosofia em si: as interrogantes do homem sobre si mesmo.
Heiddeger dizia que “o homem é um ser que pergunta”.
Mejía se empenha precisamente em evidenciar este traço distintivo do humano, porém em comunhão exata com todas as doses possíveis de uma mesma profunda resposta que permite ao poeta dar um relevo fugaz ao invisível, segundo suas próprias palavras.
Enquanto que o homem é um ser que pergunta, a primeira pergunta que se formula é acerca de si mesmo. A constante na poesia de Mejía é precisamente essa tendência a interrogar, por parte do homem; um interrogar que se dirige ao universo para automaticamente reverter-se sobre ele mesmo, apelando, contudo, à individualidade e ao egoísmo natural da poesia como um complemento da dualidade iniludível e assombrosa que lhe provoca inquirir
Em minha passagem pelo morrer-amar: que tanta é a divisão, quais são as porcentagens de meu espírito em sua travessia, simultânea, por cada uma dessas rachaduras, fundas e invisíveis?
[A rachadura não visível]
E encontramos, da mesma maneira, respostas dadas com uma funda, duras, redondas, definitivas:
O copo meio cheio ou meio vazio
resvalou de tuas mãos,
mesclando-se no chão
a água, os cristais e o vazio.
Não há dilema: apenas ser e não ser.
[O ponto sobre o Y]
De imediato notamos que há em sua poesia uma forte preocupação antropológica. Expressa, à maneira complexa e hermética, paradoxal e matemática da filosofia, sua experiência, sua pré-compreensão do humano. Não tenta construir um discurso antropológico ou filosófico, apenas nos sugere as interrogantes e nos oferece as respostas através de sua própria humanidade, desde sua pré-idéia do que é-somos; desde a concreta experiência de seu assombro desgalhado no prisma da realidade irreal:
meu rosto/mil rostos
em incêndio
espelhos diante de si
em fuga
na cifra infinita
de minha fugacidade
[XVI]
Isto lhe permite perguntar, ao mesmo tempo, sobre o homem e regressar a si mesmo neste jogo brilhante, na obsessão circular pelo sentido da existência.
*
Também a ciência tem no livro um lugar irrenunciável, embora este recurso, a constante mão da física e da astronomia, o lugar dos cientistas na prosa, as leis que se oferecem como terreno fértil ao paradoxo, os dados científicos que se inscrevem de modo genuíno e oportuno neste contexto filosófico; não são senão fino e acertado pretexto, um recurso para adentrar e explorar outras áreas mais intensas do humano, isto que precisamente permite a perfeita fraternidade da ciência, da poesia e da filosofia. São os elementos que lhe permitem traçar, de maneira original e nova, as perguntas filosóficas fundamentais, recriar as interrogantes e reformulá-las com deliciosa profundidade, o que é um mérito inegável em Expírito. A ciência, portanto, é o recurso perfeito para adentrar e, sobretudo, para re-iluminar a pergunta essencial sem transtorná-la, para insuflar-lhe vida em palavra nova.
Pôr o universo com
suas galáxias estrelas buracos
tempoespaçocurvos
x dimensões sonhos luz
a mente de Deus
em meu dedo anular
e escrever tudo de novo
o poema
o universo
[XXIX]
A ciência constitui aqui o meio exato para expressar o poeta em seu estado de pasmo e de obsessão, que surge do paradoxo “pequenez-grandeza” humana, contidas uma na outra e desveladas em si mesmas. O homem como microcosmos, em quanto que contém em si todo o cosmos e ao mesmo tempo sente a dor de ser limitado, efêmero, diminuto; eterno e ao mesmo tempo finito no todo que somos cada um:
Alguém
sonha comigo
enquanto
eu sonho com outra e
ela com outro
em elos concêntricos
oniespirais
como os raios da roda ao
acelerarem-se
se perdem dentro de si mesmos
no círculo lúcido de um anel
cujo centro
– em todas as partes e em nenhuma –
irradia em todos os sonhos
e concentra o sonho de todos
[XV]
*
Mejía parece dinamizar os mais puros existenciais, portanto. O homem como possibilidade, por exemplo, dado que creio reconhecer no uso constante e privilegiado – com um magistral lugar no poema – do “houvera” ou do “haveria”. O “houvera”, esse tempo que não é passado, nem futuro, nem é presente, mas sim uma alternativa que nos permite e exige a dor de ser e não ao mesmo tempo, o “houvera” sempre foi a possibilidade que já não é, minha possibilidade, que já não existe; manifesta-se no absoluto verbo do assombro, o desencanto, a trágica surpresa do outro presente, ao qual já é impossível recorrer para ser dentro dele:
Houvera, houvesse,
tempo intacto
soma de histórias
sem história
a imagem que ainda
apalpamos
– no entressonho –
a morte que me possui
e eu possuo
[XVIII]
Também poderíamos assegurar que se trata de um passado alternativo que segue inexoravelmente se prolongando em meu presente através da dor de não ter podido ser: “houvera”, “houvera”, retumba como um tambor elegíaco de gênese em todo Expírito. “Houvera”, contudo, é também o resultado paradoxal da liberdade. Em quanto que ser, “houvera” significa que “não fui”, de modo que o desenlace necessário é o imenso desencanto imerso na flama vital, a frustração talvez, como uma conseqüência natural – embora sublimada – do exercício da realidade.
É uma poesia que está muito atenta, no entanto, ao que hoje constitui a reflexão sobre o homem (muito penosamente o amor e uma etérea mulher encarnando-o), no sentido em que, contrário ao que alguns poderiam pensar, o que Mejía nos diz acerca do homem não são generalidades de uma corrente filosófica que foram extraídas para ser inseridas de uma maneira fria no poema. Não são interrogantes universais que se mostram vazias do poeta. São, antes de tudo, a necessidade e a experiência concreta, particular e circunstancial de cada ser humano, ou seja, do humano que é a soma das individualidades, o devir do um só no mundo que se cristaliza na prova concreta da voz de um só homem: o poeta Mejía. Por isto, como o poeta verdadeiro, ele fala a partir de si mesmo, e pode ao mesmo tempo falar a partir de todos com o alto-falante da natureza humana, sem que isto signifique falsa generalização.
*
Um homem, em cada momento, muda, se transfigura, é outro. Mesmo sendo quem é, nunca é igual a si mesmo, nem o é para outra pessoa, mesmo que essa pessoa seja seu filho, sua mãe ou sua esposa.
Seu caráter e sua marca digital o delatam e individualizam, porém seu ser – que é água, porém é também fogo e vento – vibra numa torrente e numa contracorrente de metamorfoses que o transformam até sua figura final.
Diverso em si, um homem ao longo de sua existência é outro homem, inalcançável, auto-similar, em eterno ziguezague: a clonagem incessante de alguém que já não é ele.
[Homem em ziguezague]
O tempo, que aparece continuamente na quase maioria dos poemas, tem, no entanto, um matiz existencialista: o esquivar-se da existência, o esquivar-se da possibilidade, não em exercício da vontade, mas sim através das forças cegas do imprevisível:
Em meu relógio, não contam
os grãos da areia que passa,
mas sim aquilo que resta:
a transparência
medida de meu tempo breve.
[Sonhos de areia]
E logo nos espeta a outridade, a dualidade dolorosa do esperadamente real:
Com as gemas do pensamento
armo as últimas peças
de meu tempo mental
Em expírito me reflito
- e por momentos me revelo
até desaparecer –
na metade real
do mundo
[a]
E aqui toma grande força outro dos existenciais que o atormenta e o faz encarar o vazio: a morte. A morte como destino, como um tombo essencial, sem o qual o humano não é possível nem explicável, até – pelo menos assim o entendi – ceder à tentação fatalista de ver na morte o sentido último, o evento central, a pleura resistente que é cápsula e esponja de nossa única possibilidade de ser: a vida.
Ter a morte bem dentro
e fa
(la
la)
lar-lhe
– com as sílabas do silêncio –
sobre a vida maravilhosa
[Voz de vida]
É por isto que o gato, com suas sete vidas não vidas, aqui se converte, como em muitos outros escritores, no símbolo perfeito para encarnar o olhar do poeta sobre o universo e sobre nossa humanidade.
Expiro em espiral
entre
a morte 7
e a vida 8
do gato
[XXIV]
*
O que torna Expírito uma leitura excitante é também a descoberta de que seus poemas se nutrem sozinhos, unidos, e simultaneamente separados do poeta e da própria circunstância de sua criação. Consegue pasmar-nos profundamente com sua paixão por um universo aberto no acaso e na certeza do funesto, seu ritmo místico, suas repetições misteriosas, o obscuro nas circunstâncias acidentais da existência. Uma poesia medularmente humana, por vezes marcada por um minimalismo assombrado e doloroso; poesia madura, filosófica, que jamais se detém em especulações estilísticas vazias. Uma poesia complexa que nos mostra o domínio do ofício e a maestria do poeta, encarnada, por exemplo, na voz profética e apocalíptica que o poema “ciclo” nos oferece como um microcosmos da atitude geral do poeta no livro:
Do céu chovem homens
gotas de pó
… … … … … …
peixes
calculam o final do tempo (-30) ao
tropeçarem em alguma curva do espaço
curvo…
… … … … … …
herbívoros
fabricam armas pós-fissão nuclear para
exterminar seu vizinho – o inimigo milenar
devorador de relva – que desta vez
não sobreviverá…
… … … … … …
[Ciclo]
Expíritu representa, portanto, a morte vital; o exercício sublime e iniludível de expirar em consciência da morte, da leveza humana, exercício que paradoxalmente dá asas e força à existência. Este é, a rigor, o sopro de vida que normalmente chamaríamos de “espírito”, e que Mejía permuta por um Ex latino que de imediato nos coloca “fora de”.
Expírito, talvez seja no homem esse equilíbrio – resto, entre seus estágios físico, quântico, mental.
[t]
Por isto é inexorável.
Expírito sempre morre e, no entanto, vai modelando uma medula inesgotável na vida. O fundo se encaixa à forma e nos deixa profundos e gelados. Cruzamos a desolação sagrada da existência, a impossível fronteira do instante, o instante infinito da morte… religiosamente vivendo. O autor viaja seu estado existencial nas curvas mais ocultas das palavras que, por vezes, abruptamente cerceadas, brilham, se tocam, punçam melhor. Uma linguagem que esculpida com profundidade nos oferece harmonia e determinação, e, sobretudo, uma voz que está em condições de inter-atuar com a fagulha racional da alma.
Em Mejía escreve a inteligência, o amor pela idéia e pelas verdades contidas no mundo ideal. Sua pluma corre em linhas de ferro tão fugazes como agudas; e nesta longa translação efêmera tudo se nos quebra e crucifica, tudo nos fala-fala-fala desaprumando-se irremediavelmente entre o humano, nos reflexos inescapáveis do mundo.
Universidade de México, Chihuahua, 2005.
Tradução de Floriano Martins
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