Querido Rubén, para mim, ir a Paris é como ir à minha orfandade, justamente porque gosto de sentir-me o mais distante do lugar onde mais desejo estar sem nenhuma decisão de ficar, enquanto que na Cidade do México sinto sempre que estou desenredando meu destino, indo para trás, porém nunca me afastando do que é o único lugar (para plagiar-te).
Paris é meu houvera, e ali, portanto, nunca descubro um absoluto, pelo contrário, me incita, me convida a sensação de que é impossível encontrar o absoluto, de que sempre estou de frente, de pé e de corpo inteiro, diante da impossibilidade. A outra, a Cidade do México, é outra impossibilidade, porém sempre com a convicção de que o sucedido é sempre bem vindo, de que o que vivi (no México e fora dele) é, simplesmente é, e assim o conjugo, como dizes maravilhosamente em um de teus textos, o conjugo sempre no presente. É a inocência do passado, como dizia Nietzsche, retomado por Deleuze-Guattari. Que força tem teu diálogo com eles! Tuas réplicas são, ao mesmo tempo, contatos profundos, e esse diálogo constante que não é nem de aquiescência, nem de rejeição, mas sim diálogo entre mundos, é uma forma gozosa de viver as idéias, as virtualidades, ou as verdades que, como dizes, primeiro são breves antes de ser verdades. Teu “expírito” é uma soma. É uma soma, resume, resume de toda tua vida, de toda tua experiência, de todo teu pensamento, e se sente tanta afirmação (não digo segurança, este conceito precisamente está fora de teu âmbito, pois não se trata de estar seguro, trata de se afirmar o que se é).
Como soma, não é um livro para ler-se e pronto. Para mim, consegues criar verdadeiramente um universo alternativo, poessível, onde os neologismos, os inventos, as decomposições têm um sentido muito preciso, fatal. E é tudo de enorme coerência, uma reflexão que está na medida em que a lemos, que está sucedendo, está correndo, está fluindo.
Conseguiste captar o pensamento em fluxo e também fracassaste, porém todos os que tentaram captá-lo nesse fluxo constante, pelo menos na modernidade, fracassaram, porque desde os românticos alemães é parte do destino: fracassar. Friedrich Schlegel e Novalis diziam maravilhosamente que criar é criar compreensão, mas também incompreensão, e que a incompreensão (a nescencia de Novalis) é necessária, é fundamental para a criação. E assim está em ti, não porque haja poemas ou linhas ou obras “incompreensíveis”, mas sim porque estás falando sempre da incompreensibilidade como qualidade íntima da comunicação. Como qualidade única do que é o lugar onde tudo se torna real e virtual, possível e poessível. Fizeste uma obra formidável. Admiro a coerência, a serenidade para ir construindo este belo edifício. Estás como um arquiteto, e combinaste magnificamente as formas do poema de verso livro, os aforismos, os mini-ensaios à Nietzsche, e profundamente está teu diálogo-réplica-monólogo-intercâmbio com Mallarmé, Gorostiza, Paz, Nietzsche, Deleuse-Guattari, Duchamp… Me fascinou o poema onde replicas-implicas a rejeição da árvore destes últimos, para propor tua própria vivência, e em seguida recuperar a força do acaso. Tua reflexão sobre a verdade consegue captar os paradoxos, a visão anti-dogmática, o último olhar – vento de Deus é o olhar, dizia Adão – que constrói e reconstrói e nos oferece finalmente outro mundo, outro segredo.
Não, não posso dizer tudo o que senti e pensei. De fato, necessito ruminá-lo. Porém ao mesmo tempo ruminá-lo será transformá-lo em algo meu que talvez já não reconhecerás (mas que eu te agradecerei). O que sucede é que me identifico tanto com tantas coisas que dizes que nada posso dizer, porque agora o diria com tuas palavras (e me deu enorme prazer cotejar tuas mudanças). Estive observando-as em Expírito I, e vi o cuidado com que mudaste de lugar um poema, acrescentaste outro, porém sobretudo gostei muito da precisão com a qual fizeste as mudanças menores, de palavras, ou como acrescentaste uma frase, e estes detalhes, em efeito, tornaram o texto mais consistente, mais agregado a si mesmo: Tout se tient.
Expírito me parece uma travessia/empresa/jornada/work-in-infinite-progress fascinante. Cotejei apenas a primeira parte e já aparecem coisas realmente emocionantes, e em si mesma a riqueza de tons, de acentos, de timbres, é estimulante. Rubén Mejía, seu autor, parece possuído ou apanhado por uma bela gaia ciência da plenitude.
Sem querer ser hiperbólico, as distintas versões me lembram de imediato a empresa de Whitman com Leaves of Grass: a cada nova edição, um novo livro. As adições e correções aumentavam e davam novas dimensões ao original de 1855… cada nova edição em realidade era um livro distinto.
Assim parece a empresa de “expírito”. É um mundo poético.
Rubén, me mandaste algo precioso, algo maravilhoso, e esta não foi senão uma primeira leitura. Muitas vezes senti o que sempre senti e admirei em Nietzsche: é impossível lê-lo “seguidamente”, ou de uma sentada. Impossível. A carga é tão intensa, cada fragmento tem uma carga tão forte de sentido que é impossível terminar um e continuar o seguinte como se nada. Ao mesmo tempo, é necessário seguir, porque isto é parte do efeito buscado, embora seja impossível abarcá-los de uma só “olhada”. Tens um mundo, Rubén, que mais se pode querer? “Eis aqui teu mundo. E a isto se chama mundo.” Em Fausto, a segunda frase, avaliadora, tem o acento da desilusão, da decepção; porém Nietzsche a usou para dizer todo o contrário: Este é o único mundo, e isto é um mundo, pra que melhor. O que está no mesmo horizonte da frase que citas de Duchamp, sobre as falsas interrogantes ao mundo; que não diz nada, que não tem nenhum mistério, que não responde a nenhuma interrogante. (Conheces o poema de Silva, “A resposta da terra”? É um poema magnífico, maravilhoso que acaba com todo o romantismo justamente dizendo isto: a terra nunca disse nada, a terra nunca significou nada, é simplesmente terra, é simplesmente um mundo).
Bom, sim, já estou de regresso, tratando de atualizar-me em tudo quanto está em atraso. A viagem a Paris… a viagem a Paris… te mando um grande abraço e seguimos, Jorge.
Universidade de Maryland, USA, 2007
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