No ramerrão costumeiro,
caminho em silêncio
pela rua do bairro.
Um distendido conforto provisório
fala em meus gestos iguais,
como se eu tivesse aprendido algo.
Estou nu,
assim as árvores
e os pássaros,
os prédios e as alcovas
bem abrigadas.
Temo ser alvejado
por uma bala perdida
ou um beijo de traição,
e prossigo a despeito
de olhares oblíquos,
lançados através do
cortinado roto de janelas ociosas.
O final de minha rua
desemboca em um largo.
Vazio, quase sempre,
por onde cruza o vento.
Nos dias quentes o sol
cresta o paralelepípedo do calçamento,
banha meus pés,
os chapéus dos raros transeuntes --
e escorre pelo piso,
perseverante e dominador.
Entrego-me à luz.
Sento-me sob a idéia de uma árvore
que não há.
(Os fundilhos sobre a guia da rua.)
E escrevo,
com a lâmina da palavra,
enquanto o suor
goteja no papel e em minha perna.
Não sei que nome pronuncia o astro,
nessas ocasiões.
Não importa.
Está lambendo o suor
de minha mão agora,
incendiando minha pena
e forjando a primeira frase
de um dia sem inaugurações. |
RICARDO DAUNT - escritor com vasta obra ficcional e ensaística, consolidada no panorama das letras brasileiras, capaz de perícia admirável no manejo da língua literária.
Autor de livros como Manuário de Vidal (1981, Anacrusa (2004), e T. S. Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven (2004).
Contacto: ricdaunt@ig.com.br . |