Devo dizer-te, velho, mesmo que inutilmente,
que estás só, e que teus conhecidos, aposto,
são hoje lembranças mortas, nomes de pontes
praças e ruas, por onde trafega a indiferença,
e agora não te dizem mais
do que outrora disseram.
E que a mulher que mais quiseste
(sempre há alguma) já soprou
as 70 velinhas do bolo de seu aniversário
(velinhas ordinárias compradas na feira,
estocadas como uma adaga na superfície
da cobertura de glacê gretada e opaca do bolo)
e não se lembrou de convidar-te para a festa.
(Linda por sinal, presentes todos os queridos,
com certeza.)
Imagino também que teus filhos bastardos
nunca souberam teu nome, velho,
mas buscaram banir inconscientemente
os defeitos teus, tatuados nos genes
de seus rebentos, por precaução.
Enfim, tua janela fechada me diz
que não prestas para pai, avô ou placa de rua.
Imagino ainda que quando jovem
congeminavas envergonhado, não negues,
os mesmos planos que todos no íntimo
entretecemos em nossas horas de ócio,
mas só concretizaste delitos de abstinência.
O epítome de tua vida, velho,
é aquela janela sempre fechada --
atrás da qual escandes nosso destino --,
e que dá para a rua por onde passo
duas vezes por dia, cada vez mais indefeso.
Tua presença constante, velho,
suscita conversas estranhas entre os vizinhos,
de hábito expansivos, solares e óbvios.
Dizem eles que morreste, já, ou que mudaste dali,
dizem até que não és velho, que tua casa
é uma carcaça vazia de história,
plantada no mundo como uma pedra inamovível,
no meio de nosso caminho.
Dizem que és um símbolo oco
do que não somos na vida, do que não pudemos
enfrentar, do que escapou de nosso destino
e fingimos poder restituir em seu pleno sentido.
Tua janela, digo-te eu, tua janela fechada
faz-nos um mal terrível, e digo-te isso
como uma advertência grave.
Sei que alguns vizinhos partirão daqui, em breve,
para esquecer-te, para reconstruir suas vidas
sem tua presença. Mas eu ficarei.
Até que abras a janela, até que nos fale
do púlpito, até que me libertes. |