NICOLAU SAIÃO

OS VERBOS IRREGULARES

A matéria de que se fazem os sonhos

- Vai ali para a direita – disse o magro com rispidez.

- E mantém-te caladinho – disse o gordo com ar torvo – a não ser que te perguntem qualquer coisa…Percebeste, minha bosta?

- Ora vamos lá a saber… - disse o magro com um ricto cruel na face – Chamas-te Gervásio não é verdade?

Tentei protestar. Dizer que não, que não me chamava Gervásio, que me chamava…

- Não me percebeste há bocado? – disse o gordo aplicando-me uma palmada a sul da orelha esquerda, ali mesmo no sítio onde os pêlos da barba se juntam às patilhas.

Cambaleei ligeiramente mas uma estalada do lado contrário restabeleceu-me o equilíbrio. Admiti que de facto me chamava Gervásio e o magro compulsou uns papéis.

- És tu portanto o Gervásio… Saigão. O engraçadinho que gosta de falar nas letras e nas artes…O espertalhão das dúzias! O tal que nem se ri das piadas do senhor professor Ypsilone, o maravilhoso ensaísta que traçou o perfil nacional do churrasco. E faz pouco das palavras sábias e sugestivas do doutor Xis, o maior vate do norte… Estou a ver! Ora diz-me cá, meu passarinho: confessas ou não que tentaste afundar o Titanic? Hein? E que disseste que o senhor doutor Zê, antes de ele quase receber o prémio Nobel, era uma espécie de…

- O quê? – interrompeu o gordo com um esgar tipo morcego, aplicando-me um eficaz pontapé nas canelas e um sopapo no nariz – Ele disse coisas do doutor...do doutor… – e a raiva era tão grande que o fez titubear, ultrapassando o incómodo com um cascudo no alto da minha mona.

- Aqui o nosso Nicolau Cambodja era um dos tais… - interrompeu o magro com um riso sardónico – Chegou a dizer que havia corrupção cultural na cidade onde vive e que ali, tal como nas duas capitais, a panelinha literária era tão safada como a magistr…

- A ma…a magistr…? – disse, gaguejando, o gordo com um ágil bofetão que me deitou o queixo abaixo – Este safardana também criticou o sistema jud…

Parecia que lhe ia faltar o ar. Rapou de um colt 45 dos da Guerra da Secessão e apontou-mo à sobrancelha direita.

- Foste tu quem incendiou o Reichstag, não foste? – e armou o cão do bacamarte.

Comecei a achar aquilo estranho. O Titanic…o pistolão igual aos do Clint Eastwood…o Reichstag…o doutor Zê quase a receber o prémio Nobel…

Desatei a rir baixinho. Mas com vontade. Tudo estava explicado, carago! Era evidentemente um lixado e esquisito sonho! Fechei os olhos, ciente de que a seguir, claro, ia acordar.

Mas não era. Raios, o soco de bom quilate no estômago tirou-me as ilusões e fez-me ver as estrelas.

Hoje sou o prisioneiro nº 4368 do Forte de Penilche. E daqui a dias vou ser transferido para Caxolias.

Não me mandam um macinho de cigarros…uma garrafita de brandy…um jornal que só traga notícias boas?

Uma revistinha literária?