Em 1894, o grande angolanista Héli Chatelain (1964:9)(1) interrogava-se sobre a (in)existência duma literatura oral angolana, nos seguintes termos:
Terem europeus inteligentes vivido, durante quatrocentos anos, com a população nativa e nunca terem registado um único exemplo de literatura oral nativa não será isso prova bastante da inexistência desta? Assim parece. No entanto, logo que inteligente e persistentemente a procuramos, essa literatura revela-se-nos de uma forma exuberante .
Pertence, de facto, a Héli Chatelain (1888-1889) (2) a primeira classificação da "literatura oral" angolana, stricto sensu: provérbios ou adágios; contos ou apólogos. O mesmo autor acrescenta que se poderão "juntar": as "tradições historicas e mytologicas", os "ditos populares", "ora satyricos ou allusivos, ora allegoricos ou figurados"; enigmas (3) ou cantigas. No respeitante à qualidade, Chatelain afirma que a "literatura oral angolana pode competir com qualquer outra" (4):
[...] litteratura oral [angolana] [...] puramente nacional [...] consta de um rico thesouro de proverbios ou adagios (5), de contos ou apologos (6), de enigmas (7) e de cantigas, aos quaes se podem juntar as tradições historicas (8) e mythologicas, os ditos populares, ora satyricos ou allusivos (9), ora allegoricos ou figurados (10) ; em todos os quaes se condensou a experiencia dos seculos e ainda hoje se reflecte a vida moral, intellectual e imaginativa, domestica e politica das gerações passadas: a alma da raça inteira (11).
Héli Chatelain, - um pouco mais tarde (1894, na primeira grande obra de literatura tradicional angolana, apelidada, Contos populares de Angola, edição em Kimbundu e Inglês, que teve de esperar 70 anos (até 1964) para ser traduzida em Português), - apresentava (1964 [1894]:101-103) uma tipologia que se manteve quase inalterável até aos nossos dias: 1. histórias tradicionais de ficção (“mi-soso”); 2. histórias verdadeiras, ou, melhor, histórias reputadas verdadeiras, aquilo a que nós chamamos anedotas (“maka”); 3. narrativas históricas (“crónicas da tribo ou nação”) (“malunda ou misendu); 4. provérbios (“ji-sabu”); 5. poesia e música (as “canções são chamadas mi-imbu”); 6. adivinhas (“ji-nongonongo”).
José Martins Vaz recolhe a "filosofia tradicional dos Cabindas através dos seus testos de panela, provérbios, adivinhas e fábulas" (12). Considera o mesmo autor que os testos de panela, de barro ou madeira são "cartas", "bilhetes esculpidos", portadores de mensagens traduzíveis em provérbios de difícil interpretação, porque, segundo Carlos Estermann (13), "[...] para tirar um sentido das figuras esculpidas nos 'testos falantes', é necessário proceder com muita arte e grande sabedoria, e conhecer perfeitamente a relação existente entre as figuras e os provérbios, dos quais o povo, em estudo, possui um tesouro muito variado".
O maior colector de "literatura tradicional angolana" é, sem dúvida, Óscar Ribas. Debruçando-se sobre a área dos Ambundos [Ambundu] (Língua Quimbunda [Kimbundu] e Portuguesa), mais especificamente a zona de Luanda (14) e periferia, Óscar Ribas reparte e classifica esse enorme acervo em várias obras: no Misoso I (15) [1979 (1961, 1.ª ed.)]: contos e provérbios; no Misoso II (1962): psicologia dos nomes; culinária e bebidas; desdéns (isemu); passatempos infantis; vozes de animais e epistolário; no Missosso III (1964a)): canções; adivinhas; súplicas e exorcismos; prantos por morte; instantâneos da vida negra.
Carlos Estermann (16), ao estudar a literatura dos Povos do Sudoeste de Angola (Ambós [Ovambo], Nhanecas-Humbes [Ovanyaneka-Nkhumbi]e Hereros [Ovahelelo]), classifica-a nos seguintes "géneros literários": 1. Contos ("trechos" em prosa); 2. Provérbios e adivinhas ("[...] constituem um género intermediário entre a prosa e a poesia") (17); 3. Poemetos ("[...] propriamente ditos, que exigem quase sempre acompanhamento melodioso vocal")(18); 4. Cantos ("poemetos cantados").
Dentre os Povos não-Bantos, o único estudo da respectiva literatura oral a que tivemos acesso foi o de Viegas Guerreiro, com a obra Os Bochimanes (!Khu) de Angola (1968). "Recolha magra, sem dúvida, mas ainda assim significativa" (19) de que o autor refere algumas narrativas (20).
No Grupo Vátua (pré-banto), estamos cingidos a um diminuto número de espécimes: uma prece e uma narrativa (21).
A mais recente classificação compulsada foi a tipologia de António Fonseca (1996:47): narrativas genealógicas; narrativas mítico-históricas; lendas; contos tidos como verdadeiros; fábulas; provérbios; adivinhas; comunicados/recados/notícias; jogos; poesia/canção (22).
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(1) A edição original, em Quimbundo e Inglês, é datada de 1894.
(2) Chatelain, 1888-89:XVIII-XIX.
(3) "Os enigmas não contêem uma lição moral ou prática como os provérbios e muitas vezes os contos; servem unicamente de passa-tempo; porém mesmo assim teem valor porque elles tambem apresentam as particularidades syntaxicas e lexicologicas da lingua na sua forma mais genuina e espontanea." (Chatelain, 1888-1889:XIX).
(4) "[...] esta litteratura hereditaria dos pretos que póde rivalisar com a de qualquer raça [...]" (Chatelain, 1888-1889:XVIII).
(5) = jisabu, sing. sabu [Nota do autor].
(6) = misoso, sing. musoso [Nota do autor].
(7) = jinongonongo, sing. nongonongo [Nota do autor].
(8) = malunda [Nota do autor].
(9) = jiselengenia [Nota do autor].
(10) = ifikila [Nota do autor].
(11) Idem, ibidem:XVIII. [Intercalado da nossa responsabilidade].
(12) Martins Vaz, 1969, vol. I e II. A citação, entre parênteses, corresponde ao título da obra.
(13) Estermann, "Prefácio", in Martins Vaz, 1969 (I vol.):12.
(14) A zona dos "Luandas", no dizer de José Redinha (1975a):8, nota), ou a "ilha crioula", atributo que Mário António outorgou a Luanda, na sua obra Luanda "ilha" crioula (1968).
(15) Ribas [1979: "Antes de começar" (não paginado)] atribui à designação de Misoso o significado de histórias e, por extensão, o de "variada matéria".
De facto, história, em Quimbundo, diz-se musoso (pl. misoso) (Silva Maia, 1964:337).
(16) Estermann, 1960b):207. [Adaptação nossa].
(17) Idem, ibidem:207.
(18) Idem, ibidem:207.
(19) Viegas Guerreiro, 1968:327.
(20) Viegas Guerreiro (1966:39-67), no estudo efectuado sobre os Macondes de Moçambique, divide a sua "literatura oral" em: "contos", "adivinhas", "ditos sentenciosos". Os "jogos, brinquedos e outras diversões", aparecem em capítulo à parte (pp. 69-103), sendo "as vozes de animais" (pp. 303-311), que constituem a XVII divisão dos "contos", inseridas nos mesmos, porque, de facto, são "diálogos" em texto narrativo. O mesmo acontece com os "cantos" que não têm existência fora dos "contos", não intitulando, por isso, qualquer capítulo. Mais tarde (1981:177), divide os géneros da "literatura oral de 'primitivos' e 'civilizados', géneros que considera idênticos, em: "mitos e lendas, relatos de acontecimentos, contos e fábulas, provérbios, adivinhas, poesias."
(21) Estermann, 1983 (II vol.):287-289.
(22) Veja-se uma classificação um pouco diferente, do mesmo autor e na mesma obra (Fonseca, 1996: 50-52). Em anterior classificação (Fonseca, 1984:85-87), referente ao Grupo Etnolinguístico Bakongo, António da Fonseca distribui a “literatura de tradição oral” por nove “géneros: 1. Os provérbios (ingana) ("nos quais estão condensadas todas as normas de conduta social"); 2. As "histórias de ficção, inclusive as fábulas, e que têm como objectivo a extrapolação da moral social para além do recreio (insinsi, nsonsa, insamuna ou savu)"; 3. As "histórias consideradas verdadeiras (ki mona mesu), mas nelas, de uma maneira geral, ultrapassam-se as leis da natureza e atinge-se o maravilhoso. Nestas histórias são patentes as relações entre vivos e mortos e as práticas fetichistas."; 4. As adivinhas (ingunga) ("o seu objectivo é a distracção e o desenvolvimento do raciocínio dos mais novos. Iniciam-se sempre com uma fórmula especial."); 5. As canções (nkunga ou mbembu); 6. Textos de "transmissão de uma notícia, um recado ou um convite, assumindo, às vezes, a forma de uma pequena fábula cantada."; 7. Jogos e brincadeiras infantis (kimpanga); 8. Narrativas de genealogia (nvila) (feitas pelos mais velhos [...] nunca na presença de estranhos ou miúdos"); 9. Textos constituídos por uma "amálgama de diversos géneros" (mambu) ("resolução de qualquer problema da vida social, um acto de casamento ou um rito qualquer"). |