Tânia Mara Galli Fonseca
Não me chamem de Taninha

I

uma a uma ela as estirava e alisava, revertia-as caso estivessem ao avesso para então enrolá-las, fazendo-as entrarem para dentro de si e enveloparem-se em seu próprio corpo. dispunha em fileira os pares de meias,encaracolados, e sentia o bem estar de antecipar, com suas próprias mãos, a operação futura dos próprios usuários. Antecedia-se a eles, previa seu desajeitamento e, supondo sua pressa e impaciência, deixava-lhes os pares de meias em tranqüila ordem. e, ao fazê-lo, não eram poucas as vezes em que lembrava dos gestos de sua tia, com quem apreendera a arte da delicadeza invisibilizada e cujo valor apenas transparecia em forma de intenção de agradar sem contudo ser percebida. vieram os filhos, vieram os anos e a tarefa da vida também virou ao avesso muitas das intenções e ela não se encontrava mais feliz. perdera a capacidade de sobrelevar. o mundo e a sua própria vida pesavam-lhe como toneladas. percebera a inutilidade de seus gestos e já não coordenava o direito e o avesso de seu próprio viver. diante das meias limpas, sabia ser indiferente vir a enrolá-las de qualquer jeito, pois o gesto que ali se detinha se tornara para sempre inapreensível e nunca lhe retornaria em amor.

II

eu que quando me pego a pensar ponho-me a desfiar idéias como se as estivesse escrevendo, agora, que me sento para tal, tudo me foge e minha mente fica em branco somente restando esta situação de desejo com direção mas sem substância. ou seria que tudo se faz tão substancioso que já se encontra empedrado, sem aeração , como aquela terrinha dos pequenos vasos que temos em nossas janelas e que esquecemos de revolver e que nos surpreendem, após um tempo, como uma superfície endurecida e impermeável, casca de um ferimento, que ao mesmo tempo o esconde e o denuncia, mantendo-o amarrotado e cômodo na verticalidade cônica do pequeno vaso.

III

enquanto varria a sala, percebeu a abelha morta junto às poeiras. de onde teria vindo? dias após, o jardineiro avisava: há uma enxame no interior da escultura colocada no jardim. sim, a mulher- sem- cabeça, sentada, majestosa e ridícula ao mesmo tempo, havia emprestado seu corpo para acomodar as abelhas que ali entravam e saiam na faina da produção do mel. não bastasse a figura de mulher já ter sido esculpida sem-cabeça e com pênis, agora completava-se sua sina trágica: abrigava mel e conjuntamente todo o seu exército produtor composto de animaizinhos com ferrões. paradoxo barroco em que propriedades contrárias se mesclam e constituem barreira blindada. corpo de mulher.

IV

encontrar um bordão para a canseira e na própria casa uma saída para o fora. saber que o que vemos como o outro e no outro é também o que se pode ver em nós, eu-tu como imagens coladas, direito-avesso, diferentes mas não contrários. suportar dar vida à vida , esgarçar-se e abrir-se como mães-em-parto, corpos-de-passagem a seres, amados e estranhos em nós para sempre. conviver com os rastros de todo o passado em nós e ao acordar, ainda no lusco-fusco do estado d’alma, sorrirmos suavemente por termos ali- e- agora podido saber que os partiram ainda podem nos abraçar e nos acenam para novos encontros. saber que há dias que são noites e que, ao inverso, noites podem se transformar em auroras e que quando dormimos, podemos visitar paisagens de dentro e conversar com o vento e o tempo já esquecidos. saber que as chegadas podem ser partidas, que os encontros podem ser despedidas e que, quando voltamos para casa, nosso trabalho não encerrou. ali, no próprio reduto de nossa intimidade aguarda-nos a mais difícil tarefa do amor, que não se presta a ser entendido e que, sendo da ordem do sentir e da sensação, constitui-se por aquilo que não podemos ver nem ouvir, e talvez tampouco dizer, mas que ao se revelar como uma intensa faísca instantânea, derrama-se como um fio estendido ao qual nos agarramos já com o rosto afogueado pelo amparo pressentido naquela ínfima e quase imperceptível irradiação. saber, pois, que frente ao espaçoso e interminável vazio no qual estamos mergulhados e do qual somos compositores, as pequenas percepções , as minúsculas manifestações, não por seu tamanho e extensão, mas por sua concentrada intensidade, podem ser depositárias de potências de nossa vontade de viver. nada de espetacular e grandioso em sua manifestação. arte minimalista das finas e delicadas limas que nos auxiliam a extrair das pequenas pepitas o ouro da própria vida.

V

saber-se em viagem. em terra e no mar. em cidades e em desertos. em terrenos sólidos e cristalizados, em águas profundas e rasas que não se deixam sulcar como a terra, superfícies delicadas e suscetíveis, devoradoras, contudo, das passagens, rebeldes que não se deixam marcar e estriar, eternas e ilimitadas trilhas a inumeráveis viajantes e incalculáveis destinos. viajar nas areias movediças e moleculares dos desertos. fazer passear a alma nômade e caminheira como o vento e, saber, então, desta viagem, da provisória permanência e do apagável rastro, apenas visibilizado por alguns instantes. não passamos de ser apenas uma vida que passa. mas, na terra, algo se cristaliza, embora sempre ameaçado por suas proximidades com o mar, mas subitamente conservado pela insurgência da vegetação nas clareiras que buscamos abrir para traçar o caminho de passagem. nosso vazio existencial não se refere, como se poderia deduzir ligeiramente, às nossas faltas. ao contrário, concerne à plenitude de nossos possíveis, que, indistintos, emaranhados e contraídos constituem-se no próprio nó problemático que nos concerne e cujos desdobramentos se manifestam como as possíveis resoluções que encontramos aos afectos que lhes são imanentes, resolução em seus próprios termos, em cada temporalidade de nosso existir. vivemos nossas vidas aos poucos. viver não se presta a pressas e não se faz de uma vez por todas. viver é insistir e resistir na duração da própria vida-em-nós, vida que não nos pertence, porque sendo de todos, ela se fará em nós como em cada um como obra de arte singular. viver os possíveis que a vida nos ofertou, sabendo que não se trata, aqui, da imagem da semente que contem em si as potências da árvore e dos frutos. a composição que o vazio-infinito e-ilimitado requer só se virá a existir o encontro do nosso dentro com as potências de um fora, fazendo-se, por isso, a cada momento, uma criação singular, engendrada como um devir do qual não podemos supor a forma, a doçura ou a aspereza. todo o nascido nos é estranho. parimos vidas no escuro das entranhas do tempo, e dar sustentação à composição do vazio, pode fazer-nos saber que também é dar sentido às permanentes resoluções às tensões de forças que nos dilaceram. estar à altura do que nos acontece e fazer-nos artistas da vida.

VI

estava a escrever porque precisava conversar com meu vazio. amanheceu demandando inspiração e expressão. encheu minha casa de impressões e derramou-as pelas frestas.e as fiz escorrerem um pouco com estas letras.

VII

com que materiais constituímos a imagem do outro que amamos para nos fazermos cegos à sua opaca aspereza? como viemos a imaginar como indispensável o laço que nos sufoca e enfraquece? como podemos encontrar um modo de usar a vida naquelas junções que nos desconjuntam e liquefazem? como encontrar remédio para um amor ao desamor, como remediar algo que cresceu na lógica da dissemetria e da servidão voluntária? como salvar a própria pele quando viemos a compreender nossa implicação no jogo da ilusão que mantém vivo aquilo que hoje queremos mudar.

VIII

e quando, ao acordar, ainda no lusco-fusco d’alma, nos dividimos em duas: uma que observa para aprender, e a outra que adquire asas para sobrevoar os terrenos da memória, à procura das imagens que nos visitaram em sonho e que podem conferir os sentidos dos abraços e dos acenos. somos sempre duas, no mínimo. aquela que viaja em busca da felicidade e da alegria e aquela que ensina esta outra, louca pela vida. aquela que teme a vida e aquela que a quer receber e adivinhar seus segredos. medo e coragem misturados no encontro com o vazio ... e sempre reflui a tentativa de nos fazermos sustentar no ir e vir das vagas .... sustentar-nos no entre dos instantes, intermezzo no qual tudo pode acontecer.

IX

e pensar que o que não queremos nos outros e no mundo, nos ronda, nos habita, nos constitui. desejo da coisa mesma que nos explora e domina. livrar-se da coisa seria, pois, rasgar o próprio corpo para deixar passar, fazer fugir nossa prisão, ou talvez, algo dela... esvaziar-se do desamor e da decomposição.

X

e qual seria o pior coma do que esse que se nos acomete já agora em pleno estado consciente? sim, desejo “um bordão para minha canseira”.... mas minha alma já se faz caminheira e mais uma vez vejo-me entrando no labiríntico chamado do coma, em que estamos mas não estamos, somos mas não sabemos, nosso corpo está aqui, mas desacompanhado do ser ou quem sabe ao devir totalmente entregue , vivendo a experiência indizível do desenlace entre ser e saber , entre ser e esse mundo, entre a vida e a morte...

XI

quando eu lhe peço que páre e que não prossiga para não se arrepender, eu o faço para que ele páre, para que suspenda a ação que me obrigaria a destruí-lo.

XII

sim, trago um bordão para a minha canseira e ele se verga e me adentra nesta espécie de auto-esgotamento, e tudo me soa tão rústico e ordinário, tudo tão desnecessário, estamos apenas tomados de forças do mal e do desamor e elas nos fazem deste modo, passam por nós e nos deformam e já não nos reconhecemos naquele ímpeto de desamor e desprezo. a quem mesmo amamos quando somos estirados na dura trilha de um diálogo de surdos?

XIII

porque aceitaria o convite se sabemos o que significa o “sair de casa”? o que seria sugerido pelas idéias de um pensar com o fora, e, portanto para além da telinha e para além da toalha do carteado permanentemente indócil e desobediente disposto na indiferença verde, toalha-superfície – plana e lisa, na qual se dispõe o baralho que, uma vez embaralhado, passa a ser uma e mais uma vez estirado em colunas, para atingir por ordem crescente ou decrescente, não importa, o apogeu arborescente de uma hierarquia finalmente controlada, primeiro o rei , depois, logo a seguir, a rainha, (quantas distâncias a se medir neste logo depois!), naipe por naipe, cada qual em sua ramificação arborescente e de filiação, enfim o mundo organizado exclusivamente por separações, hierarquias controladas que subvertem a desordem do vir-a-ser impregnante de cada ser. encantamento com o passado, com o já estado, o já sido, tal como um arquivista encanta-se com um nome do imenso arquivo... e lá fica ... perde-se e não sabe retourner, pois perdeu o fio da metamorfose, fio do anômalo, do que o faria diferir de si e para si mesmo;.., fio que o conduziria a uma fuga de sua própria dobragem. o passado sem devir... já não sabe voltar desta viagem, deste labirinto que o prendeu em uma ou em duas das voltas, quem sabe quais? - pois, percebe-se que a força da atração não é pouca! tudo o que faz é esbravejar porque a vida não se comporta em linha reta, previsível e domável... talvez seja simplificadora tal imagem, mas tudo o que se aparenta ser é da ordem de um ressentimento e de uma ira contra o tempo que, ao passar, deforma e entorta as amadas formas anteriores. o coma, sim, o coma existencial, este estado de inconsciência em que estamos vivos sem sabê-lo, situados que estamos ao mesmo tempo fora e dentro da vida, dentro e fora da morte, habitantes da beira, do entre- tudo, no limite daquilo que somos e do que nos tornaremos a seguir, sem autorização e escolha ... a morte, este limite inexperimentável , impensável que nos relança ao próprio plano do acontecimento que nos fez existir e cujas potências, no ir e vir do finito- ilimitado já nos condenam e não nos sustentam, pois a duração é da ordem do tempo e não da eternidade e a leveza do ser é insustentável. na morte , mesmo na morte-em-vida, somos jogados na indecisão, levados, como sempre o fomos sem reconhecê-lo, por e para um torvelinho de forças que nos torce, retorce , nos causa vertigens para que voltemos ( sempre o retour!) a desejar o nosso esquálido anterior estado, de menor potência e desaceleração.

Escrever fragmentos é uma forma de dizer algo do tudo que se passa em nós... (Qui est que ce passe?) são forças que nos devoram , atravessam e dilaceram... forças que nos compõem, porque sempre se trata da composição do ser em toda a sua potência de diferir... porque teria o ser o privilégio de realizar-se mediante apenas o gozo e o prazer? não estaria também o sofrimento como um modo do ser se manifestar como potência? Estaríamos à espreita do corpo que não agüenta mais, de uma espécie de coma-esgotamento-saturação que antes de ser impossibilidade e paralização significa o máximo de desdobramento de sua imanência, somente lentificada caso sua manifestação venha ferir o direito de nossos filhos - como o outro mais amável que podemos imaginar -, virem a ser confiantes e felizes a seu modo. é neste ponto que tudo começa a se tornar ético.

XIV

atenção ao pequeno desvio, quando nossa vontade se vê realizada sem força aparente, pois foi movida à força do contágio... que bom ver isso acontecer! essa transformação – pequena, precária e, ainda, talvez provisória – que, todavia, nos revela como habitantes de uma vida digna de ser vivida.

XV

e quanto zelo para que o musgo não engula a foto pousada sobre o piano já engolido pelo silêncio dos dedos que não sabem mais tocar o sensível. paredes, portas-janelas enredadas em assombrosas redes verdes de hera-e-musgo que crescemcrescemcrescemmm enroscando minúsculos insetos e tecidas pelo olhar, pálpebras caídas, pesadas e exangues frente à tarefa descomunal de arredar as cortinas-véus de mofo-heras- e- animais, cataratas no olhar que, tais como os dedos artrosados que já não tocam o mundo, também desconhecem as imagens e os sons guardados para sempre no interior do teclado inútil e abafados pelas densas teias.

XVI

apenas vale a pena registrar: quiçás a figura da mãe ou quelque’une possa fornecer a inspiração de novas formas de andar no mundo. não imaginamos quão inspiradoras são nossas formas de existir! que o diga o velho cas freudiano do pequeno Hanz.

XVII

porquê esses domingos ensolarados insistem em manifestar tanto vazio, não tradutíveis em refeições familiares, em caminhadas pelos parques, em conversas com irmãs? porque produzem a expectativa vital pela manhã, de modo que à tarde, já nos encontramos velhas e lentas demais para os sonhos sonhados na recente manhã. porque a manhã difere tanto da tarde, porque esse andar sobre ovos à espreita do melhor atalho para encontrar a felicidade, sim, que pode estar ali, às custas somente de uma pequeno arranhão que, neste momento,contudo, apenas faz jorrar mais dor e descontentamento.

XVIII

a rústica da vida... vida vivida sem ensaio, sem pavimentações calculadas, sem espraiar-se por avenidas traçadas como antecipação dos andares... vida na cidade, em suas curvas, tal como a vivemos no dia-a-dia, sem sabermos estarmos em uma corrida... a maratona rústica da vida, do viver, do sonhar estar em sintonia com os limites do corpo, do colocar os limites do corpo em nossa medida mental e desejante, o corpo que pode entrar em curvas, escalar ladeiras ... por tempo limitado, a rústica até se transforma em esporte, arte de ultrapassar os domingos no parque...

XIX

mulheres nesta família ... o que estariam indicando? que forças estariam atualizando, seria permissível atualizar forças nunca dantes navegadas senão pelo ressentimento e pela covardia? mulheres caladas pela dependência, afetiva e econômica, caladas pela loucura, e, sobretudo, por uma prática de si que consolida para o homem o signo da autoridade. mulheres enlouquecidas, não vadias mas fáceis demais, mulheres sem-razão, adúlteras e atuantes, capazes de transformar em ato de vingança seus desamores. mulheres muito pouco mães, narcísicas a ponto de fazerem vingar como primeiros os atos que lhe conferem atenção. mulheres que à moda de esquecerem os males que produziram e seus desatinos se colocam à beira da estrada como pedintes de uma esmola que lhes acende a vontade de serem donas do que outrora julgaram possuir. adúlteras, psicopatas, iludidas, sobrevivem com a pensão da comiseração. quais tipos de homens se espelham e asseguram em tais tipos de mulheres? não seria um o avesso do outro? quem sustenta tal relação? e o que sucede à mulher que a bifurca em uma nova encruzilhada?

XX

como posso brindar com uma ausência e retirar dela aquele sorriso cúmplice que anima a prosseguir? amigos , raros são eles que, às vezes nos incitam ao ultrapassamento quando é tudo o que necessitamos para que nosso dia se faça. querido amigo peter, quantos subterrâneos nos ligam que nunca saberemos porque para decifrá-los, neles nos perderíamos.

XXI

entre olhar para a caderneta-memórias e abri-la, um mundo a acontecer! um passado, ali repousado, bordado com as emoções de cada momento vivido daquela viagem, que, agora sabemos, não foi maior quanto àquela que fazemos sem sequer nos movimentarmos de nossos lugares-tempo. imóveis, entretanto, tudo em nós se desloca e incandesce, lava-se o coração e a carne, faz-se deserto de tudo o que nos habita como passado, e vemos que podemos nos enebriar com os fulgores dos devires que brilham à nossa espera ...

XXII

e me ponho agora a lembrar daquele singelo traje azul para atravessar os dias chuvosos ... tinha então mais ou menos 10 anos. a capa azul, com capuz e, em especial, a sombrinha, de um azul-muito-clarinho, quase uma pequena lua cheia a brilhar no cinzento dia. como se aquele presente pudesse vir a fazer fugir uma , senão a maior, das amargas condições daquela cidade de barro vermelho, em uma de cujas ruas enlameadas situava-se minha casa... aquele traje azul, transportava a chuva para outra possibilidade, a de ser elegante mesmo na dificuldade, mesmo usando galochas... possuía a potência de fazer fugir certos afectos, e a sombrinha , aquela pequena lua azul, talvez operasse como uma antena de captação do sol nas difíceis e escuras tardes da infância.

XXIII

hoje, é como se o mundo já estivesse há cem anos adiante... ou atrás.... não importa, se é progressivo ou regressivo o tempo.... século vinte e dois...século vinte, tudo em minha casa desmorona: em seus gritos e bater de palmas diante da TV, estrondam mundos e vão-se os limites do suportável... não sei onde me acolher, estas linhas, de escrita , contudo, talvez possam me suportar, pois preciso, contudo, resistir... desqualificar a voz da loucura que me ronda, eu que sempre a defendi como direito à diferença radical, eu não a compreendo e a ela não me resigno quando se reveste do tão familiar e quando se transduz em mim como violência e dor. como se estivéssemos todos - aqui em casa - vivendo sob um teto rebaixado, a ponto de fazer curvar nossas espinhas. anões do viver ou insistentes em viver para não sucumbir? nunca se sabe ou saberá qual o melhor dos caminhos a que os fatos nos conduzirão... porque sabemos que tudo em nós se bifurca e que se pode fazer fugir certos mundos, captar outros que se espelham em nossa retina-desejo e que o nosso desejo cai num buraco sem fundo, e que nos deparamos com o non-sense ou com uma das coisas que nos sustentam: nosso amor: o filho, aquele a quem amamos acima de nós. - estais surpreendidos? não acreditais em nada mais para além do narcisismo? não sois, todavia, mulher-mãe. e nunca sabereis. mas eu gostaria de falar-lhes, homens do mundo, eu que escrevo tudo em continuidade, sou obstada a cada fração de meu dia, eu resisto e insisto. preciso apenas um pouco de ordem para me proteger do caos. preciso transformar em narrativa minha própria tragédia, mesmo que a cada movimento ele esteja a invadir meu quarto para assaltar-me com medos e ameaças. ele está só, e não sabe mais como viver sem mim. eu estou só. e compreendo finalmente o que foi uma vida dedicada ao desvalor de mim em troca do amparo sonhado. pensais que estou a queixar-me? zélia gattai escrevia às cinco da manhã para não sucumbir diante da agonia de jorge amado. do seu jorge amado. é certo que não terei outro amor. talvez. mas é certo que neste momento não poderei chamá-lo de meu. que coisa estranha essa transformação em mim, pois aquele que foi considerado como meu, tornou-se , assim, tão estranho, habita o meu fora, de modo a não mais amá-lo e não reconhecê-lo como meu amor! que movimentos nos habitam , esculpindo moradas tão estranhas e inóspitas?

XXIV

já estamos no século vinte e três... ou adentramos o século XIII ... nada mudou mas tudo se transformou... vejamos como se mostra a paisagem do ser... ainda não a vejo, apenas a pressinto... tudo, nesta dimensão, é da ordem da intuição e das intensidades... algo está a se fazer... o que estará sendo preparado neste devir?

XXV

tudo como é, não como quiséramos que fosse.. era hora de comer. a mulher preparou, com o melhor de si, o almoço do domingo. e ele comeu e saiu sem se despedir. quando percebeu, ele havia partido, amassando com suas chinelas havaianas a trégua desenhada nos rastros de sol do domingo... o que poderia ela estar desejando ao colocar a mesa, para além de um aceno? que o enfie no cú e, de preferência, no seu próprio!

XXVI

e tudo o que quero evitar é a autocomiseração. e tb a comiseração por tudo. nada do que escrevo está à altura do que deve estar. algo escapa sempre a essa minha vontade de traçar um sobrevôo sobre a miséria.

XXVII

retorno da aula, são 22horas, sexta-feira... procuro nos fragmentos, como denominei esta escrita, um pouco de mim mesma... aquela parte domiciliar, na qual encontro , atualmente as mais terríveis inspirações que me forçam a pensar.... lá fora “tutto va benne”... as aulas transcorrem, as bancas acontecem, o dia escorre nas oscilações dos humores. uma transpiração aderida a causas, a tarefas, a metas, e assim o viver se traça com maior firmeza e reciprocidade. difere tudo no âmbito do lar. a solidão produtiva, no trabalho, agora assume contornos de desamparo. o futuro do filho e do próprio envelhecimento não são propriamente previsíveis. tornam-se pontos indiscerníveis e de todo preocupantes, mas não se pode sucumbir com antecipações dos porvires. há que se resistir e estar à altura do que nos acontece. apenas não quero lembrar do que me acontece. que aconteça e isso é tudo o que eu posso suportar. o resto, deixo aos sonhos que falem; me encerrei na língua do silêncio. o que pode o silêncio fazer falar?

XXIX

(um pouco com Vitor Ramil/ do Ramilongas – como pude estar tanto tempo sem escucharte?)

sinto a urgência ... as coisas não tem segredo no quarto desta casa onde fico só com a minha voz.... transmuto minha vida em prosa... curta... venho pra cá em busca de mim... depois de muito tempo de estudo.. je ne sais pas ... eu guardo o mundo e ele a mim... o teu nome anda escrito no braço de minha alma, persiste como uma estrela nas horas intermináveis... no silêncio eu pego a tua mão.... teu ser se confunde no meu.... a vida após a morte.... o que a gente quer é ser feliz... a paz do indivíduo é a paz do mundo... e viva o rio grande do sul. só caminho pelo rio, nada escapa da minha visão, muito antes das chaqueradas, a invasão de santos neto, o noke de cada pedra e as luzes perdidas na neblina, quem viver verá que estou aqui. morra e vivas tu para sempre.

XX

Se um dia a morte me levar, numa saída de farra me faça torcer o alcatre, me tirem o laço ... a morte é mui mansa... que vem desarruma o mel, nos larga num corredor e dá uma espantada no céu ... me enterrem num campo aberto. em vez de velas, que eu possa enxergar a estrada, depois me deixem solito sob a colina, entre a mangueira e a tapera... que eu ouça o berro do gado,ouça o barco, e o gaguejar das coturnas ...Que eu sinta o cheiro da terra molhada da chuva, sinta o cheiro da pitanga, e o canto do joão-barreiro trazendo o barro.... vou me juntar lá no céu, que me espere no palanque churrasco gordo na brasa... vou viver na estâncias grandes desse patrão soberano....mas se lá não tiver marcação, nem carreira, eu quebro o tacho e juro que venho embora ...

XXI

AH! Ah! Si va, si, no, vas......... extremo sul .... ah!, si, no, vas....

XXII

(do filme argentino: Cleópatra)

“coisas terríveis acontecem na vida ...” ........................... ...... .............. ,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ...........! ...................................... ........., ............jaojtdonnfikm...............................?

AH! Que momento! Para os meus sentimennnntos saírem livremente,

minha vida vai desaparecendo,

buscando a saída e um céu imenso que me fascine.

Lá no fundo me espera um amanhã que em versos é tão feliz...

“Ah que momiento! Para que meus pensamentos se libertem de mim....”.

XXII

fazer o que quero, fazer o que devo, OU não fazer nada, só ter que me sentar e pensar...

XXIII

“se perguntarmos por que não bastaria a saúde, por que a fissura é desejável é porque, talvez, nunca pensamos a não ser por ela e sobre as bordas e que tudo o que foi bom e grande na humanidade entra e sai por ela, em pessoas prontas a se destruir a si mesmas e que é antes a morte do que a saúde que se nos propõe”. (Gilles Deleuze, Lógica do Sentido)

XXIV

minha pobreza, minha paciência

minha dor, minha luta, minha invenção, meu desespero.

XXV

quinze, quinze anos de vida, idade tão bela e tão bobinha em que me parecia a um tufo em que a humanidade toda se metera. queria casar, queria ter filhos, queria ter uma casa bonita, queria ser feliz desta maneira, mesmo vendo e sabendo ao meu redor que essa maneira não levava a muita coisa senão à conformidade e ao desespero.

XXVI

essas figuras que me entristecem, quando as vejo de relance e neste relance posso antecipar todo o seu estado. aquele menino, acompanhando sua mãe, meio gordinho, mas não tanto, ela séria, como se fosse ter com o cadafalso, ele sem sabe-lo, acompanha-a. leva consigo todo um modo de não saber, todo um modo de andar sem escolher o caminho, toda uma incógnita para a qual não se dispõe a decifrar. a vida corre momento a momento. vive os dias e as noites um a um, como se fossem únicos e irrepetíveis, ainda tudo se faz novidade na mesmice de seu mundo.

XXVII

estava pensando no pensamento como feridas que se abrem bruscamente em nós e que se não nos apurarmos logo coagulam e permanecem no grande silêncio de onde emergiram. nunca dizem o que vieram dizer, por ter-lhes faltado um olhar e talvez uma coragem. rápidos pensares, abre-se e fecha-se o corpo como um pulsar de um coração.

XXVIII

sinto todo o trabalho que devo fazer estagnado em minhas veias ainda sob forma de vontade e as flechas que lanço às vezes não conseguem atingir as palavras soltas que voam quando estou a lavar a louça e o meu pensamento a voar. são tantas que me aparecem... e logo se vão, no movimento d’água no ralo.

XIX (até parece séc. dezenove!)

tratar-se-ia em primeira e única instância de mergulhar novamente na vida maior, senti-la apertada nessa vida pessoal e pequena, senti-la atormentada por não ter sabido antes e tampouco agora como fazer com o amor e o amar não se tornem violência a si.

XX

paralisação das vibrações em nome de uma felicidade representada como ideal... a felicidade familiar, todos reunidos em volta da mesa, filhos e enteados, mão, pai padrastos e madrastas podendo amar para além dos laços consangüíneos... essa amizade incondicional, essa pretensão a se tornar pretendente eterno daquilo que se ama e que sempre nos escapa e nos provoca vertigem, suportar o mal estar do estranhamento dos familiares, a vertigem do familiar, tudo vindo abaixo como água insistindo em procurar sua saída, como areias movidas por ventos incontroláveis, sim, assim eu construí meu mundo por trinta anos e tanto, pensando ser possível formar família com estranhos, não os quero mais, vejo-os hoje como abutres curvados sobre a pequena carniça. enganados que estão a respeito da riqueza e dos estoques cifrados que vislumbram de seus sombrios presságios. se estes valem, valem devido ao modo como foram adquiridos e legitimados. de estimação, tudo que aí está ultrapassa essa noção de objeto estimativo. é estimativo sim, mas não sem valor, pois se assim o fossem não seriam cobiçados, tal como este velho computador ou mesmo algum antigo álbum de fotografias que certamente estarão fora da cogitação na partilha. trata-se de caras que não prezam a história e suas passagens. fixaram-se a uma delas, a que lhes concerne, para se tornarem vítimas de circunstâncias que poderiam ser ultrapassadas. pois não as ultrapassaram. não ultrapassaram-se. jazem , pequenos, em suas memórias deformadas. preferem a história ao tempo, o passado ao devir, o ressentimento e a má consciência do que a alegria da superação e dos bons encontros.

XXI (século 21?)

não sei porquê, mas associo os números romanos aos séculos. mas isso nada tem a ver com o correr deste pensar... porque de tanta vertigem um dia a pessoa cai.... em si.... e se procura e precisa orientar-se para reaprender a ser a si mesma. para saber de si, ela leva um tempo, ela tece uma narrativa e às vezes o faz como Penélope, com medo de perder seu Ulisses. mas certa vez, o tear se impõe. ele é gigantesco, porque nele cabe uma vida inteira. desde a vida de outras vidas na sua. as figuras da avó, das tias e da mãe transformam-se em sofrimento e ela passa a ser todas as mulheres, vê-se vivendo somente um passado, em busca de uma fantasia pré-fabricada de que o amor poderia virar casamento e este transfomar-se em amparo e proteção. nos cem anos que comporão o próximo século, estará, até que a vida a sustente, buscando novas mulheres, não familiares, até estranhas demais, pois na condição sempre de torcer o dito, o escutado e o próprio vivido. uma vida nova na velhice?

XXII

a crueldade como causa do assombro... transformando a potência de vida em medo. o que mesmo eu temo? qual é o meu medo? o de não ser amada por alguém que só ama a si e ao seu passado? o de não ser respeitada por alguém que não se respeita porque não se escuta e se dissocia condenando ao silêncio os pensamentos que iriam fazê-lo ver presa fácil da culpa e do desamor?

XXIII

é como se estivesse em uma beira de mim. da beira, olho o terrritório. passo-lhes os olhos, e com eles , busco seus cheiros, suas reentrâncias, sua textura. olhar que sente e que cavalga as ondulações. torna-se tátil e pode também aspirar os ares de uma certa atmosfera imaterial em que se mergulham território e o próprio olhar. há zonas ocupadas e outras vazias. há também algumas ordenadas e há outras um tanto desajeitadas, nas quais encontro pilhas do por fazer, do por sentir, do por vir... o desejo se dispõe em pilhas. os hábitos se dispõem em superfícies lisas e nos deixam deslizar. frente às pilhas, somos um por fazer-nos. Vertigem e ao mesmo tempo possibilidades. nas pilhas do não-organizado, ainda não somos, mas elas guardam aquilo em que nos estamos tornando. nas pilhas encontramos mundos dobrados, ainda mudos e não visíveis. guardados, só virão a ser quando os abrirmos em nossos corações. das pilhas do por fazer, do por viver, murmuram as águas de um rio que quer ultrapassar a secura das fronteiras do Fora. rio-homem que quer entrar em contato, penetrar a carne para fazer-se humano, fazer-se da inconstância e da ilimitada potência de desdobrar-se a cada dobra e dobrar-se novamente a cada desdobra. rio-plissado que carrega o coração do homem. e o de uma mulher.

Tânia Mara Galli Fonseca é professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS)