tendo vivido sua infância no interior, sabia, até hoje, mesmo quando em meio ao tráfego da grande cidade, observar a solenidade das árvores e seu particular silêncio. apreciava, então, desde menina, sentir-se misturada à paisagem que exercia o estranho poder de torná-la desapercebida, mesmo que estivesse ali, como que suspensa como a névoa que as árvores tão bem sabem sustentar nos seus ramos. colando seu olhar à paisagem, descobria-se com a sensação de estar fora, longe e sozinha no meio do mar e sentia-se fascinada ao experimentar o vacúolo de silêncio em meio a tantas outras vibrações que teimavam sempre em rodeá-la. buscava viver em seu território, construía-o em torno de si e segurava-o pelo fio de seu olhar, compondo-o, recompondo-o, criando-o de novo quando o fio do contorno arrebentava. Olhar e sentir as árvores, aproximava-a da terra, das estações, das variações de um só dia e mesmo aquelas imperceptíveis de um só momento. gostava de verificá-las em seus diversos estados: árvores grandes, pequenas, frondosas, miúdas e estreitas, floridas , desfolheadas, árvores como volumes da carne do mundo. apreciava muito a bouganville, mesmo que, por sua aparência, parecesse ao vulgo mais como uma planta de jardim, do que propriamente uma árvore. quando florida, a “três-marias” como também é chamada pelas gentes menos francesas, fazia nascer e renascer o verão. Este, sem seu colorido, desvestia a paisagem e subtraía-lhe algo potente e atmosférico. uma bouganville florida no jardim ou pátio, derramando-se pelos beirais de portas e janelas, deitando-se, vistosa, sobre telhados, era capaz de fazer, por si mesma e por seu modo de existir, o verão. ao vento, deixava cair sua pequenas flores, atapetando o chão de cores e maciez. quando estivera na Califórnia, encantara-se com a poda e os arranjos que acomodavam as exuberantes plantas ao pé de casas e muros. na infância, convivera com uma, na casa de sua tia-madrinha, que botava para fora florzinhas roxinhas e esmaecidas, constituindo-se o mais rico adorno que aquela paisagem doméstica oferecia, junto da frondosa erva-mate, verde como esmeralda, alta, abundante e rechonchuda. quando teve seu próprio jardim, pensou que seria bom trazer-lhe também essa estranha potência de verão que compõe a bouganville e sua floração. plantou-a ao pé de uma grade no jardim dos fundos da casa. trouxera a mudinha da floricultura da praia, quando, em férias, achava mais tempo para tecer jardins. pedira ao vendedor uma que ficasse grande e que florescesse à vontade; queria para si, a mais linda de todas e mais precisamente definia aquela que bordava os ramos e encobria o solo de um vermelho indefinido. não sabia se poderia chamá-lo de fúccia, ou talvez vermelho rubi. não importa. o que importa é que não seria aquela roxinha esmaecida.tida como a mais comum. os anos caíram bem sobre a planta que “fez casa” junto à grade, enrolando-se nela e obtendo suporte para a sua subida em direção ao azul. quando florescia, contrastava com aquele abismo invertido que a sugava para cima ao mesmo tempo que parecia admirá-la. tornou-se forte, generosa, florescia muito, produzindo e prolongando muitos verões na casa da família. trazia-os para o jardim, para a casa, para os olhos. seus ramos floridos ajeitavam-se em vasos pelos cômodos e eram até mesmo presenteados às visitas mais queridas. seu verão, assim, era levado para muitos lugares, mesmo para esferas transparentes de vidro onde eram acomodadas as flores colhidas do chão e não desperdiçadas. transformava as esferas em pequenos aquários de vidas secas, gotas redondas de sangue e delicadeza dispostas na estante de livros. veio o outono. ela agüentara muitos deles e dançava vistosa ao seus ventos fortes, sacudindo sua ramagem, deixando cair os últimos pingos de verão que ainda restavam em seus ramos. nesse ano, o vento, certa vez, foi violento. ela, encravada que estava na grade de ferro, viu a mesma descolar-se de sua fixação no muro deitando-se por terra. os passarinhos que fizeram dela seu abrigo e habitat, fugiram assustados, deixando ao léu os ninhos que nela fabricaram. vieram o machado e a serra para cortá-la, o depósito de entulho para recolhê-la ao lixo, e, em seu lugar restou um vazio , sem pássaros e mais um céu azul olhando perdido à procura de fazer sombra. a mulher retornava sempre que podia para espreitar os movimentos que se sucederiam naquele vazio que se formara e alimentava um lamento indizível pelas perdas acontecidas na queda: verão e pássaros eram suas dádivas e seu modo de dar graça ao mundo. hoje, passeando os olhos pelo terreno, observou, uma tímida e pequena floração rebentando junto à grade que de novo fora erguida. inclinou-se e teve certeza: a bouganville renascia do fundo da terra, ainda frágil como criança que não sabe falar, que não sabe a direção que tomará e também desconhece a atração do sol e a fúria dos ventos. estamos no outono, mas a mulher já sabe que o verão arrebentará de dentro da terra. isto aconteceu. a nova brotação é incipiente. sabe-se que levará anos para atingir alturas e flores. mas virá para encantar outras infâncias.
|