Da boca do homem escorreram frases raras. Perfeita masturbação da língua. Nenhum defeito semântico na combinação. O verbo, que tecia o fio condutor, estava no presente do indicativo, tempo das verdades universais. Seria um poeta?
Ela suspirou profundamente e ajeitou-se na cadeira – havia uma inquietação em seus movimentos – sentindo as frases subir-lhe ao cérebro em espirais e promover caracóis em sua cabeça. Se olhasse firmemente nos olhos dele, cairia em êxtase.
A mulher de olhar úmido estava desconcertada. Há muito, não alimentava os desejos que agora duplicavam e reduplicavam. No rodopiar da conversa, a imagem casta de um pensamento antigo dilatou sua íris e um pequeno radar detectou o perigo. Súbito uma bifurcação: acolher as palavras ou remar contra a ternura? O olhar negro apalpava seu corpo. Formigação de imagens e possibilidades. A vida é feita de escolhas, e ela, apesar de resistente, sempre cedera ao amor. Talvez por isso, os olhos úmidos banhados por uma lágrima que não escorre. Diante das circunstâncias, preferiu proteger-se do olhar com força de laço.
Levantou-se com dificuldades como se o corpo fosse uma grande montanha onde pesam as escolhas. Na boca, um último gole de vinho para ingerir a insatisfação. Ele não insistiu para que ela ficasse. Teve esta oportunidade quando o lenço de seda esvoaçante, empurrado por um vento invisível, escorregou de seus ombros, mas não o fez. Sem demonstrar o ressentimento, ela sorriu com todos os dentes e arrastou o destino como se arrasta um fardo.
Caminhou pelas ruas com um lento desejo martelando o corpo. Se ao menos ele percebesse, se ao menos adivinhasse o porquê de seus olhos difíceis e aparecesse em sua frente com um botão de rosas, ou lhe tomasse a mão e andassem pelas ruas em meio a sirenes, músicas, risadas... Incorreriam ao ridículo? Absolutamente. Nada pior do que não ser correspondida. Nada pior que a distância afastando dois corpos que podem não mais se encontrar. Ele não moveu os pés do lugar. Individualista que era. Nem deve perceber que a terra gira. Como pôde supor que ele fosse um poeta? Deve ser um ilusionista. Sincero na arte de iludir. Depois a magia se desfaz e resta você com aquele complexo de imbecilidade.
Mas, e se fosse de fato um poeta? Tivesse a capacidade de esticar o tempo, amor agudo em sustenido ultrapassando todas as barreiras... Talvez inventasse uma música para ela, uma música que dobrasse seu dorso e lhe arrancasse todos os beijos possíveis e etc, e etc., atitudes demasiadamente conhecidas para que valha a pena descrever.
Suposições! Não poderia encaixá-lo nesse perfil. Um homem com essa sensibilidade conheceria as regras femininas. Sair quando se quer ficar, é regra antiga. Não, não devia pensar assim, ela é que era hipócrita, carregava aquele coração intrincado e cheio de remendos. De que adiantou recolher o corpo se o espírito persistia em permanecer diante da luz amarela dos olhos dele?
Da boca da mulher, não escorria o verbo fácil da compreensão. O tempo era mais que perfeito, mas nenhuma conjugação profética, nenhuma promessa a se fazer sentença. Era movida por uma ciência estranha, próxima e distante. Elegante escultura de concretagem fria e, acrescente-se a isso, beleza na medida exata. Aproximava-se das deusas, em seu encanto, fêmea de traços redondos e olhos afastados. Seria uma aventureira? Que fosse! Correria o risco, inclusive o de ser esculpido pelos elípticos caprichos dela.
O tempo breve para se apreciar uma garrafa de vinho, foi o tempo que o homem teve para observá-la. Os lábios tingidos de um rosa-gerânio poderiam ser indícios de paixão vindoura. Poderia ser o vinho tinto, poderia não ser. Mas nada, nem voz embargada, nem tremor de mãos a denunciava. Talvez estivesse acostumado a mulheres que jogam o cabelo para trás, deslizam as mãos pela mesa como se estivessem procurando um lugar no mapa e, subitamente, as pontas dos dedos se tocam. Depois, os dedos dele fariam o caminho inverso, procurando algum lugar no mapa da pele dela.
Entretanto, a moça pousava o copo na mesa com segurança e, ria-se quase acanhada. O olhar úmido encharcava-se, a água quase chegava as bordas ameaçando alagar todo o rosto, mas como num milagre, o fenômeno das lágrimas não ocorria. Uma leitura difícil de se fazer. Exigia conhecimento científico. E ele empenhado em recorrer a artifícios lingüísticos para ajustar o vocabulário, tendo o extremo cuidado de preservar ambigüidades.
Segundo teorias masculina, mulheres gostam de frases duvidosas. Ainda assim, quando brotava a voz, supunha-se navegando nas ondas de uma quimera. Tentava retomar o discurso com adjetivos mais ousados, mas por que se resguardava? Um pouco de atrevimento não seria mal algum. Mas, e se ela não acolhesse os significados? E daí?
Daí... era forte o bastante para suportar. Bem, naquela idade seria desastroso não prever a reação de uma mulher. Uma rejeição é uma dor. Ela, cada vez sorria menos e tinha a voz mais ligeira. Fingiu não entender algumas vezes, só para vê-la novamente abrir a boca como uma ostra cheia de pérolas, teve vontade de botar o dedo ali, naquela área úmida do mapa. Quase teve o ímpeto, quando o vento soprou nos panos azuis caindo sobre o colo. Gestos desgovernados tentavam encobrir o imprevisível. Hora de cair, num susto, daquela ponte movediça e ferir toda castidade. Mas, a maldita mania de viver a vida na exata medida que ela permite, dentro das fórmulas, dentro do correspondido, o impediu.
Ela levantou-se, tomou o último gole de vinho e foi-se. Ainda o olhou firme, pela última vez, como se olha uma noite negra e traiçoeira. |