LUCILENE MACHADO
Coreografia invisível
Index

Coreografia invisível
O ciclo de um vocativo
Escutando a vida
Vinho tinto
As horas
No silêncio das retinas
Sequência de sonho
Do coração de uma mulher
Jornada da alma

As horas

Ele passa sempre às dez e quinze, com o mesmo assobio malandro. Às dez e quatorze, vou para a janela, e desço as escadas assim que ele firma a viola no chão e me faz um movimento de reverência. Rimos pela rua afora como dois cães viralatas que se contentam com qualquer sobra de festa. Depois me diz que logo a vida dará uma guinada, que vai gravar um CD, que tem amigos influentes e etc. Eu arqueio as sobrancelhas e movimento as pupilas com o espanto de uma primeira vez, sempre fingindo, porque conheço esse seu pesadelo obsessivo de se tornar celebridade e não quero imputar-lhe uma dor capaz de despertá-lo do sonho. Continuamos o percurso com nossos passos calculados, criando pretextos exatos para que às onze em ponto, ele comece o show. Ele sabe, ainda que negue, que seu destino será tocar em bares em meio à fumaça dos cigarros e à esperança tosca que lhe oprime a garganta num nó de amargura. Às vezes, disfarçando a insegurança, pergunta-me se acredito em seu talento, sabendo que haverei sempre de gritar pelos quatro cantos da alma que sim, que sim, que sim. Diz também que a vida vale pelo fato de eu existir e promete não me esquecer no dia em que o mundo reconhecer sua arte. Indiferente, o aplaudo e faço minha reverência. A rua é o nosso palco. Ele sobe na pilastra de um terreno e ensaia um grito de vitória. Eu rebato, da platéia imaginada, com “viva!” e “magnífico!”, forjando em mim o que pode ser melhor em termos de pieguice. Depois, ele cruza minha mão com a dele, leva-a até ao peito e enverga-se para beijá-la com ternura. Às dez e cinqüenta me diz que, se quero beijá-lo devo aproveitar o momento antes que chegue a fama. E eu o beijo com loucura, passeando minhas mãos clandestinamente por baixo de sua camisa, vasculhando seus pêlos e sentindo seu cheiro de grama molhada. A língua ocupada em medir nossa distância é a mesma que tenta desenrolar a frase: “é esse peão que eu amo, que eu amo, que eu amo”. Às onze, volto para casa ouvindo os primeiros sons de sua voz a me despertar desejos insólitos.