Queria contar-lhe que assisti ao filme Jornada da alma que relata o amor de Sabina Spielrein, uma judia russa e seu psicanalista, nada mais que Carl Gustav Jung . Um drama real que abalou as estruturas da psicanálise. O amor deles era tórrido e quase secreto, como o nosso. Amantes sem quarto, amantes sem rumo, amantes à margem da história. Ele era casado, velava pela imagem de discípulo de Freud, além de uma racionalidade enriquecida pelos princípios psicanalíticos, o que o fez abdicar do amor em nome de uma posição acadêmica e intelectual, isso após experimentar uma felicidade brutal com Sabina. No entanto, saiu elegantemente do palco, sem um fio de cabelo fora do lugar, evitando reflexões e apegando-se aos farelos da teoria.
Ela era colérica, sempre às voltas com os imbróglios, com as cólicas e contorções que a vida lhe impunha. Tinha o desespero das palavras. Movimentava a caneta com o pensamento e empurrava para um diário a dor que lhe impingia a alma. Os gritos da revolta misturavam-se à doçura de seus sonhos encantados. Sonhava com marte e com todas essas coisas impossíveis que povoam a cabeça de uma mulher. Guardava notas de piano como recordação e esculpia gatos em argila. Viveu a loucura vigiada por paredes ásperas e chão frio. Rodopiou por jardins entre árvores grandes e molhou-se com o próprio sangue. A sanidade lhe fugia por entre os dedos. A mesma sanidade que mais tarde a fez conhecer e desconhecer o homem.
O amor foi o ponto forte de intersecção entre eles. Devotaram o melhor que tinham. O corpo, a alma. Ofereceram-se em libação, absolutos. O corpo em sacrifício da mente. Atingiram o ponto mais sublime do amor. Expandiram-se mentalmente. Atravessaram espaços incomensuráveis até a relação escapar-lhes num final fatídico. Ele acovardou-se ancorado em boas justificativas. As palavras medidas e calculadas abriram feridas no corpo de Sabina. E ela, excessiva em sua paixão, adoeceu de uma dor cruel, sangrou, tentou todos os lenitivos possíveis e, numa avalanche de revolta, seguiu para um outro país. O seu país. Precisava diluir aquele amor. Precisava viver. E viveu. Era resistente como uma fênix. Mas nunca deixou de amar aquele que era o seu homem, sua alma gêmea. Chorou no escuro, escreveu cartas, dançou sozinha, teve febre de silêncios e morreu sem olhá-lo nos olhos outra vez. Quanto a ele, teve ainda muitos anos de vida, filhos e uma carreira muito bem sucedida. Se foi feliz? É possível que sim. Os homens costumam confundir coragem e covardia e dificilmente se culpam por rasgar a alma de uma mulher.
Daí, você deve estar pensando que escrevi nas entrelinhas. Que Sabina sou eu. Eu tateando no escuro para achar palavras de significados concretos que lhe atinjam por caminhos indiretos. Eu que vivo a desordem do meu vasto querer e não me importo em arriscar a vida, porque creio que só assim se vive plenamente. Eu que já vivi o claustro da loucura e sonho com coisas impossíveis. Eu, ariana impulsiva regida por marte. Eu que não tenho medo de recomeçar, que não preciso de pátria, etc e etc., sobretudo, eu que tive a alma rasgada no momento de sua maior lucidez.
É verdade que Sabina se parece comigo. Vi retratada nela a minha loucura de viver e chorei porque me vi num espelho. Todas as coisas que a sufocam estão em mim. Mas sou diferente. Não morreria amando um homem que se acovardasse por qualquer que fossem os motivos. Ainda que esse homem estivesse ancorado na razão. Sou rancorosa e áspera. Mas morreria por minha própria decepção, em nome da tristeza, da dor... morreria de solidão nesse mundo tão imenso... morrer é tão fácil. Agora mesmo, posso me descuidar e zás trás, abrir minhas asas. Mas se você fosse psicanalista, saberia que só o amor me faria voar. Saberia que meu rancor é também amor, minha fúria é amor, meu orgulho e meu desejo categórico de nunca mais olhar em seus olhos também é amor. Até meu ódio é amor. Por isso toda minha aspereza anterior e póstuma será perdoada. Mas parece que estou aqui pedindo perdão para morrer. Não, não quero morrer nunca. Morri só pra você. Quem contempla o pôr-do-sol da minha janela não pode desejar a morte. A terra bebendo o sol com línguas de fogo e a noite avançando quieta e tomando conta do mundo. Também vigio o mundo daqui. Antes de dormir olho o céu, vejo a estrela que meu pai me deu quando eu ainda era pequena. Meu pai me salva da idéia genérica de que o homem tem um amor menor. Meu pai e meus filhos. Minha maior contribuição para com a humanidade foi ensinar meus filhos a amar. E meu maior orgulho é ver que eles aprenderam. Também tive falhas como mãe. A maior delas foi não ter dado a eles uma estrela quando ainda eram crianças. É preciso ser criança para ganhar uma estrela e acreditar que se será guardiã dela para todo sempre. É tão bom ser dona de estrela! É como ser dona de flores e de poemas que não se escreveu. Mas um dia hei de escrever, não para você, que me fez sentir como uma fruta roída por dentro. Foi um desprezo que tive a humildade de aceitar. Há momentos em que é preciso aceitar a perda. Perda da esperança. É tão difícil se livrar da esperança! Você sacode com toda força sua caixa de pandora mas ela continua lá grudada nas paredes, no rótulo, no fecho... ou no seu próprio inconsciente com uma voz fininha a cochichar afetos em seus ouvidos. A esperança é uma aranha diligente que aproveita qualquer fio para construir sua casa. E quando você percebe, já está enredada por aquelas teias pegajosas. Vem a tormenta, o vendaval, o terremoto... e a esperança ali enganchada em qualquer galho seco. Poucas coisas são mais resistentes que a esperança. Pouquíssimas. Eu a rejeito todos os dias, mas a vejo pelos canto da casa, pelos cantos da vida a me olhar enviesada. Parei de proferir frases imperativas. Ela que se dane e viva sozinha sem mim. Eu vou sobreviver porque sou teimosa. Você vai sobreviver porque eu morri para que você continuasse vivo. Alguém tem de perder para que alguém possa ganhar. Mas ganhar o quê? Gostaria mesmo de saber o que foi que você ganhou. Sabina recolheu-se para que Jung fosse feliz. Imaginou-se promovendo escândalos de várias ordens, mas conteve-se, falou pelas entrelinhas e ele entendeu. A propósito, ele engoliu a dor com bebidas e manjares entre uma e outra defesa da psicanálise. Mas quem pode atirar a primeira pedra? Ninguém está completamente errado, até um relógio parado acerta duas vezes ao dia. E às vezes você está certo por não acreditar no amor. E por isso você é tão bem ajustado. Quem não ama não possui a forma contrária correspondente. Quem não ama também não odeia. Sente pena só. E recolhe-se para não agredir o outro com esse sentimento tão desprezível. Tudo é desprezível quando não se ama. Eu quero morrer de amor quantas vezes forem necessárias. Quero veias sangrando, coágulos vermelho escarlate, paroxismo... Sou ávida de vida, quero tanto quanto ela possa me dar. Ela muito me tem dado. Muito me tem tirado também. Mas quero continuar nesse superlativo, sou imprópria para homens comedidos. Preciso de um arquivo grande. Preciso de um aeroporto com falas em todas as línguas. Sou gramatical demais. Tenho uma vontade quase imoral de dizer palavras. Que o amor adoce minha boca, porque a palavra não é sentimento. A palavra é uma ferramenta horrorosa. Todos os dias me arrependo delas. Toco piano para compensar. Mozart, Handell, Vivaldi... alcanço as notas com a minha língua. Deus! Se eu tivesse essa genialidade. Eu não toco, não senhor, só com a boca. Minha língua passeia por todas as escalas. Sou capaz de um sustenido impressionante: si be mol. Mas não mostro. Só para os íntimos. E você não é íntimo. Você me ofendeu chamando-me inteligente. Foi um meio para se livrar de mim. Foi o “através”. Inteligente é uma palavra que não cabe nos rituais de adeus. Ela dói porque fica mal associada. É como se quisessem dizer: não vai doer nada, já já sara. Mas não sabem que é uma ferida seca que descasca e não sara. Isso não é drama não senhor, mais respeito que agora eu sou o seu fantasma, o fantasma que você irá buscar no ponto mais profundo de si, na hora da sua velhice. Velhice lenta que vai cavando um buraco no estômago e os mesmos pensamentos martelando o cérebro, insistindo na reflexão da vida, e vida, meu caro, é amor. É a hora dolorosa da verdade, e a única verdade que permanece é o amor. Você não terá como fugir, vai se lembrar que meu amor preenchia um campo de futebol e ainda escorria pelas bordas. Diz que isso não será verdade, diz! Um velho, um cão e um fantasma caminhando pela praia. Uma vingança que me faz sentir bem. Mas de que vale, se já não mais me lembrarei de nada? Já terei esquecido até os poemas que você me escreveu e decorei em forma de gratidão. De que vale a vingança se tudo termina? Não quero ser profeta, nem escriba, basta-me amar intensamente. Todo o resto é conseqüência. Eu poderia ser gélida, esguia, metálica... e sair do palco à francesa, na ponta do salto, de rímel e batom, como você se habituou a ver. Mulheres que não derramam uma gota de lágrima, mulheres inteligentes, como você quis acreditar, mulheres de atitudes equilibradas e elegantes. Mas eu rolei ao rés-do-chão, tive febre, catapora, varíola... (eu que pensava que a varíola já estava extinta) fui burra em tempo integral. Mas, continuarei a ser uma mulher simples e ingênua. Um misto de camponesa e estrela. Ingênua, mas com brilho próprio, ouviu? Você não vai ouvir nunca, porque esta carta jamais chegará a suas mãos. Esta carta é minha. Este amor é meu. Esta história é minha. E agora me dê licença e, se vale como despedida, repito o que disse Erasmo: do fundo do meu coração, não volte nunca mais pra mim.
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