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3. As estratégias de van Dijk |
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Proponho, agora, que retomemos as estratégias referidas para analisarmos, a título ilustrativo, algumas passagens da Carta Apostólica Mulieris dignitatem, publicada pelo Papa João Paulo II em 1988, a primeira Carta Apostólica dedicada ao tema da mulher. Será necessário começar por dizer que se assume aqui que a Carta Apostólica não constitui um texto escrito por um colectivo que incluísse mulheres em situação de decisão ou intervenção directa no discurso. Esta referência parece-me ser importante na sequência das menções anteriores que estabelecem uma distinção entre o grupo (“nós”) enunciador e o grupo (“os outros”) que é objecto de enunciado. Aliás, o primeiro número da Carta (que citar a partir daqui apenas como Mulieris dignitatem) inscreve-a na sequência dos textos do Magistério, os quais, na situação passada e actual da Igreja Católica, nem foram, nem são redigidos por mulheres (começando pelo Papa Pio XII, passando pelos Papas João XXIII e Paulo VI, pelo Concílio Vaticano II e por diversos Sínodos). Porquê retomar aqui as estratégias de van Dijk? Precisamente porque se referem a enunciados de pessoas em lugar de poder (mais que não seja, de poderem fazer discursos!) e porque se referem a formas de descrever a relação que se estabelece entre o “nós” (no caso dos parlamentares – os nacionais, no caso da Mulieris dignitatem – o Magistério) e os “outros” (no caso dos parlamentares – os estrangeiros, no caso da Mulieris dignitatem – as mulheres). Presume-se, além disso, que estamos diante de uma relação desigual (só alguns têm o poder de definir!), verbalizada através de um discurso de aparente discriminação mitigada ou disfarçada. Retomemos, então, os diversos aspectos da estratégia de van Dijk, respigando algumas passagens do texto papal seleccionado: - Logo no nº 1 da Carta em análise, diz-se que “a dignidade da mulher e a sua vocação (…) têm assumido, em anos recentes, um relevo especial”. Em seguida, afirma-se que o Magistério da Igreja constitui uma das provas disso mesmo, portanto, a Igreja é mencionada como uma das instituições que tem reconhecido as mulheres. Trata-se de uma afirmação que pode bem ser entendida como coerente com a estratégia de apresentação positiva da instância enunciadora do discurso, na perspectiva de van Dijk, já que deve ser contratada com as afirmações, por exemplo, de Padres da Igreja, que se referem à mulher associando-a directamente ao pecado, portanto, àquilo que é contrário à salvação. Recorde-se Geoffroy de Vendôme, que, no séc. XI, escrevia o seguinte, referindo-se à mulher: “Esse sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era também o seu marido e o seu pai, decapitou João Baptista, entregou o corajoso Sansão à morte. De certa maneira, também matou o Salvador, porque, se a sua falta não o tivesse exigido, o nosso Salvador não precisava de ter morrido. Maldito seja esse sexo no qual não existe nem temor, nem bondade, nem amizade e que deve ser mais temido quando é amado do que quando é odiado.” (PL 157, col.168). - Estas afirmações são dificilmente conciliáveis com a ideia de uma Igreja cujo discurso seja demonstrativo do “reconhecimento das mulheres”. É óbvio que, apesar de nunca terem sido alvo de nenhuma retratação oficial por parte da Igreja (as mulheres não foram incluídas nos pedidos de perdão apresentados pelo Papa João Paulo II), são incompatíveis com a apresentação da mensagem cristã como a boa-nova da fraternidade universal, pelo que o discurso actual se pauta, muitas vezes, mais por omissões do que por afirmações danosas ou mais por declarações mitigadas do que explícitas, optando, frequentemente, por transferir as afirmações negativas sobre as mulheres para as reservas face aos movimentos feministas. Estes são tidos como duvidosos e até como culpados do “desvirtuamento” do feminino. Assim, pode ler-se na Mulieris dignitatem: “Nos nossos dias, a questão dos ‘direitos da mulher’ tem adquirido um novo significado no amplo contexto dos direitos da pessoa humana. Iluminando este assunto, constantemente declarado e de várias maneiras recordado, a mensagem bíblica e evangélica guarda a verdade sobre a ‘unidade’ dos ‘dois’, isto é, sobre a dignidade e a vocação que resulta da diversidade específica e originalidade pessoal do homem e da mulher. Por isso, também a justa oposição da mulher face àquilo que exprimem as palavras bíblicas: ‘ele dominar-te-á’ (Gen 3,16) não pode sob pretexto algum conduzir à ‘masculinização’ das mulheres. A mulher – em nome da libertação do ‘domínio’ do homem – não pode tender à apropriação das características masculinas, contra a sua própria ‘originalidade’ feminina. Existe o temor fundado de que por este caminho a mulher não se ‘realize’, mas venha, ao invés, a deformar e perder aquilo que constitui a sua riqueza essencial. (…) Os recursos pessoais da feminilidade certamente não são menores que os recursos da masculinidade, mas são diversos. A mulher, portanto, - como, de resto, também o homem – deve entender a sua ‘realização’ como pessoa, a sua dignidade e vocação, em função destes recursos (…), que ela recebeu no dia da criação e que herda como expressão, que lhe é peculiar, da ‘imagem e semelhança de Deus’” (nº 10). - Estas afirmações podem ser consideradas ilustrativas da estratégia que concilia a negação aparente da discriminação com a atribuição ao próprio grupo discriminado de comportamentos “culpados” pela subalternização a que é sujeito por parte do grupo dominante. No fundo, a Igreja não tem nada contra as mulheres, mas se elas quiserem deixar de ser “femininas”, é “óbvio” que a Igreja tem uma palavra a dizer sobre o assunto – uma palavra “firme” ainda que “justa” (para utilizar os termos de van Dijk). Experimentemos alterar os termos do texto e substituir a palavra mulher(es) por negro(s). Vejamos se nos revemos no resultado: “O negro – em nome da libertação do ‘domínio’ do branco – não pode tender à apropriação das características dos brancos, contra a sua própria ‘originalidade’ negra. Existe o temor fundado de que por este caminho o negro não se ‘realize’, mas venha, ao invés, a deformar e perder aquilo que constitui a sua riqueza essencial. (…) Os recursos pessoais da negritude certamente não são menores que os recursos da ‘branquitude’, mas são diversos.”… - As palavras do Magistério relativas à interdição do ministério ordenado às mulheres poderão ser interpretadas igualmente como uma estratégia de firmeza justa: a legitimação desta proibição, sendo “firme” (isto é, peremptória), é enunciada como derivando a sua justeza dos elementos centrais ao cristianismo: a) da própria instituição da eucaristia, à qual, na perspectiva do Magistério, está também ligada a masculinidade do sacerdócio: “eles estão com Cristo durante a última Ceia; só eles recebem o mandamento sacramental: ‘fazei isto em minha memória’ (…), ligado à instituição da eucaristia”, como diz o texto da Mulieris dignitatem (nº 26); b) da simbologia da Igreja como Esposa e de Cristo como Esposo, o que, na perspectiva do Magistério, significa que, embora a Igreja – Esposa – possa ser simbolizada por homens e mulheres, Cristo – Esposo – só pode ser representado por homens. - A sequência da Mulieris dignitatem na qual se desenvolve a argumentação contrária ao acesso das mulheres ao ministério ordenado articula-se novamente com base na estratégia das afirmação mitigadas, entre o “não temos nada contra elas… mas…”¸fazendo-se uma resenha das “mulheres santas” ao longo da história da Igreja, mas conciliando-se esta listagem com a afirmação de que a essência da Igreja não permite “transferir [para ela] critérios de compreensão e de julgamento que não dizem respeito à sua natureza” (nº 27). Maria de Nazaré “precede todos no caminho rumo à santidade” (Mulieris dignitatem nº 27), segundo se diz, mas toda a argumentação leva a concluir que esse rumo não passa pelo ministério ordenado. A argumentação não só é peremptória, como apodítica, articulando-se o discurso de modo a associar-lhe a força dos factos (cf. van Dijk) fundadores da Igreja. - Este discurso aparece a par de afirmações de simpatia e solidariedade aparentes, que exaltam o feminino, parecendo inferir-se da argumentação que, embora esta possa parecer dura a certos ouvidos, é aquela que é coerente com a própria “dignidade e vocação da mulher” à luz de Cristo, “promotor da verdadeira dignidade da mulher” (Mulieris dignitatem 12). Outro ponto nevrálgico desta estratégia, associada à de transferência do topo para a base, parece estar na referência que a Carta em análise faz à questão do aborto, sem que a palavra seja proferida. Assim, o texto, que aparece associado ao episódio da mulher adúltera, diz o seguinte: “Uma mulher é deixada só, é exposta diante da opinião pública com ‘o seu pecado’, enquanto por detrás deste ‘seu’ pecado se esconde um homem como pecador, culpado pelo ‘pecado do outro’, e até corresponsável do mesmo. E, no entanto, o seu pecado escapa à atenção, passa sob silêncio: aparece como não responsável pelo ‘pecado do outro’! Às vezes ele passa a ser até acusador, como no caso descrito, esquecido do próprio pecado. Quantas vezes, de modo semelhante, a mulher paga pelo próprio pecado (pode acontecer que seja ela, em certos casos, a culpada pelo pecado do homem como ‘pecado do outro’), mas paga ela só e paga sozinha! Quantas vezes ela fica abandonada na sua maternidade, quando o homem, o pai da criança, não quer aceitar a sua responsabilidade? E ao lado das numerosas ‘mães solteiras’ das nossas sociedades, é preciso tomar em consideração também todas aquelas que, muitas vezes, sofrendo diversas pressões, inclusive da parte do homem culpado, ‘se livram’ da criança antes do seu nascimento. ‘Livram-se’: mas a que preço? A opinião pública de hoje tenta, de várias maneiras, ‘anular’ o mal dese pecado; normalmente, porém, a consciência da mulher não consegue esquecer que tirou a vida do próprio filho, porque não consegue apagar a disponibilidade a acolher a vida, inscrita no seu ‘ethos’ desde o ‘princípio’”. (Mulieris dignitatem nº 14). Em que medida estamos perante uma estratégia de simultânea solidariedade aparente e transferência do topo para a base? O texto denuncia realmente o abandono e as pressões sofridas pelas mulheres nestas circunstâncias, manifestando compreensão por elas, quando se encontram nestas situações, mas transfere a culpa exclusivamente para os indivíduos directamente envolvidos na circunstância – os homens, que abandonam as mulheres na sua maternidade, e as próprias mulheres, pelo facto de “tirarem a vida do próprio filho”. Não se faz qualquer referência a motivos, nem à persistência de contextos sócio-culturais em que os métodos contraceptivos continuam a ser algo alheio, senão mesmo condenável, perspectiva para a qual o próprio Magistério da Igreja contribui, fazendo um discurso manifestamente contrário aos mesmos. - A última estratégia referida por van Dijk é a da força dos factos, aliás, já mencionada a propósito da argumentação para justificar a interdição às mulheres do acesso ao ministério ordenado. Existe, contudo, uma distinção fundamental entre a forma como os discursos parlamentares estudados pelo autor recorrem a esta estratégia e a forma como a Igreja o faz: enquanto nos primeiros, as decisões negativas são atribuídas à conjuntura, como vimos, na Igreja, estas decisões são fundamentadas na vontade do Criador, que determina “a essência da mulher”, na mensagem de Cristo e na Sua vontade. Aliás, à Carta em análise faltam factos relacionados com o quotidiano das mulheres, recorrendo-se, antes, a uma linguagem essencialista, onde não se fala de mulheres, mas sim “da mulher”, de acordo com categorias típicas de um discurso estruturado com base em estereótipos tipificadores de papéis e de traços de género: “A Igreja (…) dá graças por todas e por cada uma das mulheres: pelas mães, pelas irmãs, pelas esposas; pelas mulheres consagradas a Deus na virgindade; pelas mulheres que se dedicam a tantos e tantos seres humanos, que esperam o amor gratuito de outra pessoa; pelas mulheres que cuidam do ser humano na família, que é o sinal fundamental da sociedade humana; pelas mulheres que trabalham profissionalmente, mulheres que, às vezes, carregam uma grande responsabilidade social (1); pelas mulheres ‘perfeitas’ e pelas mulheres ‘fracas’ – por todas: tal como saíram do coração de Deus, com toda a beleza e riqueza da sua feminilidade (…).” (Mulieris dignitatem nº 31) A Carta Apostólica não inclui qualquer análise das situações sócio-económicas condicionantes da dominação a que as mulheres estão sujeitas, nem qualquer análise das estruturas fundamentais de uma sociedade patriarcal. Não inclui qualquer referência ao significado salvífico dos papéis que as mulheres assumem na vida pública, nem dos movimentos de reivindicação da igualdade. Também não faz qualquer referência a qualquer forma de auscultação das mulheres cristãs sobre os modos como relacionam a sua vida quotidiana, os seus sonhos, projectos, ilusões e desilusões, com a sua fé cristã, nem sequer se refere com profundidade ao significado do trabalho pastoral das mulheres como a primeira visibilidade da Igreja para muitos seres humanos, algumas vezes, nas situações mais extremas. |
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Notas | ||||||||||||
(1) Sublinhado nosso. | ||||||||||||
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