Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

Do ser ao dever ser
Teresa Martinho Toldy

 

Do ser ao dever ser

1. Acerca de relações de dominação, preconceitos, estereótipos e representações sociais

2. Acerca de formas “delicadas” de exprimir preconceitos

3. As estratégias de van Dijk e a Carta Apostólica Mulieris dignitatem

4. “Que grupo na sociedade irá beneficiar das opiniões que o texto da Mulieris dignitatem exprime?”

Indicações bibliográficas

1. Acerca de relações de dominação, preconceitos,
estereótipos e representações sociais

Diz-nos a psicologia social (cf. por exemplo, Amâncio, 1993) que as interacções sociais desiguais se baseiam em relações de dominação, nas quais existe uma diferença de poder simbólico. O grupo dominado é uma entidade construída subjectivamente, que reúne os seus membros sob um destino comum, no quadro de uma definição categorial que “colectiviza” os indivíduos. “A identidade social dos dominantes será definida em termos de ‘sujeitos’ e a dos dominados em termos de ‘objectos’. Os primeiros não se vêem a si próprios como determinados pelo seu grupo de pertença ou pela sua afiliação social. Vêem-se, acima de tudo, como seres humanos individualizados, singulares, ‘sujeitos’, actores voluntários, livres e autónomos. O seu grupo é antes de tudo uma colecção de pessoas. Tal não é o caso dos dominados, que são definidos como elementos indiferenciados de uma colecção de partículas impessoais e são mais vistos como ‘objectos’ do que como ‘sujeitos’” (Deschamps, 1982, p. 90).

À determinação das relações desiguais de poder existentes entre dominadores e dominados corresponde um discurso de justificação e de manutenção da “ordem social” assim estabelecida que passa pelos preconceitos, pelos estereótipos e pelas representações sociais.

Jones (1972) define o preconceito como “o julgamento prévio (pré-conceito) negativo dos membros de uma raça ou uma religião, ou dos que desempenham qualquer papel social significante, que se mantém mesmo que os factos o infirmem” (p. 61). O comportamento normalmente associado a este tipo de julgamento é designado por discriminação. Na perspectiva do modelo de Allport (1954), os preconceitos devem-se à generalização ou processo de categorização e à hostilidade.

O processo de categorização (cf. Allport, 1954, p. 21) permite-nos tipificar qualquer acontecimento singular, inscrevê-lo numa rubrica familiar e agir em consonância com esta tipificação. As classes e conjuntos de objectos e de ideias presentes na mesma são marcos orientadores para o nosso quotidiano, permitindo que nos adaptemos ao mesmo. A categorização integra o máximo de informação num conjunto (a mente tem tendência para categorizar os episódios que nos cercam de modo o mais compacto possível) e permite-nos identificar rapidamente qualquer objecto relacionado com ela (qualquer objecto tem marcas ou características que servem de sinal activador de uma categoria – quando “vemos” algo ou alguém que possui determinadas características adstritas a um tipo, tendemos a associá-lo à categoria estabelecida para a sua interpretação). Esta categorização está também relacionada com uma emoção ou um sentimento idênticos em todas as experiências ou casos particulares. Por último, as categorias podem ser mais ou menos racionais, isto é, podem incluir algum elemento justificável racionalmente, associado a um elemento irracional.

Diz ainda Allport (1954) que a expressão do preconceito através da hostilidade pode assumir diferentes graus de intensidade:

1. verbalização negativa – as pessoas limitam-se a verbalizar os seus próprios preconceitos entre amigos ou com estranhos, por exemplo, sob a forma de anedotas;

2. evitamento – as pessoas evitam o contacto com membros do grupo que hostilizam;

3. discriminação – os membros do grupo hostilizado são alvo de diversas formas de exclusão.

4. ataque físico – violência física contra grupos ou pessoas (skinheads, etc.);

5. exterminação – linchamentos, genocídio étnico.

O estereótipo, por sua vez, entende-se como uma imagem interposta entre o indivíduo e a realidade, imagem essa com carácter subjectivo e pessoal, cuja formação assenta no sistema de valores do indivíduo. É considerado como uma generalização falsa e reveladora de falta de conhecimento, apenas modificável por uma educação que consciencialize a pessoa da ausência de fundamento dos seus juízos, mas há autores que o consideram uma construção sócio-cognitiva neutra e uma forma de conhecimento aceitável e prática, embora não muito precisa, que se substitui frequentemente ao conhecimento real (cf. Amâncio, 1994).

Os estereótipos têm um significado afectivo, isto é, baseiam-se em juízos de valor guiados por sentimentos favoráveis ou desfavoráveis. Mas os estereótipos também possuem um significado cognitivo: revelam uma percepção simplificada da realidade resultante de um processo de selecção da informação (categorização). Por último, os estereótipos possuem um significado social: são construções da natureza das relações intergrupos com o objectivo de facilitar a compreensão dos acontecimentos sociais complexos, justificar as acções colectivas dirigidas a determinados grupos sociais e criar ou manter diferenciações valorizadas positivamente de um grupo em relação a outro grupo – o grupo de pertença em relação ao grupo dos outros (cf. Tajfel, 1981).

Os estereótipos de género constituem um subtipo dos estereótipos sociais, sendo definidos como “um conjunto de crenças estruturadas acerca dos comportamentos e características particulares do homem e da mulher” (Neto et al., 2000, p. 11). Estes estereótipos podem estar relacionados com papéis de género ou com traços de género. Os primeiros designam as crenças sobre actividades tidas como “típicas” do homem e da mulher e os segundos, as características psicológicas que o distinguem um do outro. Trata-se, portanto, das crenças sociais sobre o que o homem e a mulher devem fazer e ser. Ora, estas são indissociáveis umas das outras, já que se estabelece uma rede de inferências recíprocas entre ambas. Assim, é frequente ouvirmos dizer, por exemplo, que são as mulheres que cuidam das crianças porque são mais carinhosas e sensíveis. Assim como se dirá que os estivadores são homens porque são mais fortes. Estudos citados por António Neto et al. (2000, p. 13) revelam que “o estereótipo masculino se associava mais às dimensões independência, afirmatividade e dominância, enquanto o estereótipo feminino aparecia mais ligado às dimensões submissão, expressividade e orientação para os outros”. João Manuel de Oliveira e Lígia Amâncio (2002) perspectivam os estereótipos de sexo como ideologizações que modelam a conduta colectiva e os papéis sexuais como a dimensão normativa desses mesmos estereótipos, compreendendo-os, então, como uma representação social.

As representações sociais constituem um conjunto de conceitos, proposições e explicações criado na vida quotidiana no decurso da comunicação inter-individual. Segundo Moscovici (1981), são o equivalente, na nossa sociedade, dos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais ou a versão contemporânea do senso comum.

A representação constitui uma construção de um objecto e a expressão de um sujeito: “uma vez criada uma representação acerca de um outro, essa representação passa a constituir esse outro e orienta a interacção de modo a atribuir foros de realidade ao que é representação (eu não te dizia que ele era assim?)” (Vala, 1993, p. 355).

A formação das representações sociais constitui o resultado de um processo sócio-cognitivo que passa por uma objectivação e por aquilo a que Moscovici (1961) chama “mecanismo de ancoragem”. Assim, a objectivação, à semelhança do que acontece com o processo gerador do estereótipo, numa primeira etapa, consiste num processo de selecção e descontextualização das informações, crenças e ideias acerca do objecto da representação. As noções básicas que constituem uma representação encontram-se organizadas de modo a constituírem um padrão de relações estruturadas. Por fim, ocorre uma naturalização. A defesa dos valores sociais passa pela sua naturalização enquanto categorias descritivas da natureza humana: crê-se que a visão que se tem do grupo ou pessoa interpretada à luz da representação reproduz a própria natureza destes.

Mas as representações também oferecem uma rede de significados que permitem a ancoragem da acção e a atribuição de sentido a acontecimentos, comportamentos, pessoas, grupos, factos sociais. Uma representação social é um código de interpretação no qual ancora o desconhecido, o imprevisto. Neste sentido, funciona como um redutor da ansiedade causada pelo diferente.

 

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