Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

FERNANDO OLIVEIRA,
O CONSTRUTOR DO MITO DE PORTUGAL

José Eduardo Franco

 

“Não estudamos o passado como um objecto dado, matéria de observação, mas sim, sempre, como objecto construído, e a reconstrução só com materiais do presente se pode efectuar”. Magalhães Godinho (1)

 

1. Considerações preliminares
2. Évora na ideografia mítica de Portugal
e a crítica a André de Resende

3. A ideia de Portugal
3.1. Um reino de fundação e direito divino
3.2. A identidade essencial da nação portuguesa

3.3. O mito das origens e a utopia do destino
de Portugal

3.3. O mito das origens e a utopia do destino de Portugal

A história é para a sociedade como o que a memória é para o indivíduo: se este perde a memória, perde a consciência da sua identidade, o sentido do presente e a capacidade de projectar o futuro, porque não possui o suporte gnoseológico (experiencial, intelectual, afectivo,...) que lhe permita encadear o tempo e a história e os seus mananciais de sabedoria, aspiralmente constituída, de modo a ler e a recriar a sua situação existencial. Assim, a história é para a sociedade esta mais-valia fundamental, cuja hermenêutica não é indiferente, mas antes mobilizadora da dinâmica do presente e é perspectivadora das expectativas formuladas em relação ao futuro.

Em F. Oliveira esta funcionalização hermenêutica da história ao serviço de uma mobilização que se pretende que seja produtora de eficácia decisória no presente e perspectivadora do futuro está bem patente. O passado apresenta-se como uma reserva moral, como uma lição, logo como lugar também privilegiado de tomada de posição em relação ao presente, no plano da interpretação e da explicação. Ora, se o passado encerra uma reserva pedagógico-moral, neste caso no plano político, transporta consigo uma capacidade, um poder, que permite discernir ou entreabrir o futuro, a partir de uma lógica de lectio, de tipo causa/efeito.

À obra historiográfica em estudo subjaz a noção de que a reunião das mesmas condições sócio-políticas em planos temporais diversos produzem na história nacional os mesmos efeitos, as mesmas consequências, a mesma reacção e o mesmo modo de resolução por parte dos Portugueses. Esta epopeia em prosa do passado nacional, tendo na sua base uma utensilagem mental cristã, insere-se naquele tipo de obras historiográficas que vão sustentar e alicerçar as grandes teleologias acerca do destino histórico de Portugal, as quais vão ser elaboradas no quadro da cultura portuguesa.

No âmbito do drama em que radica o nascimento desta obra histórica, a conjuntura em que se verificou a ascensão ao trono português de Filipe II de Castela e o consequente apagamento do brilho glorioso da história recente de Portugal no plano internacional, enquanto nação independente, Fernando Oliveira reconstrói a história do país de modo a produzir um esteio crítico e fornecer uma lição para o presente e para o futuro. Neste contexto, uma boa parte da reconstrução histórica das relações entre esse Portugal mítico e os reinos de Leão e Castela é edificada como prefiguração da situação presente. Por exemplo, D. Afonso VI, reinava sobre Portugal, não enquanto rei de Leão e Castela, mas como rei de Portugal. Aqui se pode observar uma imagem prefigurada, transposta virtualmente, do regime monárquico dual, liderado no presente por Filipe II (1).

Seguindo este fio hermenêutico da construção prefigurativa do passado, assente numa translucidez fornecida pelo conhecimento da história futura, podemos aventar que o historiador anuncia implicitamente uma “certeza”, que no presente histórico da obra assume a dimensão do valor mobilizador da esperança. É a certeza de que - se assentirmos nesta perspectiva mimética da história - a permanência de um rei espanhol no trono português, como era o caso presente de D. Filipe I, provocaria a vinda de um novo “restaurador”, à semelhança de D. Afonso Henriques que “foi restaurador deste reino”(2), escolhido por “consistório divino”(3). Isto tendo em vista a reposição no trono de “Tubal” de um rei que seja natural, pois a falta de “amor à terra” por parte dos reis estrangeiros conduziu Portugal à decadência, obrigando o “povo livre” a vindicar para o trono um rei nascido na terra, na fidelidade ao ideal nacional que este povo tinha a missão de preservar. Esta é com efeito a grande lição do passado. Mas isto acontecerá quando o reino atingir um estado de degradação intolerável, pois nesta obra está implícita a lógica (de fundo teológico judeo-cristão) de que Deus manda o redentor quando se atinge um grau extremo de degradação. João Medina, falando sobre esta lógica da degradação/redenção, coloca em contraste as expectativas dos movimentos messiânicos e a lógica teológica de fundo da concepção doutrinal judaica do ritmo da história:

“O que é sobretudo verdade no tocante aos movimentos de activismo messiânico em que se pretende «apressar a vinda» do Messias, não obstante a advertência que, no salmo 45, 3, dava o Midrash Tehillim: «Israel disse a Deus: quando nos virás resgatar? E Deus respondeu: quando tiveres caído no mais baixo, então te virei resgatar! Ou como se advertia no livro de Esdras (IV, 34): «Não sejas mais apressado que o teu Criador»...”(4).

Mas a esta experiência passada que se pretende erigir como palpável e indesmentível, na linha dogmatizante da apologia histórica de Fernando Oliveira, subjaz uma ideia filosófica de Portugal mais profunda, que brota de uma visão global da sua obra. Esta ideia consiste, em nosso entender, naquilo que podemos designar de utopia da perenidade histórica do reino de Portugal. Reino constituído em direito divino, cujo segredo da sua providencial perenidade é explicado em função do seu destino histórico - a dilatação da fé. Esta obra faz eco de formulações míticas anteriores e anuncia, assim, as utopias vindouras do destino histórico de Portugal, isto é, da “renovada destinação da comunidade portuguesa a um missionário domínio universal”(5), que, no dizer de Paulo Borges, foi para tal missão “directamente investida pela verdade divina e religiosa, central a toda a história do mundo”(6). Esta destinação utópica vai encontrar a sua apoteótica e mais delirante elaboração no século seguinte, no mito do Quinto Império (7) do Padre António Vieira, que é “sinónimo de um certo projecto cristão absoluto”(8).

Assim sendo, a obra historiográfica anuncia e prepara o lastro, em certa medida, das grandes utopias messiânicas da história de Portugal que se vão desenvolver no século seguinte, logo a seguir à Restauração da independência em 1640. Emblemáticas destas obras utópicas são os livros proféticos de António Vieira (particularmente, a História do Futuro e a Clavis Prophetarum) (9) e o Tratado da Quinta Monarquia de Frei Sebastião de Paiva (10).

Embora Oliveira não se mostre, na sua obra, exageradamente um messianista (nem declaradamente sebastianista), ele delineia um trajecto histórico de Portugal que permite alicerçar um certo messianismo nacional. Isto mesmo se pode verificar na sua insistência no tópico de que D. Afonso Henriques não foi o primeiro rei de Portugal, mas sim o restaurador de Portugal, aquele que o povo desejava para atalhar a perda que o reino sofria na sua união a Leão e Castela. Nesta dinâmica histórica de perda e restauração, o autor pretende oferecer uma lição histórica que abre para uma certa dimensão profética e aponta, de facto, para a messianeidade e para aquilo que virá a ser o sebastianismo e o mito do rei restaurador.

Assim sendo, a obra historiográfica de Oliveira encerra a enunciação subjacente, na sua leitura do passado, de duas utopias que se implicam mutuamente: a utopia da restauração de Portugal - que se desenvolverá mais tarde nas chamadas obras da “literatura autonomista” - e a utopia da expansão universal do reino de Portugal e dos Portugueses, para quem “conquistar todo o mundo lhe parece pouco”(11), a fim de dilatar o conhecimento mundial da fé cristã. Estas duas utopias (uma de cariz político e outra de feição religiosa) são subsidiárias de uma única utopia filosófica, relativa à ideografia de Portugal - a utopia da sua perenidade inexpugnável no tempo, perenidade que é sustentada divinamente. Esta utopia pauta-se pelo carácter incólume da liberdade e imunidade que é apanágio ontológico do reino. Esta herança matricial transmitida de geração em geração pelo povo português, o qual é apresentado, em última instância, como o guardião e o continuador desta identidade originária e original de Portugal. Deste modo, esta obra historiográfica transporta uma utopia que brota de uma profissão de fé histórica nesta perenidade, cujo processo de construção utópica emana da convicção de incumprimento do destino de Portugal, em função do qual esta perenidade é garantida e encontra o seu sentido último.

Esta utopia da perenidade do reino alicerça-se no mito de um Portugal visto como um reino eleito para uma missão especial, de carácter sagrado, no panorama planetário. Mito este que se desenvolve como consequência do deslumbramento nacional perante as navegações extraordinárias dos Descobrimentos, a partir das quais se assiste a um descerrar de uma nova mundividência verdadeiramente universal. É neste novo ambiente cultural que se configura e teoriza este mito de um Portugal-instrumento-de-Deus, como explica Filipe Barreto:

“A constante ideológica dominante apresenta uma leitura teológico-transcendental dos Descobrimentos portugueses. O fenómeno de expansão planetária é representado como uma absoluta redução/consagração à cidade de Deus cristã; sendo os Portugueses o instrumento de acção divina no Mundo. Em estreita articulação com este ideal surge o elogio ao valor político-militar dos Descobrimentos enquanto demonstração do poder de Portugal e da Cristandade”(12).

É a partir da poesia e da historiografia que são cantadas e “memorizadas” as gestas desta etapa da história de Portugal, vista como uma fulgurante idade de ouro, na qual se reforçam as bases míticas da portugalidade. A interrupção ex abrupto deste decurso histórico esplendoroso - em que um dos tópicos ideológicos exaltacionistas do orgulho patriótico era o contributo decisivo dado no sentido da aceleração da universalização efectiva da dilatação da fé cristã - com a crise dinástica e a consequente perda da independência, derramou entre os Portugueses, encantados com este passado jubiloso, uma sensação de inacabamento da missão histórica que alegadamente se tinha começado a revelar como grandiosa, porque, efectivamente, globalizante. Salienta Coelho Maurício que “a missão evangélica dos Portugueses no mundo era um tópico político central de Quinhentos”(13). E acrescenta que aí se desenvolveu imediatamente “a demonstração de que o reino fora criado por Cristo, em pessoa, e exclusivamente para seu serviço. Se esta maneira de conceber o presente abria o caminho à acomodação, nem por isso esta se tornava inteiramente aproblemática. É que do facto do reino de Portugal ter sido criado por Cristo e para Cristo podia ser inferido que ele não devia ser violentado pelos homens”(14). É esta inferência que vai marcar a ideia da perenidade do reino em Oliveira. A constituição do reino em direito divino, tornou-o inexpugnável desde a sua origem, e é vista naquela constituição uma garantia de perenidade que se pretende demonstrar historicamente a toda a prova.

Ora, a obra historiográfica oliveiriana constitui a primeira tentativa de veicular o drama deste “desmoronamento da independência do reino, consumado com a união à monarquia de Castela. Neste âmbito, compreenderemos melhor o seu processo de idealização da história de Portugal, se assentirmos no que sugere imageticamente Filipe Barreto no que concerne ao entendimento dos tempos de ruína como os campos férteis para o ressurgimento de mitos e utopias: “O aumento das sombras e não-saídas do real produz o aumento e a força das luzes arejadas do ideal. Quanto mais a realidade é beco e pântano, mais a idealidade é avenida e jardim”(15).

Assim sendo, esta utopia da perenidade histórica de Portugal concebida em vista da realização de uma missão transcendente que assenta na mitificação do passado de Portugal, apresenta-se como uma utopia fortemente crítica do processo e da união efectiva da coroa portuguesa à coroa Castelhana. Esta utopia avulta como o primeiro sinal conhecido de inconformismo e de resistência ao novo statu quo político, consignada na reescrita desta história de Portugal.

 

José Eduardo Franco

 

(1) Cf. TEYSSIER, Paul, Op. Cit., p. 378.

(2) Fernando Oliveira, História de Portugal, fl. 140.

(3) Ibidem, fl. 72v.

(4) MEDINA, João, “O Sebastianismo - Exame Crítico dum Mito Português”, In MEDINA, João (dir), História de Portugal, Vol. VI, Alfragide, Clube Internacional do Livro, 1995, pp. 270-271.

(5) BORGES, Paulo Alexandre Esteves, Op. Cit., p. 216.

(6) Ibidem.

(7) Para um estudo da génese e evolução da ideia de Quinto Império em Portugal ver José Eduardo Franco & Cristina Costa Gomes, O Mito do Quinto Império: Os Descobrimento e a Construção de um Utopia Portuguesa, Lisboa, Texto Policopiado, 2001 (edição em preparação).

(8) BARRETO, Luís Filipe, “Utopia e Heteropia”, in Brotéria, Vol. 106, nº 3, 1978, p. 275. Como comenta ainda o mesmo autor: “Devido às próprias características da civilização portuguesa, o seu pensamento utópico envolveu sempre uma constante cristã. A utensilagem mental do utopista português tem sido o cristianismo, quer seja a utopia nacional/universal de Gaspar de Leão (séc. XVI) ou de António Vieira (séc. XVII), quer a utopia social de Feliciano de Castilho (séc. XIX). Ibidem.

(9) Cf. FRANCO, José Eduardo, "Teologia e Utopia em António Vieira", in Lusitânia Sacra, 2ª série, 11, 1999, pp. 153-245.

(10) PAIVA, Frei Sebastião, Tratado da Quinta Monarquia, e felicidades de Portugal profetizadas, BNL, Cod. 810; e cf. FRANCO, José Eduardo & REIS, Bruno Cardoso, O Primeiro Tratado da Quinta Monarquia em Portugal. (Contém em anexo a transcrição e anotação do Tratado da Quinto Monarquia de frei Sebastião de Paiva), Lisboa, Texto Policopiado, 2000 (Aguarda na Imprensa Nacional –Casa da Moeda).

(11) Fernando Oliveira, História de Portugal, fl. 34v.

(12) BARRETO, Luís Filipe, Portugal, Op. Cit., p. 43.

(13) MAURÍCIO, Carlos Coelho, Op. Cit., p. 12.

(14) Ibidem.

(15) BARRETO, Luís Filipe, “Utopia..., Op. Cit., p. 276.

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