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2. Évora na ideografia mítica de Portugal e a crítica a André de Resende |
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Na História de Portugal Évora tem um estatuto especial. Integra-se no conjunto das cidades consideradas mais antigas do reino. Por isso, à semelhança de Lisboa, Coimbra, Gaia e Braga, a cidade de Évora merece uma atenção especial na averiguação da sua antiguidade. Neste quadro, o humanista André de Resende e o seu trabalho arqueológico e historiográfico considerado como notável para a época, são menosprezados por Fernando Oliveira. Esta desconsideração da credibilidade científica do grande amigo português de Erasmo - que é operada a propósito da sua discordância quanto à visão de Resende sobre a antiguidade da cidade de Évora na monografia dedicada a este assunto - deve-se mais a razões de ordem pessoal. Esta avaliação epigramática manifesta, provavelmente, mais a animosidade pessoal contra o seu antigo mestre ou colega (que parece ter desempenhado um papel adjuvante na condenação de Oliveira pelo tribunal da Inquisição)(1), do que um correcto e desapaixonado juízo do trabalho deste humanista. Ao considerar que Évora é mais antiga “do que a faz mestre André”, Oliveira deixa-se cegar pelos ressentimentos pessoais e ironiza, menosprezando a competência histórica daquele que é apresentado como “amigo de antiguidades e curioso de ler pedras romanas”: “Porém, porque tinha o entendimento duro como as mesmas pedras, não se sabia desapegar delas e cuidara que em Roma se compreendiam todas as antiguidades”(2). Com efeito, só um diferendo de ordem pessoal não resolvido justifica este juízo, tanto mais que André de Resende não defendia que as antiguidades se encerravam todas no tempo dos Romanos. O que, efectivamente, escreve Resende quanto à determinação da antiguidade da cidade de Évora para além dos vestígios deixados pelas inscrições romanas, a que dedica o capítulo II da sua obra sobre a perscrutação da antiguidade deste burgo, é acima de tudo uma honesta confissão de que, neste particular, não possuía certezas que permitissem satisfazer o leitor, na medida em que não encontrou fontes que permitissem tal averiguação. E deixa passar uma crítica muito válida e lúcida aos historiadores menos escrupulosos: “nem determino fazer o que alguns costumam, entre os quais Floriano del Campo, que se atreveu, com nome de cronista, fazer publicar origens e antiguidades fabulosas”(3). É deveras pertinente esta passagem, pois além de pôr em causa um dos autores ao qual Fernando Oliveira dá muito crédito e com quem o seu género de história se assemelha, critica, a priori, este tipo de historiografia mitificante. Isto também ajuda a compreender, agora no campo epistemológico, porque é que Resende não é poupado à desqualificação de Oliveira. Com efeito, é este tipo de literatura histórica, então muito em voga na Espanha, que vai inspirar o autor. Adapta à releitura da história do reino de Portugal aquilo que Américo Castro classifica como uma “tão ingénua concepção do passado da vida espanhola”, acrescentada explicativamente a uma concepção historiográfica “favorecida pela peculiar situação dos cristãos da Península durante os largos séculos da reconquista. O seu passado próximo foi sentido como insuficiente ao compará-lo, enquanto cultura, com o da França ou da Itália; ou com o dos Mouros e Hebreus de Al-Andalus”(4). Assim sendo, os motivos que mobilizam este programa historiográfico prendem-se com a pretensão de compensar culturalmente o vazio gnoseológico-histórico de um passado remoto, cujo não conhecimento ou não reconstituição é visto como um achaque, uma menoridade em termos culturais e nacionais. A relevante presença da dimensão historiográfica na obra filológica de Fernando Oliveira publicada em 1536, vai ser agora como que compensada pelo subsídio da filologia na sua obra histórica, como que rematando um círculo iniciado na primeira obra, confirmando a conclusão de L. Filipe Barreto acerca da ligação íntima entre história e filologia no quadro epistemológico da cultura humanista: “Gramática e História são, por excelência, na cultura renascentista, produções da hegemonia humanista. Para a cultura humanista, ambas existem em unidade de tal modo forte que a Gramática é naturalmente histórica, tal como a História é naturalmente filológica (e retórica)”(5). O método filológico é utilizado num primeiro nível como instrumento de aprofundamento polémico das antiguidades de Portugal. O historiador instrumentaliza o processo de hermenêutica etimológica manifestamente ao serviço da ideografia mitogénica do reino, tentando provar, por esta via, a primordial antiguidade de Portugal e das cidades que considera mais importantes no seu quadro geográfico (Lisboa, Braga, Coimbra, Santarém, Évora, Gaia e Aveiro). Cidades que ultrapassam em antiguidade a fronteira cronológica e cultural dos Gregos e Romanos, os quais, de acordo com as versões etimológicas refutadas, inspiravam a toponímia das cidades em indagação. Esta visão antecipante da fundação das cidades antigas de Portugal em relação aos greco-romanos, fazendo recuar a sua origem a uma idade primordial, está presente ainda, por exemplo, na interpretação etimológica da cidade de Braga que “também é nome antigo”, que “quer dizer cidade dos buréis; porque naquelas terras o povo comummente veste burel”(6); da cidade de Coimbra que deriva do antropónimo de um rei antigo, “Brigus”, que “reinou naquela terra”(7); da cidade de Évora, cujo nome não deriva do tempo dos Romanos, fazendo-a remontar ao étimo Libora, fundada aquando do mítico povoamento pós-diluviano (8). Vale a pena transcrever a passagem polemizante de Oliveira a respeito da sua tese sobre a mais profunda antiguidade de Évora: “Évora cidade também é bem antiga. De cuja antiguidade em nossos dias escreveu mestre André de Resende, natural dela e homem havido por mui lido e amigo de antiguidades e curioso de ler pedras romanas (9). Porém, porque tinha o entendimento duro como as mesmas pedras, não se sabia desapegar delas e cuidara que em Roma se compreendiam todas as antiguidades. Mas Roma não foi a mais antiga do mundo, nem o seu reino o melhor, como sabemos pela profecia de Daniel profeta (10), e contando-se o tempo de Évora pelo de Roma não pode ser muito antiga. Mas a mim me parece que é mais antiga e parece-me que é do tempo daquele Hércules Líbio que acima fica dito; porque Beroso diz que as suas gentes, depois que ele morreu, povoaram, na Hespanha, certas cidades e uma delas chamaram Libora. Esta põe Ptolemeu, na sua Geografia, junto do rio Tejo da parte sul, na comarca onde está Évora (11). E porquanto naquele sítio, nem em toda a Hespanha não há outra cidade, cujo nome se pareça com Libora tanto como Évora, não me parece inconveniente dizer que é a mesma e que é mais antiga do que a faz mestre André (12); e mais, que não mudou muito daquele nome Libora. Se me disserem que naquele sítio há um castelo que se chama Évora Monte e que esse deve ser o antigo, direi que por ter sobrenome parece mais novo, porque lho puseram para distinção destoutra que já estava povoada primeiro. E mais, em Évora cidade sabemos que se acolheu o capitão Sertório e não em Évora Monte, nem de Alcobaça. E disto de Sertório (13) se toma um bom argumento para provar a antiguidade desta cidade, porque Sertório foi antes dos Césares, e achou já Évora povoada e forte; e, por isso, se acolheu nela, porquanto ele não tinha possibilidade nem vagar para a povoar e fortificar, como lhe cumpria para se defender do poder dos Romanos”(14). Portanto, Évora tem nesta história mítica de Portugal o estatuto de cidade fundadora e fundante do reino, sendo um dos pólos nucleares da nação portuguesa. |
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(1) Cf. MENDONÇA, H. Lopes de, O Padre Fernando Oliveira e a sua obra náutica, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1898, pp. 31 e ss. (2) Fernando Oliveira, História de Portugal, fls. 12-12v. Indicaremos desta forma abreviada a obra de Fernando Oliveira em estudo. As citações são feitas a partir da fixação actualizada do texto realizada por nós na edição crítica citada anteriormente. Cf. José Eduardo Franco, op. cit. (3) Cf. RESENDE, André de, História da Antiguidade da Cidade de Évora, Pref. e notas de José Pereira Tavares, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1963, cap. II. (4) CASTRO, Américo, “Sobre la Historiografia Española”, in Miscelânia de Estudos em Honra de Joaquim de Carvalho, nº 1, Figueira da Foz, Biblioteca-Museu Joaquim de Carvalho, 1959, p. 16. (5) BARRETO, Luís Filipe, Portugal, mensageiro do mundo renascentista. Problemas da cultura dos Descobrimentos, Lisboa, Quetzal editores, 1989, p. 51. (6) Fernando Oliveira, História de Portugal, fls. 10-10v. (7) Ibidem, fls. 11-11v. (8) Cf. Ibidem, fl. 12v. (9) Cf. RESENDE, André de, op.cit. (10) Cf. Dn 2 - Refere-se à interpretação do sonho da estátua de Nabucodonosor por Daniel, a qual foi entendida pelos teólogos judeo-Cristãos como a profecia indicativa da sucessão dos grandes impérios do mundo: Assírio, Persa, Grego e Romano. De acordo com esta tipologia, o Império Romano corresponde à mistura de ferro e argila, que em termos qualitativos ficava hierarquicamente abaixo dos outros impérios. (11) Cf. PTOLEMAEUS, Claudius, Geographia Universalis, II, 5, 10. (12) Cf. RESENDE, André de, Op. Cit., II. (13) Sertório foi um grande general e estadista romano, morto em 72 a. C. Seguiu o partido de Mário na guerra civil romana entre Mário e Sila. Derrotado e proscrito, veio ter à Lusitânia, onde foi aclamado líder da resistência contra os generais que Roma enviou para a submeter. (14) Fernando Oliveira, História de Portugal,fls. 12v-13. |
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