O humano tem esta estranha necessidade de significado para se manter vivo. A identidade e o bem, o self e o sentido, têm uma mútua imbricação, sem o que o self se reduz a um automatismo neural discriminador que nada diz sobre a minha individualidade. Ora, o problema do si mesmo humano é, exactamente, o de dar sentido à sua vida, de lhe dar um foco que o arranque dos automatismos. A expressão para este foco é, segundo Charles Taylor, “configurações” (1989). Estas configurações articulam o que vale para nós e o que nos constitui ontologicamente enquanto si mesmos humanos. Constituem a “nossa” ontologia do mundo, uma visão tácita que faz com que o meu corpo e a minha sensação de que sou se elevem acima da radicação natural. A minha “ontologia” ou configuração do mundo provê-me de uma perspectiva, de um ponto geométrico a partir do qual o mundo ocorre e se organiza.
“A minha identidade é definida pelos compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou horizonte em cujo âmbito posso tentar determinar, caso a caso, o que é bom, ou valioso, ou o que se deveria fazer ou aquilo que endosso ou a que me oponho. Noutros termos, trata-se do horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma posição” (Taylor, 1989: 27).
Esta vinculação entre ser e ser um ponto de vista, entre identidade e horizonte, é aquilo que se exige se se quer perceber como é que a articulação de sentido é condição de possibilidade do humano. Um ser sem configurações não pode ser humano, na medida em que são elas que o organizam e lhe dirigem os passos. A situação humanamente patológica de uma completa disfuncionalidade semântica é aquela em que o sujeito não é capaz de prover para si mesmo um ponto de vista ou um contingente de significados que o vitalizem, é aquela situação em que não se é capaz de dizer eu sou, pelo simples facto de que o eu é já um espaço vazio e sem horizonte, imperturbável ante a virtualidade significativa do mundo, que não tem como ser actualizada.
Por tudo isto é que a interpretação e a linguagem são decisivas na identificação de si. A impossibilidade de um si mesmo verdadeiro e/ou natural (pelos quais o si mesmo e a identidade pessoal seriam um ente transcendente, uma necessidade transcendental ou um formalismo vazio) torna necessário um meio pelo qual as configurações venham a si e se vitalizem. Esse meio é a linguagem humana e a sua pulsão significativa, condição de possibilidade da minha auto-referenciação, através da qual me construo e reconstruo, na intersecção com os significados socialmente circulantes. Não há, pois, como dissociar o si mesmo, a identidade pessoal, da auto-interpretação (Taylor, 1989), o self da linguagem, o sentido de si da construção semântica. Não, claro, que a linguagem seja capaz de tudo dizer do si. Na verdade, há na intersecção do si mesmo e da linguagem uma espécie de “indeterminação da tradução”, uma fissura e uma impossibilidade que impedem a absoluta auto-transparência do si mesmo a si próprio. No entanto, sem a linguagem o si não poderia emergir, sem a capacidade de a linguagem dar sentido o sentido não passa de ruído, sendo sem sentido. Mas o que aqui e agora (ainda que de modo fugidio) quero assinalar é, simplesmente, a existência de um ponto-cego na auto-interpretação, como se as distinções que a linguagem produz, e a de si mesmo também, incluíssem uma impossível auto-transparência para se poderem realizar.
Acontece que a linguagem e o sentido não emergem ex nihilo. As palavras e o que elas significam resultam de uma filogenia e de uma ontogenia sociais. O sentido está acoplado (entre outros acoplamentos), e é produzido, à cultura. Não é necessário invocar Wittgenstein para inviabilizar a possibilidade de linguagens privadas. É manifesto que há uma categoria de circulação no coração da linguagem que exige a socialização como condição de possibilidade do uso e construção de si através da auto-interpretação. O si mesmo, e o mundo, já não é feito de entidades ou essências metafísicas mas de redes de relações ou usos linguísticos, contextualmente determinados por regras de funcionamento socialmente prescritas. É a estrutura da nossa linguagem (dada no conjunto de usos socialmente aceites) que vai determinar o si mesmo ou, mais precisamente, o que podemos saber dele, ou seja, aquilo que é dado na linguagem. Ao si mesmo ôntico, e ao mundo ôntico, nunca se pode ter acesso e, por isso, as nossas descrições dele nunca podem ser entendidas como algo completamente exterior ao nosso aparelho conceptual e linguístico que emerge das relações sociais e não de alguma entidade metafísica (Teixeira: 2002a). O que isto tem a ver com o significado compreende-se facilmente. A cultura humana é, sobretudo, circulação linguística. “A linguagem é a casa do ser”, o que nos obriga a tematizar a linguagem se queremos, seja de que modo seja, tematizar o humano e a identidade da pessoa humana particular.
É na cultura e na transacção linguística que o significado ocorre, na medida em que se intercambiam papeis e geram expectativas, medos e investimentos, ordenados, tácita ou explicitamente (mas muitas vezes de modo tácito) em histórias de como o mundo é e se organiza ou como faz sentido ser homem. Maturana é, neste caso (como noutros), especialmente perspicaz, ao perceber que a linguagem não é um sistema denotativo/conotativo de comunicação simbólica, mas antes uma atribuição semântica consensual a coordenações de coordenações conductuais, de segunda ordem, portanto, que fazem emergir os objectos e o mundo, entre eles o mundo mental e aquilo a que chamamos si mesmo ou identidade pessoal. A sua asserção é a de que os objectos, enquanto distinções, coordenam as operações conductuais consensuais que, por sua vez, vão ser coordenadas pela linguagem, de modo igualmente consensual. A linguagem, enquanto coordenação de segunda ordem, obscurece, frequentemente, a sua natureza operacional, pela qual os objectos se distinguem do ambiente, coordenando as condutas humanas (Maturana, 2002: 220-222). Assim sendo, a linguagem está no cerne mesmo da sociabilidade, da cultura e, claro, do humano, porquanto é a sua natureza mesma que faz emergir essa cultura como algo significativo através de sucessivas distinções operacionais. É a isto que Jerome Bruner chama, invocando Charles Hockett e Austin, “constitutividade” (embora de um modo ontologicamente mais atenuado que Maturana, uma vez que se refere apenas às chamadas “realidades culturais”), ou seja, “a capacidade que a linguagem tem de criar e estipular realidades próprias” (1996: 74). A linguagem cria, pois, o significado, sem o qual a sociedade não é capaz de se auto-constituir como locus de novas e sempre renovadas realidades culturais. De modo co-natural e co-dependente da linguagem e da cultura nascem o humano e o si mesmo.
Claro que é sempre possível fazer exercícios da depuração, ou eliminação, da significação enraizada na psicologia comum (folk psychology) e que estrutura o nosso sentido de si, remetendo-a, reduzindo-a, a erros categoriais ou a estruturas cognitivas simbólica ou sub-simbólicas mais ou menos complexas. Como diz António Damásio, talvez seja certo que as “traduções verbais … são frequentemente produzidas com grande liberdade literária” (2000: 218-219), que “a mente criativa … facilmente resvala na ficção” (Ibid.: 219) ou que “o hemisfério cerebral esquerdo dos seres humanos é dado a inventar histórias que não se coadunam necessariamente com a verdade” (Ibid.: 219). No entanto, não são entendíveis as razões pelas quais a “liberdade literária”, a “ficção” e as “histórias” se desqualificam para a consciência de si (cf. Teixeira: 2002b). Não são entendíveis as razões pelas quais a vinculação neuronal é mais relevante que a vinculação linguística natural, nem sobretudo, são entendíveis as razões pelas quais se defende que, na medida e porque a experiência humana nuclear de si é dada em “relatos não verbais” ou em representações neurais de segunda ordem, se dá uma correlata desqualificação de uma experiência (a experiência do significado) em favor de outra (a experiência neuronal), ainda que a auto-vinculação neuronal se aproxime muito mais da experiência orgânica pulsional inconsciente e não humana que da experiência humana complexa.
O que aqui parece estar em causa, a par e como consequência de um reducionismo ou eliminativismo do mental, é a concepção segundo a qual o mental e o cognitivo humanos se reduzem ao discurso proposicional de tipo lógico dedutivo e à sua instrumentação tecnológica (que, no limite, não são especificamente humanos), pelo qual a mente e o si mesmo são verificados, empiricamente, como verdadeiros ou falsos, através de meios de prova cientificamente validados. Acontece que, como refere Jerome Bruner, “um bom relato e um argumento bem construído são classes naturais diferentes” (1996: 23). O que Bruner nos quer lembrar (e aos cientistas eliminativistas do mental) é que existem pelo menos dois modos de ordenar ou construir a realidade, eventualmente complementares mas, de qualquer modo, absolutamente irredutíveis. Esses modos são o lógico-científico e o narrativo. Enquanto, por exemplo, no modo lógico-científico, as provas são constringentes e necessárias, aferidas por critérios de verificação ou falseação empírica, já no modo narrativo as provas não dizem respeito a uma estrutura raciocinante necessária mas antes a complexos sistemas de significação, mutuamente restritivos, mas onde não se pode encontrar uma teia integralmente coerente de razões e causas. Neste âmbito paradigmático o significado linguístico não depende essencialmente da estrutura lógica-matemática dos argumentos mas antes da estrutura dramática dos eventos, i.e., do seu encadeamento temporal, emocional e estético, como se de configurações guestálticas se tratasse. Por outro lado, enquanto no paradigma ou modo lógico-científico os argumentos se referem ao mundo pré-determinado das representações (por exemplo, representações neurais de segunda ordem), já no paradigma ou modo narrativo os discursos narrativos são susceptíveis, e frequentemente fazem-no, de produzir a própria experiência. Ora, no domínio do significado narrativo, não só a ficção, enquanto modelo de sentido ou configuração, nos termos de Charles Taylor, é absolutamente crucial, como, indo mais longe, é do terreno mesmo da ficção que o significado emerge, uma vez que a significação não diz respeito, antes de mais, a uma realidade ou a um referente prévios, a que se vincule, mas a um domínio consensual de atribuições de sentido, no âmbito mais vasto de uma cultura (como vimos acima) em que a forma narrativa e ficcional é modelo decisivo do pensamento e da acção sobre si mesmo (1). Por outro lado, e muito particularmente, o modo de raciocínio lógico-científico funciona segundo um modelo de causalidade lógica de tipo “se x, logo y” (Bruner, 1996), enquanto no modelo narrativo a causalidade lógica é distorcida por subtis elementos dramáticos que a intensificam de modo e para domínios logicamente ilegítimos mas narrativamente necessários, tendo em vista determinado fim.
O que está em causa no obscurecimento cienticista do sentido, da significação e do paradigma narrativo, no que diz respeito à descrição dos nossos estados mentais, particularmente aqueles de que emergem o sentido de si e a identidade pessoal, é uma espécie de inadequação dos métodos ou linguagens para a descrição dos fenómenos experienciais humanos, uma vez que deixam de fora um modo cognitivo que capta algo de essencial da experiência humana: a coincidência e a co-determinação entre o acto de conhecer e de experimentar, de produzir e ser produzido, numa circularidade virtuosa em que a experiência narrativa e linguística aparece como o tecido em que se tece a natureza do tecedor.
Não que a linguagem científico-dedutiva não seja operativa no sentido de fazer significar a experiência humana. Claro que o é. Digamos, no entanto, que este paradigma cognitivo surge como uma espécie de campo investigatório das restrições amplas, das condições de possibilidade da epigénese da experiência semântica, delimitando as possibilidades negativas da experiência.
O que aqui, agora, quero chamar à colação, é a distinção que Maturana faz, no que diz respeito aos sistemas biológicos e, particularmente, aos sistemas biológicos humanos, entre os domínios do sistema e do observador, domínios disjuntos que se referem ao ponto de vista interno do sistema (auto-referencial, funcionando com clausura operacional e determinação estrutural) e à atribuição semântica que é feita à sua conduta enquanto interage com outros sistemas, num domínio de inter-objectividade (sendo que a compreensão destes dois domínios ou níveis de observação exige que a reflexão epistemológica os mantenha rigorosamente separados, sob perigo de equívocos permanentes e de longo alcance). Ora, uma das consequências desta disjunção de níveis de descrição ou observação é que a experiência humana se dá na intersecção da sua biologia e da sua conduta, daquilo que a constrange como sistema biológico e aquilo que, necessitando embora desse sistema, não decorre dele mas do domínio da descrição das relações com outros sistemas. Ou seja, a experiência humana não decorre do neuronal ou do funcional (na medida em que dizem respeito à estrutura interna do sistema) mas antes da atribuição semântica de um observador. É aqui que entra a linguagem e a significação, uma vez que, ambas, dizem respeito não ao domínio do sistema mas antes ao domínio das relações entre sistemas, segundo a descrição que deles fazem determinados observadores. Ora, se o humano decorre, então, de uma atribuição intencional que emerge no funcionamento linguístico, a sua experiência, o seu fazer-se, só pode captar-se no discurso, na narração, na retórica, enquanto estratégias de significação, sob a base de uma ontologia negativa, de um campo de possibilidades orgânicas que se instituem como condição necessária mas não suficiente para a possibilidade do humano.
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