*** *** *** Francisco Teixeira
Identidade Pessoal e experiência humana
IN: IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004

1. CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIA

2. SIGNIFICADO

3. CORPO

BIBLIOGRAFIA

1. CONHECIMENTO E EXPERIÊNCIA

A angústia cartesiana consiste na estrutura dilemática relativamente ao conhecimento do mundo e de si: ou temos um fundamento absolutamente sólido para o conhecimento, interno ou externo, ou o conhecimento de mim e do mundo torna-se esquivo, até impossível, angustioso. Trata-se da busca de fundamentos. A busca desses fundamentos, contemporaneamente, já não nos indica o caminho do substancialismo. O ar dos tempos é, muito mais, o da transmutação das antigas substâncias aristotélico-tomistas-cartesianas em circuitos neuronais, em funções matemáticas ou critérios observacionais. Se os substancialismos de vários tipos se fundavam em “entidades”, a nova proposta é a de, dissolvendo embora o fundo (a res), se ficar com a forma do fundo, depurando a coisa de modo a ficar com a sua figura. Se, antes, o essencialismo fundacional fazia da experiência humana uma experiência de reificação de si e do mundo, a nova proposta reducionista, ou funcionalista, pelo contrário, é a de des-reificar o si mesmo e o mundo até ao ponto de já não sobrar nenhuma experiência humana, nenhum contacto significativo de si a si, deitando fora “a criança com a água do banho”. O mundo já não tem fundamentos e, aparentemente, também perdeu toda a possibilidade do humano. Ora, que o mundo não tenha fundamentos parece certo. Já não é tão claro, no entanto, que o humano se dissolva no mesmo momento em que se dissolve o fundacionalismo.

Na verdade, o impulso inicial das Ciências Cognitivas, empenhadas em descrever e compreender a mente humana, não foi apenas aquele impulso formalista, vitalizado pela metáfora computacional e empenhado em depurar a forma do fundo até que toda a experiência humana se dissolvesse na (justa) dissolução do essencialismo. Para Jerome Bruner, por exemplo, a “revolução cognitiva” dos anos 50 era, sobretudo, “um grande esforço para estabelecer o significado como conceito central da psicologia – não estímulos e respostas, não um comportamento abertamente observável, não impulsos biológicos e suas transformações, mas o significado” (1997:16). O significado como conceito central da cognição humana é algo profundamente perturbador para as estratégias funcionalista, reducionista e formalista da cognição. A perturbação advém do facto de o significado se dar, necessariamente, no contexto do humano, por referência ao humano biologicamente determinado, envolvendo outros conceitos tão ou mais ilusivos ou fugidios que o próprio conceito de significado, como metáfora, sentido ou intencionalidade. Não que o significado se institua, agora e segundo este enfoque, como entidade livre e esvoaçante, auto-determinada, como, por vezes, parecem fazer crer certas teorias da informação. Na verdade, os novos estudos biológicos, particularmente aqueles que dizem respeito à biologia molecular mas, também, aqueles que pretendem reflectir sobre a natureza da organização biológica e da sua encastração no mundo do humano, obrigam-nos a vincular o significado ao si mesmo orgânico, o sentido do humano à perturbação biológica. Assim, no seguimento daquele objectivo marginal, à altura, das Ciências Cognitivas, a intuição que aqui se quer perseguir é a de que não há humano sem corpo humano e sem significado humano, quer dizer, sem uma circulação entre o conhecimento e a experiência, próximos, senão no coração mesmo, daquilo que Francisco Varela chama “neurofenomenologia” (1996), capaz de estabelecer um controle e definição mútuos da experiência e do conhecimento.

O domínio da Identidade Pessoal, ou do self, é particularmente conspícuo daquela circulação necessária, uma vez que, se, por um lado, a determinação do que eu sou não pode ser dependente, em exclusivo, de um estrutura formal ou neuronal (pelo que o que eu sou se reduziria a um qualquer tipo de generalidade incapaz de explicar não só que sou mas que sou eu), já, por outro lado, a determinação do que eu sou, apenas e só, em virtude dos significados socialmente circulantes não é suficiente para me prover de um eu que não se reduza aos golpes de força da política da força comunicacional. Não haverá, pois, que estranhar, que o significado e a biologia, o social e o orgânico, sejam edificados como os campos centrais através dos quais o si mesmo pode emergir, de modo a que a experiência do que eu sou não se esvaia na análise formalista do self.

Significado e corpo parecem ser, pois, os dois limites necessários de uma investigação que leve em linha de conta a experiência humana.