Como Ricoeur nos tem ensinado, a identidade pessoal surge numa forma narrativa. Um carácter constitui-se em ligação com a intriga, configurando eventos e pessoas heterogéneos num todo significativo. É assim que a narrativa tem, no fim de contas, uma função mediadora entre a concordância e a discordância, a identidade e a diversidade. Mais, a história de vida de cada um está embrulhada nas histórias de outras pessoas. A identidade narrativa revela o si na sua diferença, ou ipse-identidade em relação com o Mesmo, ou idem-identidade, ou seja, o seu carácter, a sua permanência no tempo. Por outras palavras, a identidade narrativa envolve um sentido de si que se constrói dialogicamente no processo de auto-definição em relação com as suas condições que podem ser descritas, isto é, o seu outro, ou – no caso de Deus – o seu Outro.
Para retomar um exemplo que o próprio Ricoeur tem explorado nas suas primeiras obras, a identidade pessoal envolve ao mesmo tempo a implicação do carácter e actos linguísticos e intencionais, como – por exemplo – honrar uma promessa. No caso do carácter, há uma identidade capaz de ser descrita e de perdurar como um subtratum re-identificável. En Le volontaire et l’involontaire, por exemplo, o carácter foi visto como um aspecto permanente e involuntário (tal como o nosso nascimento e o nosso inconsciente) da nossa experiência, perante o qual podemos apenas consentir. Mais recentemente, no contexto da questão da identidade narrativa, o carácter refere-se ao conjunto de disposições duradoiras pelas quais uma pessoa é reconhecida como tal. Por outro lado, a ipseité implica actos de fazer e honrar uma promessa durante uma duração de tempo e perante obstáculos que podem aparecer no “enredo” contínuo da experiência de alguém. Para além de toda a descrição das circunstâncias e condições corporais que podem sofrer alterações, o sujeito é obrigado (bound) pela promessa que fez. O manter a palavra constitui efectivamente o género de mesmidade que representa o fundamento da vida ética.
Tal relacionamento de fidelidade e de auto-consistência ao longo do tempo, a propósito de uma identidade, pode ser traduzido num idioma propriamente teológico. Neste caso, Deus pode ser entendido como comunicando-se continuamente na sua ipseidade à sua criação. A partir da premissa de que o carácter se pode discernir numa intriga narrativa, pode dizer-se que podemos identificar a pessoa de Deus somente segundo os seus actos, que se configuram narrativamente e como tendo uma certa consistência de responsabilidade. É isto que a Escritura nos apresenta. O Antigo Testamento identifica Deus enquanto O que foi consequente em relação com a Sua promessa de livrar Israel da escravatura do Egipto e Aquele que cumprirá a Sua promessa de restaurar Israel no futuro (em Romanos 9-11, Paulo retomará precisamente esta temática). Os Evangelhos identificam Deus como O que ressuscitou o seu Filho de entre os mortos e prometeu-Lhe dar um reino cósmico.
As narrativas bíblicas conferem uma identidade dinâmica a Deus, em que a identidade de Deus tem a ver com a coerência da Sua palavra; por isso, a identidade de Deus não é uma função de uma entidade indeterminada mas de uma ipseidade de um si. As narrativas bíblicas, especialmente à luz da revelação do Novo Testamento, dão-nos uma representação narrativa e teológica da Trindade ecónomica, isto é, a história de missões divinas, culminando nos actos de Jesus Cristo e do Espírito Santo, que configuram de um modo único a eternidade de Deus. Assim, na medida em que a configuração é, como Ricoeur propõe, de natureza narrativa, pode ser afirmado que a unidade ontológica de Deus deriva da auto-manifestação triune de Deus no curso da História: ela seria a sua identidade pessoal.
As duas direcções da problemática que concerne à identidade pessoal consistem, deste modo, na co-implicação das narrativas divinas e humanas. Mas é específico à proposta cristã que Deus Se revela como O que quer relacionar-Se, comunicar-Se. Correlativamente, os sujeitos humanos aprofundam e alargam o seu sentido de si na medida em que conseguem cultivar este relacionamento em resposta à iniciativa divina. Por outras palavras ainda, o relacionamento é grandemente dependente do ajustamento correcto do desejo humano relativamente às condições de aliança. O que está finalmente em jogo é a salvação e, mais precisamente, os actos mediadores de Jesus Cristo e do Espírito pelos quais o crente se torna como Cristo. Enfim, a identidade pessoal do cristão não pode escapar a inferência lógica que envolve tornar-se como Cristo, que o seu ipse se confunde, em última análise, com a pessoa divina do Cristo. Portanto, com este factor bi-direccional, podemos acrescentar o factor igualmente fundamental de tornar-se Christ-like. Evidentemente, como Cristo é está apresentado e articulado no Novo Testamento. Na perspectiva dos autores apostólicos, a prefiguração cristológica teria sido, todavia, antecipada na Escritura hebraica, a evidência da qual se pode traçar pela paciente leitura de tipos e de símbolos apontando para a posterior realização nos actos salvíficos de um gracioso Deus pela mediação do seu Cristo. Dito de uma outra maneira, o carácter de Deus revela-se no seu Cristo: ver Cristo = ver Deus.
Aqui se levanta uma problemática crucial: a pretensão de compreender a identidade pessoal em relação com o cristianismo implica necessariamente manter-se a atenção nas noções de aliança e da doação divina. É assim que o si transformado não se pode separar da realidade de um Deus kenótico cuja fidelidade e graça (chen, ou chesed no Antigo Testamento; charis no Novo) visa a salvação e a benção do si que se relaciona intimamente com Deus – a filiação de Israel, de todos eleitos em Cristo. E isto tem de ser visto como relacionado com o Deus que promete. |