É claro que o posicionamento teológico acima apresentado tem a sua origem numa certa maneira de ver a espécie humana, a sua especificidade, o seu lugar no mundo, etc.. É igualmente evidente – como tenho insistido – que a fonte de uma tal antropologia é a Escritura judaico-cristã. Deste modo, o que está fundamentalmente em questão é a possibilidade de uma antropologia que se pode derivar do texto bíblico, quer dizer, da metanarrativa complexa e diacrónica que proporciona tanto o conteúdo para esta antropologia, como o esquema de relacionalidade que liga a personalidade divina à espécie humana, bem como os seres humanos entre si.
A relevância em dar a ênfase ao tema de um querer e de um formar activos possibilita o alargamento do escopo da história bíblica para além das circunstâncias descritas nos documentos antigos que constituem os textos bíblicos. Seguramente, comunidades sucessivas de fé têm-se esforçado em aplicar os dados e o esquema aos seus contextos históricos e culturais particulares. Em tudo isto o desejar humano é ao mesmo tempo fonte de energia, compromisso e ilusões.
Em relação precisamente com a antropologia bíblica e a sua capacidade de proporcionar alguma inteligibilidade para com a condição humana, a obra de René Girard, acerca das consequências nocivas do desejar e da rivalidade mimética, bem como o recurso ao bode expiatório quando a rivalidade sai fora do controlo, constitui uma importante contribuição para a discussão sobre a estruturação das comunidades humanas. Esta obra torna-se especialmente relevante aqui, na medida em que propõe que o cristianismo oferece a única solução para a problemática do desejo humano. Apesar de pensar que o modo a-histórico com o qual Girard lê a Escritura judaico-cristã se acomoda com demasiada facilidade à teoria “científica” com a qual quer explicar a cultura humana, o que ele propõe consegue, todavia, situar a temática propriamente bíblica num contexto de uma problemática claramente contemporânea – e num idioma contemporâneo também.
Como se sabe, Girard procura desenvolver uma ciência da cultura a partir das noções do desejo mimético e do mecanismo sacrificial. O papel constitutivo nas relações humanas do primeiro e a função fundadora do último ficam irremediavelmente expostos em tudo o que Jesus disse e fez, especialmente na sua recusa em responder à violência com violência.
O desejo humano forma-se em relação do desejo de um outro, correndo constantemente o risco de degenerar de uma mimesis baseado na colaboração para uma rivalidade potencialmente destruidora. Subtilmente embrenhada no tecido de mitos, literaturas e filosofias de práticas económicas e políticas, a cumplicidade entre o desejo, a violência e o sagrado pode ser lida como estando no centro da história humana. A força dramática da proposta girardiana consiste em reconhecer que as culturas contemporâneas já não podem recorrer facilmente à violência sacralizada para reestruturar os seus projectos sociais sem que em tal se repare: a mitificação dá nas vistas com demasiada evidência. E isto porque, na morte do Cristo, a cumplicidade da violência e da sacralização se tem revelado de um modo irreversível. Mais uma vez, a única saída do círculo da violência é a imitação do Cristo na sua não-violência e do cultivar de um novo género de comunidade baseada num ética do amor. Contudo, no centro desta mudança estrutural no modo de se conceber, existe a realidade da cruz como instância de transformação. Efectivamente, é precisamente esta experiência da “abjecção” (Kristeva) e de auto-entrega que altera a estrutura do desejo humano, precisamente porque compromete o desejo de ser e o esforço por persistir em existência num modo particularmente decisivo, isto é, no transformar o foco da identidade da carne para o espírito do Cristo ressuscitado.
Nos escritos de Paulo, sobretudo em Gálatas e Romanos, temos a mesma insistência. A discussão da lei judaica, conjuntamente com aquela sobre a promiscuidade e idolatria gentia, pode ser traduzida como uma procura de uma solução para a clausura, implicada no desejo mimético. O acento coloca-se na completa futilidade da iniciativa humana na realização de uma vida pacífica. Baseada na convicção de que a comunhão, ou a comunicação, com Deus, é vital neste anseio, a transformação de si de um estado de alienação num estado de libertação encontra-se no estabelecimento do seu lugar na vida divina. O desejo é, assim, transformado dos parâmetros definidos do inter-humano numa relacionalidade cultivada com um Deus ao mesmo tempo infinito e pessoal. Este passo anuncia o que pode ser considerado o terceiro co-ordenado implicado na identidade pessoal no contexto da metanarrativa, o co-ordenado de participação intensiva, i.e., a transformação do desejo na economia da graça. |