A abordagem da interligação existente entre a construção de uma identidade pessoal pela educação, tendo como suporte teórico as concepções do movimento da AO, será aqui efectuada focalizando-nos nas teorias biológicas e das ciências humanas inseridas dentro daquele Movimento, ainda que possamos recorrer à influência formal de conceitos de outras áreas científicas, naquilo que constitui hoje uma rede conceptual inerente a este Movimento.
Dum modo mais imediato, poderemos dizer que a identidade pessoal se gera de um modo holístico (ou seja, numa interacção contínua e bidireccional das partes com o todo: cfr. Oliveira, 2000) entre as várias dimensões deste tipo de organismo: biológica, emotiva, afectiva, comunitária, social, ecológica, espiritual, etc. A percepção que possuímos de alguém não se reporta usualmente só a uma das suas dimensões, mas antes ao estabelecimento que estabelecemos entre as várias dimensões que conhecemos da pessoa em questão. Por vezes, contudo, tomamos a parte pelo todo e detemo-nos demasiado num aspecto comportamental, por exemplo, da pessoa, não tendo em conta os contextos nos quais ele emerge, nem a interacção que essa dimensão possui com as outras que constituem a sua vida. Muitos dos nossos juízos de valor sobre a conduta das pessoas assentam nesta percepção redutora que fazemos da identidade pessoal dos outros e que se relaciona obviamente com as nossas limitações observacionais, isto é, com a nossa ignorância auto-centrada ou até deliberada (Kundera: 2001). De igual modo, sentimo-nos muitas vezes injustiçados no juízo de valor pronunciado, ou revelado por acções, sobre nós próprios porque consideramos que eles manifestam uma percepção identitária das nossa pessoas absolutamente redutora.
No Movimento da AO, a questão da identidade pessoal, enquanto assim entendida, poderia ser abordada de vários ângulos; optei por o fazer articulando a teoria da autopoiesis, a teoria da complexidade de H. Atlan (a partir da teoria da ordem pelo ruído de H. von Foerster) e das concepções formais de “padrão” de Gregory Bateson, retomadas pela sua filha Mary-Catherine Bateson. Não me deterei porém especificamente em nenhuma, articulando-as antes num discurso próprio.
Não podendo desenvolver nenhum destes autores por limitações de espaço, delinearei no entanto rapidamente alguns pontos fundamentais dos seus pensamentos de modo a orientar o leitor na compreensão do texto que se segue. Assim, a teoria da autopoiesis surgiu em 1972 no domínio da biologia e tem como principais autores Humberto Maturana e Francisco Varela. Parte de dois princípios, sendo o primeiro que a aprendizagem de um ser vivo coincide com o seu processo de vida, ocorrendo pois ininterruptamente desde o seu surgimento até à sua morte; a organização de um organismo significa nesta teoria a produção de processos de significação que se constróem ao longo da ontogenia desse organismo; cabe à organização seleccionar, metabolizar, integrar ou expulsar as perturbações de tipo interno ou externo, e que surgem integradas naquilo que é apelidado como “estrutura”. O segundo princípio da teoria da autopoiesis lembra-nos que tudo o que é afirmado cientificamente ocorre num descrição observacional, e não no nível processual do sistema descrito observacionalmente.
O “princípio de ordem pelo ruído” foi pronunciado nos anos 30 do século XX por Heinz von Foerster (AAVV, 1962), mas durante muito tempo permaneceu praticamente desconhecido por questões paradigmáticas. Ele opõe-se basicamente ao princípio de ordem pela ordem que se acreditava estar na base do desenvolvimento dos seres vivos a todos os níveis. Von Foerster defende, pelo contrário, que o que diferencia os seres vivos é exactamente a capacidade de produzir ordem a partir do ruído e do aleatório, do não previsível. Henri Atlan vai desenvolver este princípio nos anos 70, num momento claro de transição paradigmática; assim, este biólogo judeu defende que o desenvolvimento dos seres vivos ocorre sobretudo devido ao ruído, já que é este que lhes possibilita a passagem de um organismo para níveis de complexidade crescente, enquanto a ordem o mantém o mesmo nível de complexidade, na dimensão homeostática conservadora.
Todos os autores que aqui expusemos foram bastante influenciados pelo trabalho pioneiro, e quase profético, ao nível científico e interdisciplinar, empreendido pela figura ímpar que foi Gregory Bateson. Este cientista viveu obcecado com os padrões formais que caracterizavam cada ser vivo, pela interligação existente dos padrões entre si dentro de uma espécie, entre as espécies, etc. Consideramos que a sua concepção de padrão é muito similar à da “organização” da teoria da autopoiesis. May-Catherine, sua filha, trouxe este conceito de um modo explícito para várias áreas, nomeadamente para a de educação permanente e comunitária. Considera esta autora que a educação só pode ocorrer de um modo positivo quando se tem em conta os padrões de significativo que as pessoas individuais e/ou as comunidades construíram para auto-justificarem e compreenderem os seus modos de vida. |