Temos em linha um manuscrito atribuído a Domingos Vandelli, "Limpeza da Cidade" (1), assim como a sua transcrição (2). É o rascunho de um dos inúmeros alvitres, ou pareceres, destinados a D. João VI, Príncipe Regente, então no Brasil. Vandeli era seu conselheiro. Digo "atribuído" porque o manuscrito não está assinado, não tem data nem local de redacção. As últimas cinco linhas -
"Domingos Vandelli
Conselhos de
Vandelli
ao Príncipe
Regente" -
estão redigidas a lápis, noutra caligrafia, e pertencem decerto à mesma terceira pessoa que forneceu outras informações, integradas hoje no registo digital do documento:
"Vandeli, Domingos, Limpeza da cidade (ms) s/l, s/n, 3 fólios papel, 22 cm.
Refere editais camarários de 1803 a 1817".
A terceira pessoa sabe o que nós, críticos, filósofos e historiadores das ciências, não sabemos: que certas afirmações de Vandelli acerca do modo como tinham sido feitas as limpezas na cidade, e os castigos ou multas a quem transgredia, atirando imundícies pela janela, referem editais camarários. No rascunho de Vandelli, que nos deixa adivinhar a rede de esgotos como próxima acção civilizadora em Lisboa, nada disso é explícito: em momento nenhum se identificam pelo título, número ou data, disposições legais. Só uma pessoa habituada a lidar com esse tipo de documentos o perceberia. E só uma pessoa que conhecesse as memórias de Vandelli, e muito mais do que isso a obra e vida deste italiano chamado por Pombal em 1764 - outros garantem que chegou a Lisboa em 1762 (3) -, tão certeiramente lhe atribuiria a autoria do manuscrito. Etc., etc..
Portanto é um historiador, naturalmente também bibliotecário, para se permitir escrever sobre o manuscrito, e para que outrem desse crédito, e por isso reproduzisse em ficheiro electrónico, as suas informações: Vandeli, editais camarários de 1803 a 1817, 3 fólios papel, etc., etc..
Anote-se de passagem que esta terceira pessoa, ou segundo autor, por ser autor, nos criou a estrutura narrativa de mistério em que estamos a mergulhar as antenas analíticas. Se não fosse ele, o manuscrito já teria sido publicado nesses volumes de memórias sem mistério nenhum do Banco de Portugal ou instituição afim. Ou já teria desaparecido num desses vários incêndios, etc.. Mas não façamos o leitor desesperar com esta afirmação de um mistério que não descortina em parte nenhuma. Saiba que o mistério está nas datas, cibernauta impaciente.
Vandelli é um exemplo a que recorro frequentemente para ilustrar uma das subversões típicas do texto científico, a biográfica. Entre vários outros factos obscuros e contraditórios, correm acerca dele diferentes datas de nascimento e morte. As que pessoalmente costumo transmitir, por serem as mais plausíveis, e nisso sigo outras fontes, seja exemplo Matos Sequeira (4), que nos dá até o dia e o mês da morte - "Domingos Vandelli aqui faleceu, depois de voltar do exílio, em 27 de Junho de 1816" - as que costumo indicar são 1735-1816, mas tudo isto varia desde 1730 a 1846, o que naturalmente faz com que Vandelli, tal como Francisco Newton e tantos outros, tenha tido vários nascimentos e várias passagens ao Oriente Eterno.
Ora nada disto incomodaria muito, não fosse precisamente o manuscrito desautorizar-me a mim. Se desautorizasse só G. de Matos Sequeira, o "Dicionário Enciclopédico da História de Portugal", etc., nem me daria ao trabalho de tão longa exposição. Assim, lá temos de mais uma vez desempenhar o papel de marido enganado, pois outra coisa não faz o segundo autor do manuscrito senão dar um estalo com a verdade a quem cita sem nunca ter visto certidões de nascimento e óbito - entre mais documentação passível de corrigir outras ficções.
Porque o problema é este, caro cibernauta: poderia alguém, por muito venerável, e exaltado quiçá no 22º dos Altos Graus, que por sinal é o mais hermético, o do Real Machado ou Príncipe do Líbano, ter passado ao Oriente Eterno em 1816, se neste manuscrito, sobre o costume de atirar pela janela as imundícies sem ao menos gritar "Água vai!", refere editais camarários de 1817?
Podia, claro, o ilustre professor de História Natural de Coimbra (5) estar a redigir em 1815 ou 1816 o que veio a ser edital camarário em 1817. Mas sobram outros mistérios. Nesta altura regressava ele do exílio em Inglaterra, depois de ter sido desterrado para a Ilha Terceira, nos Açores, na sequência das Invasões Francesas (6). Acerca deste regresso pouco se sabe e alguns autores referem que nesta altura já Vandelli perdera as faculdades mentais. Pelo contrário, está lúcido, e o Regente mantém-no ao seu serviço.
Ah, entende-se agora que aquela terceira pessoa, ou segundo autor, que criou toda esta novela policial, escreva "Vandeli", só com um discreto "l", refira, se foi ele quem o fez, que o documento tem 22 cm, quando realmente as dimensões mais próximas são 24x18, e anote os 3.'. fólios, que podiam ser quatro, e fólios de acácia!, se o quarto não tivesse sido cortado de modo a ficar sobreposto aos outros 3.'. como estreita badana.
Por todos estes motivos de desvendamento e simultâneo ocultamento da identidade só descobri o manuscrito porque, em certas situações de pesquisa, entro em linha de conta com o teatro que só não vê quem não quer ver, e por isso não procuro só Galopim, também procuro Gallopim; além de Francisco Newton, também pesquiso pelos termos Reesetan, New.on, Nitom, etc.; além de Miss Pimb, também vejo se no banco de dados não haverá nenhuma pista sobre a misteriosa Stella Carbono14.'. E enfim, não é a primeira vez nem a última que Vandelli é tratado por Vandeli, e resta saber se alguns Vandel não serão outras tantas máscaras do mesmo expatriado em maré de anti-maçonismo.
A mitificação só é possível face à variedade de informações sobre factos que na vida mortal são únicos. Já o tenho dito, na senda de Richard Khaitzine: é hábito prestar falsas informações biográficas sobre iniciados. Também acerca dos santos muitas vezes nada sabemos de verdadeiro, apenas a lenda circula. A maçonaria assenta no ritual, põe o símbolo em acção. Os dados nem precisam de ser completamente falsos: basta que as mortes rituais se sobreponham à morte física, para a personagem ficar montada nos altos coturnos da sacralidade.