Os séculos XVIII e XIX também podem ser caracterizados de um modo geral, do ponto de vista científico, pelo movimento de naturalistas viajantes (Leite, 1995). O domínio da natureza, favorecido pelas Viagens Científicas, aparece como uma medida civilizatória neste momento, em que a natureza e a sua história ocupam um lugar privilegiado na cultura européia. Por trás da busca de um domínio, existia uma ideologia utilitarista, que século XIX adentro, predominou nas Viagens Científicas, onde a natureza era visada para o favorecimento do ser humano (Kury, 2001). Dentro deste espírito, Portugal, mais especificamente Domingos Vandelli, Diretor do Museu d'Ajuda, professor da Universidade de Coimbra e integrante da Academia Real de Ciências, organizou grande número de viajantes - seus alunos - para explorar as colônias portuguesas, através das Viagens Filosóficas. Com estas Viagens, Vandelli projetava o levantamento quantitativo e qualitativo dos elementos naturais e artificiais das colônias, e o mais importante, reunir os objetos coletados para compor um acervo museológico, inserindo Portugal no rol dos países que abrigavam a ciência moderna. Uma dessas Viagens mais famosas, a de Alexandre Rodrigues Ferreira, veio à Amazônia brasileira no final do século XVIII. Uma outra Viagem elaborada por Vandelli levou o naturalista João da Silva Feijó para as Ilhas de Cabo Verde (Guedes, 1997). Posteriormente, Feijó viria para o Brasil, mais especificamente para a Capitania do Ceará, onde realizaria levantamentos sobre a História Natural do local, e escreveria diversas memórias, que seriam retomadas por naturalistas brasileiros integrantes da primeira expedição científica nacional, a "Comissão do Ceará", quase meio século depois (Pinheiro et.al., 2000). O movimento de naturalistas estrangeiros no Brasil intensificou-se com a vinda da família real em 1808 para o território brasileiro. Desde a sua vinda para o Brasil, a corte portuguesa estimulou as Viagens de naturalistas estrangeiros, de modo que este período chegou a ser caracterizado como "o novo descobrimento do Brasil" (Holanda, 1993: 13). A exemplo do que aconteceu com as colônias espanholas (Bourguet, 1997), a participação de brasileiros em tais explorações era reduzida. Os naturalistas nacionais contribuíam em um trabalho conjunto com os estrangeiros, que nem sempre ganhava relevância. Apesar de muito numerosas, as Viagens Científicas que foram realizadas do século ilustrado em diante, em geral, apresentaram certos elementos em comum, que nos permitem categorizá-los e analisá-los separadamente. Em uma esfera mais geral, podemos dizer que as Viagens Científicas apresentavam uma fase preparatória, um segundo momento constituído pela viagem em si e, por último, o trabalho posterior às atividades de campo, no qual os naturalistas sistematizavam os dados recolhidos em suas explorações. Nestes três momentos, uma literatura de Viagens característica está presente. Lisboa (1997: 34), baseada em Bender, usa uma definição ampla de literatura de viagem, científica ou não, que se restringe apenas à condição de retratar o deslocamento físico do autor pelo espaço geográfico, por tempo determinado, e a transformação do objeto observado em narrativa. Os textos variam de acordo com o momento histórico e a carga de subjetividade do autor, possuidor de um olhar próprio. No caso dos relatos de viagem do século ilustrado por exemplo, a narrativa, escrita por pessoas com formação ampla, inclusive em História Natural, se apresenta de modo abrangente dentro desta área, servindo como fonte para várias modalidades das ciências empíricas (Neuber, apud Lisboa, op.cit.). Ao longo do século XVIII e século XIX, as viagens de um modo geral ganharam forte especialização, e consequentemente isso se refletiu na literatura de viagens produzida neste período. Assim, as memórias, os relatos, os diários e as Instruções de Viagem apresentam algumas transformações e continuidades no decorrer da passagem do século XVIII ao XIX. Lisboa (op.cit.: 34) postula que Diferenças que, demarcadas pelas condições históricas e pela dimensão subjetiva dos autores, dificultam em parte qualquer definição muito rigorosa do gênero [de literatura de viagens]. Suas manifestações caminham entre a crônica, a epístola, o romance, a poesia, o diário e o relato científico, acrescentado não raramente do correspondente iconográfico. Dentre estas várias categorias de literatura de viagens elencadas por Lisboa, destaco o corpo documental composto pela correspondência entre os naturalistas. Nas cartas, assuntos pessoais e profissionais aparecem associados, revelando aspectos da Viagem Científica realizada por esses naturalistas que dificilmente estão presentes nas outras manifestações literárias. Ao se planejar uma Viagem Científica, em um primeiro momento, é necessário escolher o seu destino, levando em conta os objetivos da viagem. No caso específico dos séculos XVIII e XIX, o destino da Viagem dos europeus foi quase sempre as colônias, que representavam terras distantes e desconhecidas, contendo natureza e povos exóticos, e o mais importante, com potencial de exploração. Porém, esta busca por terras desconhecidas vai além do espírito aventureiro do viajante, alcançando principalmente razões práticas, como o diagnóstico das riquezas dessas colônias. Usando as palavras de Bourguet (op.cit.: 212), "não existe exploração sem uma forma de dominação", sendo necessário mapear os motivos políticos e econômicos que amparam a Viagem Científica. Além do interesse pelo potencial das colônias, existia também o interesse por parte de naturalistas e do governo de explorar melhor também sua terra natal, o que justifica, por exemplo, Portugal, no século XVIII, ter elaborado um Compêndio de observações, publicado em 1783, destinado a instruir pessoas interessadas em História Natural para observar as potencialidades do Reino de Portugal. Sendo assim, os motivos para a realização de uma Viagem Científica eram variados. Existiam interesses tanto pessoais, dos próprios naturalistas viajantes, como os interesses do Estado, que financiava as viagens. Da parte dos naturalistas, havia uma certa curiosidade, atração para conhecer terras exóticas, contendo uma natureza diferente da conhecida pelo naturalista, que pode ser traduzida por interesse científico de pesquisa. Havia também a busca pela aventura, além da consolidação de suas carreiras como naturalistas, sendo a Viagem Científica um rito quase que obrigatório para a sua formação. Da parte do poder público, os interesses giravam em torno de relações diplomáticas, desenvolvimento científico e o levantamento de recursos. Raminelli (2000: 27) coloca que A viagem teria finalidades e resultados planejados, metas a serem cumpridas. Nem sempre era fruto de interesses individuais. Os viajantes guiavam-se por políticas estatais e científicas, além de receberem financiamento e instruções de viagem. Dentro destes aspectos estatais e científicos, ao final do século XVIII, a busca por riquezas e recursos naturais em geral tinha como um de seus objetivos abastecer os museus de coleções, além de sustentar a indústria emergente com matéria prima. No caso luso-brasileiro, a proposta não poderia ser diferente, como mostra Dias (1968: 112): A publicação de memórias [científicas, resultantes das viagens], patrocinadas pela Coroa, sobretudo a partir de 1770, é fruto de uma política consciente e preocupada em fomentar a produção de matérias-primas para a industrialização em Portugal. Como fica evidente no fragmento acima, a busca pela descoberta da ordem natural, de um sistema universal de classificação (Larsen, 1996), em meados do século XVIII, foi aos poucos emergindo e convivendo com razões mais pragmáticas, em um momento que o conceito de utilidade consistia um dos eixos centrais da prática científica. Tal característica está também presente na ciência no século XIX adentro, e por que não estendermos este aspecto até a ciência da atualidade? Dando continuidade ao preparo da Viagem, uma vez definido um destino e esclarecidos os motivos e seus objetivos, é necessário um planejamento que envolve, entre outras coisas, a aquisição de materiais, como livros e instrumentos, o que nos remete a um outro aspecto presente nas Viagens, que diz respeito ao órgão patrocinador e o amparo institucional para a realização das explorações. No caso do Brasil do século XIX, as Viagens Científicas encontravam no Governo Imperial o apoio financeiro necessário, desde que estas Viagens estivessem de acordo com os interesses da nação, definidos por seus dirigentes. Relacionado a isto, Figueirôa (1992: 71) explica o envolvimento de instituições como o IHGB nas investigações em História Natural: O projeto ilustrado do IHGB pressupunha a conquista do estado avançado de civilização, atingível a partir do saber científico e do resgate e purificação dos fatos da história da pátria. Sobre este aspecto, Lopes (1997: 135) expressa a ligação entre as investigações em História Natural e sua contribuição para o crescimento do país, e como os membros do IHGB incluíram a ciência no plano de construção de uma nação civilizada: Na verdade as Ciências Naturais constituíram parte intrínseca do projeto do IHGB, que visava atingir graus avançados de civilização para o país, mediante a investigação de todos os aspectos da História do Brasil, incluída a parte da sua História Natural. Além do status das Ciências Naturais no projeto da busca pela modernização, o amparo de instituições, como o Intituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1818) - IHGB - , o Museu Nacional (1838) e a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional - SAIN - fundada em 1827, para as Viagens Científicas é justificável também, pela presença dos viajantes em cargos importantes de direção destas instituições. A compra de livros, instrumentos e outros equipamentos compõe um aspecto interessante nesta fase de preparo das Viagens. Os livros, na sua maioriaeram manuais de identificação e classificação dos objetos naturais, ou seja, tinham o conteúdo de apoio para as práticas de campo. Os materiais e equipamentos eram para auxiliar na coleta, tanto de dados como de objetos naturais, e na fixação do material que seria coletado. As especificações sobre quais instrumentos comprar e como usá-los encontravam-se na maioria das vezes nas Instruções de Viagem, que serão comentadas adiante. Os equipamentos de campo não apresentaram muitas variações ao longo do desenvolvimento das práticas de campo. Para as atividades referentes à Geologia, incluindo aqui a Mineralogia e a Paleontologia, eram adquiridos martelos de diferentes pesos e tamanhos, facas, vidros e caixas de madeira para acondicionamento das amostras. Para a Botânica, eram necessárias facas e tesouras de jardim, papel, papelão e cordas para prensar as plantas que seriam coletadas e vidros para sementes, frutos, fungos e musgos. Na área da Zoologia, também eram necessárias facas, principalmente para retirar animais marinhos grudados em pedras e insetos em troncos de árvores. Era necessário também uma ferramenta para cavar areia e solo, alfinetes, puçás de vários modelos e frasco matador, para matar insetos. Em relação aos vertebrados, o material necessário era composto de líquidos de fixação, vidros, equipamento de captura e instrumentos para a taxidermia (Larsen, op.cit.). Uma outra categoria de material necessário para praticamente todos os ramos da História Natural citados acima são os artefatos para o registro visual dos objetos naturais, o que antes do advento e popularização da fotografia, era realizado através de desenhos manuais. Nas palavras de Drouin (1998: 151), "um desenhador (...) é essencial em qualquer expedição científica". Por outro lado, algumas modalidades dentro da História Natural, como taxonomia vegetal por exemplo, não sofreram mudanças significativas em relação ao método de registro visual por conseqüência do surgimento da fotografia, continuando o desenho a mão livre o modo mais usado. A equipe que realizaria uma Viagem também apresenta algumas características. A figura do viajante-naturalista, por exemplo, representava a ligação entre as colônias e os museus, hortos e jardins botânicos das metrópoles (Kury). Além disso, mais do que um aventureiro que parte para o desconhecido, o viajante carrega uma missão pré-definida e com um destino conhecido. O explorador sabia o que estava indo procurar antes de sua partida (Bourguet). Em outras palavras, seus integrantes carregavam um conhecimento prévio das circunstâncias da prática da viagem. Os naturalistas geralmente abrangiam um vasto conhecimento de diferentes vertentes da História Natural em suas formações profissionais. Um ponto que merece menção se refere aos estudos antropológicos, que estavam vinculados à Zoologia até meados do século XIX, e portanto não deixavam de representar uma vertente da História Natural. As condições do regresso do naturalista também são dignas de atenção. Ao longo do século XVIII, foram inúmeras as viagens sem regresso. Eram comuns naufrágios, mortes por doenças ou por disputa com povos de outra cultura. De tão longas as viagens e precárias as condições de envio de correspondências, muitas vezes o naturalista era conservado em um estado de ignorância em relação à situação política da sua terra natal. Sendo assim, o regresso da Viagem Científica longa pode conter ainda aspectos desagradáveis, como a dificuldade de interpretação do trabalho do naturalista, tão importante e nobre no momento da partida, e que por vezes perde o sentido após os anos de ausência e distância (Bourguet, op.cit.). A escolha dos nomes dos naturalistas envolvia também fatores sociais e políticos, além dos científicos e profissionais. Geralmente, estas pessoas faziam parte do cenário político de seu país, ou melhor dizendo, compunham as elites dirigentes, e alguns destes escolhidos não apresentavam uma carreira de naturalista consolidada, o que só aconteceria após o retorno da Viagem, quando os dados recolhidos renderiam trabalhos científicos. Além dos naturalistas, a equipe de Viagem era composta de ajudantes, técnicos e homens responsáveis pelo registro iconográfico. A literatura presente no preparo das Viagens Científicas é composta por Instruções de Viagens e correspondências trocadas nesta fase. Através das cartas e ofícios, podemos constatar as negociações que envolvem a escolha dos nomes dos naturalistas integrantes da Viagem, o seu destino e outras particularidades, além das encomendas de equipamentos e livros. As Instruções de Viagem apresentam outros diversos aspectos históricos. A demanda por Instruções de Viagem tornou-se evidente no século XVIII, devido à ausência de sistematicidade das observações feitas pelos naturalistas nas expedições. Tentou-se excluir o fator subjetivo do olhar do naturalista, que tornava pessoal o relato de viagem, deixando-o vulnerável à interpretações diversas, como conseqüência de uma padronização que as instruções passaram a exigir, tornando o mais homogêneo possível o olhar do naturalista. Em outras palavras, as Instruções buscavam, acima de tudo, diminuir a tensão entre o sujeito observador e o objeto observado. Esta busca está presente nas primeiras Instruções de Viagens, escritas por Henrique André Nordblad, aluno de Linneo, em 1759, Instructio peregrinatoris (Brigola, 2000), onde há descrições das qualidades necessárias aos viajantes do ponto de vista físico e intelectual (Bilbao, 1991), em uma tentativa de homogeneizar o próprio naturalista. As Instruções de Nordblad, de certa forma, foram base para muitas das Instruções de Viagem que surgiram posteriormente. As características que o naturalista deveria possuir continuaram presentes em Instruções posteriores, como é o caso por exemplo do "Compêndio de observações...", publicado por José Antônio de Sá em 1783, em Portugal. Trocando em miúdos, o naturalista deveria apresentar um conjunto de qualidades, que englobariam por exemplo condições de saúde, que o capacitaria à realizar exercícios físicos, além de um rigor intelectual amplo e conhecimento profundo do Latim, para a classificação das espécies (Larsen, op.cit.). Acima de tudo, as Instruções de Viagem eram instrumentos de controle essenciais para a produção do conhecimento científico da época, pois tornavam possível o acompanhamento das Viagens de dentro dos gabinetes europeus. Por conseqüência, apresentavam forte visão centralizadora das ciências, pois definiam qual o conhecimento que deveria ser produzido, e até o que e como determinado objeto científico deveria ser observado. Elaboradas nos museus de História Natural, as Instruções orientavam sobre quais os produtos naturais e industriais a serem recolhidos e como deveriam ser preparados, os locais a serem percorridos, as observações etnográficas que deveriam ser feitas, a produção de diários de viagem e desenhos, enfim, abordavam todo o instrumental teórico e prático das Viagens. Além disso, o surgimento das Instruções permitiu também colocar em evidência o trabalho preparatório da Viagem, anterior ao campo, ampliando a visão do naturalista viajante somente como homem de campo, como veremos a seguir. Em meados do século XVIII, Portugal, acompanhando todo o movimento da Filosofia Natural da época, delineou as estratégias das suas Viagens de exploração. Entre outras medidas tomadas envolvendo este processo, foram traduzidas e adaptadas Instruções para as Viagens. Sinalizada pela reforma da Universidade de Coimbra (1772), a adesão de Portugal às ciências modernas, que incluíam a Filosofia Natural, consolidaria um novo contexto político institucional. Instituições como a Academia de Ciências (1779) e o Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda, em Lisboa tornaram-se centrais na implementação dos projetos de catalogação geral das condições naturais e econômicas de Portugal e suas colônia (Cardoso, 1991). No ano de 1781, os naturalistas do Real Museu de Ajuda redigiram o "Método de recolher, preparar, remeter, e conservar os produtos naturais seguindo do plano, que tem concebido, e publicado alguns naturalistas, para o uso dos curiosos que visitam os sertões, e costas do mar" (Almaça, 1993), Instruções que permaneceram manuscritas. Em muitos pontos, este manuscrito coincide com as "Breves instruções aos correspondentes da Academia das ciências de Lisboa sobre as remessas dos produtos, e noticias pertencentes a Historia da Natureza, para formar um Museu Nacional" (1781), preparadas pela Academia de Ciências de Lisboa. Estas Instruções acima citadas abrigavam o objetivo de buscar produtos do Reino de Portugal e de suas colônias para a formação de um Museu Nacional, bem como "o adiantamento das artes, Comércio, Manufaturas e todos os mais ramos da Economia" (p. 3-4), e continham uma tabela explicativa de como deveria ser elaborado um diário de campo, reforçando a idéia de padronização do olhar do naturalista. De um modo geral, as Viagens Filosóficas da segunda metade do século XVIII, organizadas por Domingos Vandelli, seguiram as Breves Instruções, ou adaptações próximas (Simon, 1983; Pataca, 2001). As "Breves Instruções" foram usadas também como modelo para a elaboração, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, das instruções luso-brasileiras do século XIX, inclusive a "Instrução para os viajantes e empregados nas colônias sobre a maneira de colher, conservar e remeter os objetos de Historia Natural" (1819). Estas Instruções concretizaram o ideal de funcionamento e organização do Museu Nacional do Rio de Janeiro (Lopes, op.cit.). Como gênero literário, a autoria e o público das Instruções eram determinantes das suas particularidades. Por exemplo, as "Breves Instruções", usadas no século XVIII, foram elaboradas por diversos naturalistas da época, dirigidas para os correspondentes da Academia de Ciências de Lisboa que se encontravam nas colônias portuguesas, não necessariamente versados em História Natural. Isto fez com que se configurasse um texto detalhado e minucioso nas orientações sobre métodos e técnicas de observar, coletar, preparar e remeter produtos de História Natural para a metrópole. Após o preparo, a Viagem em si se inicia. Um primeiro aspecto relacionado ao deslocamento no território, característico da Viagem, diz respeito ao transporte utilizado. O meio de transporte dos viajantes dos séculos XVIII e XIX na maior parte das vezes era o navio. Esta informação, mais do que óbvia, ganha especial interesse se pensarmos que estes navios representavam verdadeiras bibliotecas e laboratórios. Dentro deles encontrávamos "instrumentos de medição e observação, aparelhos para análises químicas, microscópios para examinar minerais, plantas e animais e uma biblioteca contendo relatos de viagem, mapas, catálogos classificatórios de fauna e flora" (Lisboa, op.cit.: 36). Além disso, os navios carregavam as Instruções de Viagens, todo o material para coleta e conservação do objetos naturais e a equipe de viajantes. Outro componente desta fase da Viagem é a literatura produzida. A literatura da Viagem propriamente dita engloba os diários de campo, e como não poderia deixar de ser, as correspondências. Os diários são um material importante de análise dentro da literatura de Viagens. Como bem coloca Bourguet (op.cit.: 230-231): "Cheios de apreciações e de observações sábias, de pormenores, de datas e de lugares, estes diários são um primeiro trabalho de registro, o mais isento e completo possível, e, todavia, constituem já o primeiro critério de seleção do conjunto dos fatos e das experiências do dia". Os diários são mais completos em informações e detalhes do que se comparados com os relatórios de Viagem ou publicações posteriores ao retorno do naturalista, pois esta literatura posterior passa por um processo de triagem de seu conteúdo, para que estes documentos preencham alguns requisitos de uma literatura científica objetiva. Já os diários, mais do que os relatórios e menos do que as correspondências, deixam claro as localizações do relato de Viagem no espaço e no tempo, delimitando a distância entre o autor e o leitor, tornando claro que ambos pertencem a quadros culturais diferentes (Torodov, 1999). Tão ricas quanto os diários de Viagem são as correspondências dos naturalistas. Sejam elas pessoais ou oficiais, as cartas contêm uma massa de detalhes muito valiosos. É possível, por exemplo, traçar as conexões entre os indivíduos através do grau de formalidade com que estes personagens se tratam (Outram, 1980). Dentro de estudos de caso específicos, as correspondências mostram os bastidores da história conhecida, revelando uma outra história por vezes mais palpitante do que as palavras oficiais revelam. Durante uma Viagem Científica, é comum a troca de correspondências entre o empregado e o empregador. Estas cartas, além dos fatos sobre a missão desempenhada pelo naturalista, comumente contém dizeres pessoais e informações adicionais muito ricas. No outro extremo, as correspondências pessoais também trazem informações sobre o dia a dia e as atividades do naturalista durante a sua Viagem Científica. Ao retornar da Viagem de Exploração, o naturalista trabalha sobre os seus dados e objetos naturais recolhidos durante o seu deslocamento, produzindo uma literatura específica, composta de memórias, relatórios e correspondências. Além disso, naturalistas e técnicos permaneceriam envolvidos com o preparo da coleção recém chegada, que inclui os processos de fixação, organização e catalogação do que foi coletado. Como coloca Drouin (op.cit.: 155): "Viagens e coleções aparecem assim como dois pólos da História Natural. Contudo, entre estes dois pólos, nada se passaria se não tivesse havido o trabalho de nomear e de classificar todos os espécimes fornecidos". Esta ligação entre a Viagem e as coleções é essencial para "a produção de um saber sobre o vivo" (idem). O acervo de um Museu de História Natural abriga pelo menos dois objetivos: o de exposição ao público e o da pesquisa científica. No que diz respeito aos estudos envolvendo as coleções, Restrepo (1993) destaca, por exemplo, o desenvolvimento de remédios originados de plantas trazidas das Viagens para os Museus. No ramo zoológico, temos os estudos de Anatomia Comparada, e na Mineralogia, as análises químicas, entre outras atividades possíveis de serem realizadas usando o material coletado. Geralmente, esta terceira fase da Viagem Científica é a mais duradoura. Os naturalistas trabalhariam com os objetos trazidos muitas vezes até o resto de suas vidas. Como foi o caso de Alexander von Humboldt. Nascido em 1769, Humboldt embarcou para a Venezuela em 1799 em companhia de La Condamine. Realizou excursões por diversos pontos da América do Sul, voltando para Paris em 1804. Uma Viagem Científica de cinco anos rendeu uma exposição de plantas no "Jardin des Plantes", e a fama adquirida pelo naturalista de enciclopédia ambulante. A enciclopédia não se restringiria apenas à fama: Humboldt produziu uma obra de trinta volumes versando sobre a sua Viagem, que foram escritos entre os anos de 1805 e 1825 (Pratt, 1997). Outro exemplo de naturalista que trabalharia até o fim da vida com os resultados de sua Viagem é Johann Emanuel Pohl, que veio para o Brasil em 1817, permanecendo aqui por mais de quatro anos. Ao regressar, entre os anos de 1827 a 1831, elaborou a "Plantarum Brasiliae icones et descriptiones", contendo a descrição de pelo menos quatro mil espécies de plantas. Este material viria compor o Real Museu Brasileiro em Viena, e as duplicatas foram distribuídas para diversos Museus europeus. Pohl faleceu em 1834, poucos anos após o seu retorno à pátria e a publicação de sua principal obra (Ferri, 1976). De todas as produções literárias relacionadas à Viagem científica, destaco no presente estudo o corpo documental composto pelas correspondências. Na prática da História das Ciências, a correspondência representa uma fonte legítima, um importante material de apoio para o melhor entendimento sobre os fatos que envolveram e nortearam a prática de naturalistas do passado. Nas cartas, estão presentes elementos que nos auxiliam a situar o naturalista em seu contexto cultural/científico. Tal aspecto toma relevância se tomarmos as palavras de Pestre (1996: 20), que considera o homem da ciência "aculturado num conjunto de práticas, de técnicas, de habilidades manuais, de conhecimentos materiais e sociais, ele é parte intrínseca de uma comunidade, de um grupo, de uma escola, de uma tradição, de um país, de uma época". Tais práticas, habilidades e conhecimentos, de tão presentes na correspondência trocada entre os naturalistas da primeira expedição científica brasileira, a já citada Comissão Científica de Exploração, nos levaram a usar as cartas não apenas como um material de apoio, mas sim como as fontes principais nos estudos por mim realizados sobre a "Científica" (Pinheiro, 2002). Voltando à citação de Pestre, no caso do Brasil de meados do século XIX, os homens que detinham as práticas, habilidades e técnicas que envolviam a História Natural da época, compunham uma comunidade científica que estava se consolidando (Lopes, op.cit.), e esta comunidade abrigava grupos e escolas que se diferenciavam pelas filiações sociais e intelectuais, formando redes de convívio, cujas intersecções podem ser compostas por relações pessoais, profissionais, familiares, e até mesmo por instituições. Partindo disto, partilhamos as palavras de Jardine & Spary (1996: 8), no que diz respeito à pesquisa sobre a história das ciências naturais: "Mais do que apresentar a história do conhecimento da natureza como fruto de indivíduos isolados, trabalhando sob o domínio único da mente, nós desejamos elaborar um quadro onde a história natural seja um produto de grupos de pessoas, objetos naturais, instituições, coleções e finanças, ligados por uma série de práticas" (tradução minha). Em outras palavras, os naturalistas componentes destes grupos constituíam e mantinham as suas existências através de hábitos sociais, estratégias, convenções e regras, definidas pela cultura científica de sua época. É a prática científica inserida e produzida por seu contexto cultural, político e social. A influência do contexto cultural do naturalista na prática científica de campo foi sistematizada por Jardine (et al., 1995), que editou um livro cuja proposta foi a de ilustrar a diversidade cultural da História Natural ao longo dos séculos. Para estes autores, a História Natural é o produto de grupos de pessoas, interessadas em diversos objetos de estudo, apoiadas em instituições e órgãos financiadores. Imprescindível também para a produção da História Natural, entendida como uma prática social, são as diversas habilidades que a envolvem, desde as técnicas de coleta e preparo de objetos naturais até a capacidade de transmissão de informações para gerações futuras, usando uma linguagem própria, comum entre os cientistas de cada época. Kuklick e Kohler (1996: 2) vão um pouco mais além. Estes autores diferenciaram a influência da 'bagagem cultural' pertencente aos homens da ciência nas atividades científicas realizadas no laboratório e no campo, postulando que "os cientistas partem das suas reservas culturais, literárias e visuais, para interpretar as suas observações" (tradução minha). As reservas culturais estão presentes em outros espaços de prática da História Natural. Os espaços diferentes apresentam modos diferentes de ação e observação do naturalista (Outram, op.cit.). Porém, no campo, além das suas próprias cargas culturais, devemos atentar para outra influência que o naturalista sofre, fruto do fato de que, no campo, o saber científico invariavelmente convive com outros saberes. Esta afirmação é justificada por Kuklick e Kohler (op.cit.), que argumentam que a prática de campo envolve personagens que residem no local e detêm informações sobre caça, pesca, natureza, entre outras que são utilizadas pelos naturalistas. Sendo assim, a interação cultural é intensa e, na maioria dos casos, recíproca. Além disto, os autores atentam que o turista e o naturalista podem, na prática de campo, coexistirem em uma só pessoa, e desta forma convivem práticas culturais diferentes em um mesmo personagem. Sobre este aspecto, Vessuri (1999: 16) coloca que "a falta relativa de controle no trabalho de campo, em contraste com o trabalho de laboratório, adquire especial significado quando o investigador está no estrangeiro porque nessas condições controla muito menos elementos do que se fosse um investigador nativo". Tal idéia é reforçada por Lopes (2001), ao destacar o caráter público do campo, que permite o trânsito de olhares amadores entre o olhar científico. As fronteiras entre o tradicional amador e o profissional não são até hoje muito definidas em determinadas situações nas atividades de campo. Como é o caso das Viagens Científicas de exploração, e incluo aqui, a Viagem realizada pela Comissão Científica de Exploração. A heterogeneidade cultural, presente neste caso, é reforçada pela falta de conhecimento sobre as províncias nas quais os naturalistas da Comissão desenvolveram seus trabalhos, consideradas por eles próprios as menos conhecidas do país. Tais atividades foram desenvolvidas na província do Ceará por naturalistas que preenchiam o papel de cientistas, de turistas, e até mesmo estrangeiros, dada a distância cultural existente entre a corte e a província do Ceará em meados do século XIX. A análise do aspecto cultural nas atividades científicas justifica o uso de documentos particulares na História das Ciências Naturais, pois, assim como Vessuri (op.cit.), postulo que existe uma intimidade entre a vida e a obra de um naturalista, que no conjunto de suas ações o pessoal e o profissional aparecem de modo não dissociado, e nenhum documento escrito expressa melhor esta proximidade do que as correspondências pessoais. Longe de conterem apenas informações do plano pessoal, as correspondências compõem um rico material de análise na História das Ciências. Quase sempre os assuntos sobre as atividades profissionais aparecem conjuntamente com informações sobre a vida e o cotidiano de quem escreve. Além disso, a maneira como tais temas são abordados nas correspondências nos permite observar a reputação atribuída aos indivíduos por seus contemporâneos. A forma de tratamento contida nas correspondências torna possível o mapeamento de conexões que refletem as afiliações intelectuais e políticas dentro dos grupos de profissionais, sendo de grande valia para as pesquisas em História das Ciências, ajudando a decifrar certos aspectos que os documentos oficiais não revelam. Bibliografia utilizada ALMAÇA, C. "Bosquejo histórico da zoologia em Portugal". Lisboa: Museu Nacional de História Natural, 1993. BILBAO, C. "La ciencia del hombre en el siglo XVIII. Jauffret, Cuvier, Degérando y outros". Buenos Ayres: Centro Editor de América Latina, 1991. BOURGUET, M.N. O explorador. In: VOVELLE, M. (dir) "O homem do iluminismo". Tradução de Maria Georgina Segurado. Lisboa: E. Presença, 1997. BRIGOLA, J.C. Viagem, ciência, administração - o complexo museológiclo da Ajuda (1768-1808). 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