DOMINGOS VANDELLI & AGOSTINHO DE MACEDO : A PROPAGANDA ANTI-MAÇÓNICA
Entre as centenas de títulos de Elmiro Tagideo, Padre José Agostinho de Macedo (1761-1831), Os Burros ou O Reinado da Sandice, publicado anonimamente em Paris em 1827, presta informações curiosas sobre instituições que marcaram a reforma pombalina e seus prolongamentos: a Faculdade de Filosofia, em Coimbra, com o Jardim Botânico, dirigido por Domingos Vandelli (1735-1816); o Real Jardim Botânico da Ajuda, com o Museu de História Natural, dos quais também foi director, e a Academia Real das Ciências de Lisboa, de que foi sócio fundador. Publicou nas Memórias da Academia, e dirigiu a secção de Ciências Naturais.

Praticamente todos os intelectuais de nomeada são zurzidos por Elmiro com o mais suave dos seus epítetos. De asno para cima chega ao inquisitorial cochino, mas não é a sátira o meu objectivo. Pondo-a de lado, o poema revela algo que só pontualmente se costuma referir: o facto de os filósofos naturais se congregarem em sociedades iniciáticas.

O Marquês de Pombal teve a ambição de modernizar o ensino, pondo Portugal a nível dos países mais evoluídos, o que aliás conseguiu, em projecto e em consequências estruturais póstumas. E até em facto, pois o laboratório de Física, em Coimbra, foi considerado o melhor da Europa. Criaram-se os jardins botânicos, observatórios astronómicos, laboratórios de Química, de Ciências Naturais, tudo destinado à prática e conhecimento vivo da natureza, à aplicação técnica e aproveitamento económico, e divulgação do saber ao público através das demonstrações.

Chamou os melhores professores estrangeiros para colaborarem na concepção dos projectos e leccionarem na Universidade Reformada, entre eles Vandelli. Incluíam-se as ciências nas matérias curriculares, primeiro no Colégio dos Nobres, que em parte por isso mesmo foi um fiasco, depois através da criação da Faculdade de Filosofia, para a qual Vandelli foi nomeado lente de História Natural e Química.

Professor da Universidade de Pádua, Vandelli celebrizara-se na Europa com publicações sobre botânica, zoologia, hidrografia, termas e águas medicinais. Correspondia-se com Lineu, admirador de Pombal. O sueco desenvolvera um melhor sistema de classificação, e acolhia, nas sucessivas edições do Systema Naturae, comunicações sobre novas espécies.

Quer nas aulas, quer com a publicação de catálogos como Fasciculus plantarum... (1771), Florae lusitanicae et brasiliensis specimen... (1788) e Florae, et faunae lusitanicae specimen (1797), VandeIli foi o introdutor entre nós do sistema lineano. Na correspondência entre ambos, e muito embora ambos se insiram no espírito racionalista das Luzes, a Natureza não aparece como objecto de estudo exclusivamente material. Há uma atitude de contemplação romântica que toca o misticismo, e atinge o próprio país, quando Lineu considera Portugal a Índia europeia, terra felicíssima. E infelizes os países que não possuem terras exóticas. Nos vero agnoscimas D.T.O. scripsisse duos libros et Naturam et Revelationem, escreve Lineu (Vandelli, 1788) ao amigo que o vai deslumbrando com ofertas de sementes e flores desconhecidas. Como um véu mágico, a linguagem sacraliza um trabalho laboratorial minucioso, perfeitamente moderno, que exige microscópio para «descer aos mais divinos segredos fechados no interior do Sacrário da Natureza» (ibid.).

Projectos reformistas num país sob apertada censura régia e eclesiástica, vivendo ainda no terror dos autos-de-fé, fossem eles religiosos, políticos ou científicos, para sobreviverem precisavam de recato. Como na Europa, as nossas arcádias e primeiras academias começaram por ser sociedades secretas, e era em tal sistema que se poetava, prosava e avançava na ciência moderna. A experimentação, entretanto, só foi possível graças ao suporte da alquimia, uma vez que só os alquimistas, no séc. XVIII, sabiam o que era um laboratório, com a correlata exigência de matéria-prima, instrumentos e uso das mãos. No século anterior, dito dos génios, homens como Paracelso e Newton, e do segundo basta dizer que a teoria da relatividade restrita é newtoniana, eram alquimistas. Nada disto, entretanto, se passava de maneira pacífica. Se o termo química era suspeito de heresia para as mentalidades conservadoras, a palavra alquimia dava direito à fogueira, por a Inquisição a ter conotado com bruxarias. Em 1781, alguns alunos de VandeIli foram de sambenito a um auto-de-fé, acusados de «Hereges, Naturalistas, Deístas, Blasfemos, Apóstatas, Tolerantes e Dogmáticos». Além disso liam por Rousseau e outros Hereges. Na Faculdade de Filosofia, preparavam-se alunos para serem naturalistas.

Por seu lado, a maçonaria resguardava esoterismos antigos e hermetismo, de tal maneira que parte da vanguarda intelectual, aquela de que nasceriam as independências americanas e o liberalismo, era um coágulo de filosofia hermética e popularização da ciência mais avançada do tempo. Não que estes homens buscassem transmutar chumbo em ouro; o ouro vinha do Brasil, e no laboratório fabricaram pólvora; buscavam porém a idade do ouro. Essa busca tem uma linguagem secreta, sobrenadando ao discurso científico.

Domingos VandeIli tomou parte nas mais diversas áreas da liderança nacional. Faz parte dos dados óbvios que era deputado do Tribunal da Real Junta do Comércio, que foi economista e conselheiro de finanças de D. João VI. Criou a fábrica de porcelana de Santa Clara, em Coimbra, de onde saíram as louças de vandel, as melhores do tempo. Associou-se à do Cavaquinho, em Gaia, fornecendo as suas receitas e segredos. Também esteve ligado à do Rato, em Lisboa. Ao que se diz, nas suas aulas de Química, os cadinhos, bocetas e almofarizes de cerâmica eram fabricados pelos alunos, no curso de experiências que visavam desenvolver tal indústria em Portugal. Como conheceu o sucesso, saíram leis a proibir a importação de louças da Europa. Tudo isto é do domínio público, mas Vandelli é uma figura sombra, invisível (não se conhecem retratos dele), cuja verdade falta revelar. A informação sobre ele é muitas vezes contraditória, contraditórias as avaliações dos seus actos. Reclamou um julgamento que não lhe foi feito, mas não é por isso que o mistério permanece.

Ocioso enumerar em quantas actividades se envolveu este médico, um dos pioneiros da conquista do espaço, na esteira de Bartolomeu de Gusmão, vulcanólogo, autor de uma espécie espectacular, mal conhecida ainda agora, um dos mais extraordinários animais à face da Terra, a tartaruga-lira, Dermochelys coriacea (Vandelli, 1761), criatura que mergulha a mil metros de profundidade e chega a pesar mais de novecentos quilos. Deve-se-Ihe a concepção dos jardins botânicos da Ajuda e Coimbra, e a flora ornamental que conferiu a Lisboa a sua marca exótica.

Enfim, Vandelli tocou todos os instrumentos, como era próprio dos filósofos naturais, e obteve várias recompensas. Teve porém o percalço de ser bom de mais, o que lhe acarretou o dissabor de no fim da vida ter injustamente ganho o título de traidor à Pátria. Trata-se da Setembrizada, no rescaldo das invasões francesas. Na noite de 10 para 11 de Setembro de 1810, a polícia prendeu-o, bem como ao filho, e a mais notáveis, entre eles o comerciante Jácome Ratton, e Domingos Pellegrini, o pintor. Foram embarcados na fragata Amazona com destino às Ilhas, as masmorras da Terceira, nos Açores. Não houve julgamento nem acusações, sim artigos publicados anonimamente num jornal de Inglaterra que os davam como conspiradores contra o governo e aliados. Tais notícias foram desmentidas pelos ingleses, aliás estes logo se encarregaram de interceder por Vandelli, através da Royal Society of London, academia criada por rosacrúcios, a cujo presidente, Banks, Vandelli dedicara uma espécie botânica.

Precedera esta prisão o mais condenado episódio da sua vida: a vinda de Geoffroy Saint-Hilaire a Portugal, com o fim de escolher nas bibliotecas e museus material destinado a enriquecer as colecções francesas. Segundo a opinião corrente, Vandelli teria deixado levar do museu da Ajuda, sem nenhuma resistência, o que hoje constitui lista de muitos produtos naturais. Há uma carta dele ao regente, então no Brasil, de 17 de Setembro de 1808, pela qual ficamos a saber que o ouro do museu tinha sido entregue a S. A. R. antes da sua partida, já a precaver o saque; que os exemplares mais valiosos tinham sido escondidos; que, estando as caixas na alfândega, se dera a restauração, pelo que solicitara a Beresford a restituição; e ainda que, apresentando-se Saint-Hilaire no Quartel General, propusera uma permuta, acabando por só ficar com duplicados, e oferecendo em troca minerais que não existiam no museu. De importante, Saint-Hilaire só levara a cópia de uma Flora do Peru, e a Flora Fluminense, ambas inéditas. Este caso, mais do que a suspeita de jacobinismo, veio a merecer-lhe a acusação de traidor, e o hábito de o tratarem como estrangeiro. Vandelli, em certos textos, mostra orgulho em ser português. A ciência, a economia, a agricultura, eram para ele uma questão de patriotismo. Naturalizou-se, o mais tardar, quando o nomearam deputado da Junta do Comércio, na qual não se admitiam estrangeiros.

Na Biblioteca Pública de Angra do Heroísmo, descobri o registo do passaporte que permitiu a sua partida para Inglaterra. Datado de 20 de Fevereiro de 1811, há nele um ponnenor sugestivo, para lá de mostrar que só ficou nos Açores uns seis meses: a autorização para o filho o acompanhar. O nome nem consta, é apenas referido pela patente militar. Era preciso Domingos Vandelli ter muito sólida reputação na Europa, como tinha, ser muito familiar da Royal Society, como o rosacrúcio que suspeito ter sido, para o governo permitir que um oficial do exército português, deportado nas Ilhas, saísse do país com tanta facilidade.

Registo do passaporte de Vandelli para sair dos Açores

Alexandre, um dos quatro filhos de Domingos Vandelli e D. Feliciana Izabella Bon (a família Bon usava em França o título de marqueses de Saint-Hilaire), viria a ser guarda-mor da Academia Real das Ciências, Ajudante do Intendente Geral das Minas e Metais do Reino, e partiria para o Brasil após a independência. Pai e filho mantiveram relações importantes com a América, Domingos Vandelli foi um dos lentes que autorizaram (em 1779) a viagem, por motivos particulares, de Joaquim Veloso de Miranda a Minas Gerais. Promoveu a viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira ao Brasil, este estava lá quando o secretário da Academia Real das Ciências, visconde de Barbacena, abafou a Inconfidência Mineira. Foi mestre de José Bonifácio de Andrada e Silva, Intendente das Minas e Metais do Reino, sogro de Alexandre Vandelli. Esta família dos Andradas está vinculada à independência do Brasil, Bonifácio de Andrade era ministro de D. Pedro, quando este soltou o grito do Ipiranga. A maior .parte dos homens que se notabilizaram na época eram brasileiros. Vieram tirar os cursos em Coimbra, alguns tinham conferência uma vez por semana em casa de Vandelli. Só aqueles em quem via talento e amor patriótico. Para discutir assuntos científicos e algo importante na época: a criação de sociedades. Neste domínio, a Real Academia das Ciências ocupa lugar central.

Sede do Grande Oriente, segundo Agostinho de Macedo, posta sob o símbolo da Rosa, e sob os auspícios da Rainha do milagre delas, Isabel (Ys+Abelha, em linguagem esotérica), a Academia Real das Ciências, que ao tempo era uma instituição brilhante, é incluída por Elmiro no Reino da Sandice, em moldes que iluminam o porquê do secretismo. Nela floriu não só uma ciência rebelde ao enquadramento teológico da escolástica e Inquisição, como germinou a semente do liberalismo e das independências americanas. Abade Correia da Serra, secretário da Academia, ministro plenipotenciário de Portugal nos EUA, sócio da Philosophical Society of Philadelphia (Filadelfos é nome de ordem iniciática), não passou toda a vida a herborizar. Vandelli admirava-o, deu o nome de Correa a uma das espécies de plantas coligidas no Brasil por Joaquim Veloso de Miranda, cujo herbário estudou e classificou.


Ora agora vem ca, Sandeu, chegaste
À grande sala que uma vez somente
Serve no ano à Pedreirada nossa.
O veneravel Maldonado mudo,
Zarolho Costa, que dos filhos mestre
Do Seabra se diz; doctor Vicente
O consultado oraculo dos tolos;
Rodrigo Pinto, thesoureiro d'elles;
E os mais abysmos da sciencia ou trolha,
Que o volcanico Hippolyto salvando,
Ficaram na esparrella, às Ilhas foram;
Aqui tinham Sessão do Grande Oriente.
Olha a rica armação franjada d'ouro;
Olha o docel de veludilho negro,
Os ricos avantaes, e as luvas brancas,
A espada, a caveirinha, a trolha, o prumo,
A esquadria, o compasso, a mitra, os cornos.
Os d'alto grau na Pedreirada mestres,
Que igualdade sonhando, e idades de ouro,
Do estouvado Francez não conheceram
Essa fatal Revolução de sangue:


Vandelli foi um destes pedreiros livres, um sonhador da Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Uma vez por ano pôs o avental e demais insígnias maçónicas para a Sessão do Grande Oriente, na sala nobre da Academia Real das Ciências. Correndo o risco de o apanhar ou Pina Manique ou a Inquisição. Elmiro Tagideo está na ala adversária dos académicos a quem distribui os piropos caros à mesma Inquisição, aquela e a de Manique que nunca lhe consentiriam a liberdade de publicar o livro em Portugal, e ele bem conhecia, uma vez que foi funcionário da Real Mesa Censória. E sócio também da Academia, portanto bem informado.

Vandelli, o Jardim Botânico da Ajuda e o Museu de História Natural, tiveram a honra de ser admitidos n' O Reino da Sandice:

No Museu do Palácio agora entremos:
Aqui tenho o meu throno, e sou Rainha;
É este o Busto do Sandeu Vandelli,
Aquella estatua Bonifacio Andrade;
Os tres Reinos aqui classificaram,
Ordenadores Comissarios ambos.
Vai vendo, filho meu, sôbre os armarios
Dos subalternos na sciencia inutil
Os Bustos, em argila, em greda, em humus,
Dos correios da morte em longo fio,
Aqui ves os retratos na direita;
Do Museu da Sandice enfeites dignos!
Acolá o Ricardo tens, gran' Trolha,
Que em Coimbra a Catherina divertia,
Ao que Reitor dos Nobres ser devera,
E à Maçonica depois dignidade,
Agente d' Albion, dos Lusos Régulo;
Fazendo-o eu d' Estado Conselheiro,
Pois tal gente compete a tal Estado.
De Mello Franco a estatua envemizada,
Co'a essencia da Vaccina, aqui contempla;
De ranhosas crianças rodeiado
Este assassino está, co'a lancetinha
Mettendo o pus, e consolando a Morte,
Pois sem ella as trazer, bexigas forma.


D. José morreu de varíola em 1788 e há quem acuse disso a rainha, por não ter permitido que o filho fosse vacinado. Ou seja, perfilha-se a tese de que o príncipe terá sido assassinado. Acabámos de ver Padre José Agostinho de Macedo a chamar assassino ao médico MeIo Franco, um dos mais notáveis da época. A Instituição Vacínica, criada em 1812 pela Academia Real das Ciências, não passou sem ataques e polémicas. Em França a vacina fora repudiada pelo próprio corpo médico. Vacina e anterior inoculação variólica. Esta consistia em inserir na pele pó de bexigas de ser humano. A vacina recorria ao das vacas. Dizia-se então que as pessoas vacinadas corriam o risco de mugir, lhes nascerem pêlos e cornos.

Para além de que numa atmosfera carregada da ideologia do Santo Ofício, havia de ser insuportável a ideia de sujar o sangue, para mais tratando-se do sangue azul do príncipe D. José. Só com o Marquês de Pombal fora abolida a exigência de certificado de sangue limpo aos cidadãos que pretendiam desempenhar certos cargos ou exercer certas profissões. Preconceitos raciais e religiosos ligados ao corpo nem nos nossos dias desapareceram. Padre Agostinho de Macedo está a falar da vacina e não da inoculação, o que significa que redigiu esta passagem muitos anos após a morte de D. José. De outra parte, por muito anti-liberal (foi um miguelista fanático), era um escritor moderno, considerado pré-romântico e o primeiro jornalista português em moldes contemporâneos. Se um intelectual desta estirpe chama assassinos aos pioneiros da vacina, àqueles que contribuíram para que a varíola desaparecesse da Europa, é difícil esperar que a rainha tivesse ideias mais desempoeiradas do que ele. Além do mais, se vacinados morriam, antes, com a inoculação, muitos mais sucumbiriam, razão de sobra para D. Maria temer a cura mais do que a doença. Uma das maiores frustrações dos médicos foi a morte de uma filha do duque de Lafões, presidente da Academia, que fora preventiva e exemplarmente vacinada.

Vandelli era médico, a varíola foi assunto da sua correspondência com colegas estrangeiros, que se lhe queixam das calúnias lançadas sobre os que vacinavam. A grande preocupação da ciência girava em torno das doenças. Botânicos, zoólogos, químicos, mineralogistas, em parte trabalham com objectivos médicos, porque qualquer dos Três Reinos fornecia remédios. Em 1774, na sua primeira lição - «Nunca me veio ao pensamento que eu devesse ser o primeiro, que em esta Ilustre Universidade houvesse de ensinar a Ciência Química» -, Vandelli informa que o uso da Química se alargava a todos os campos médicos: fisiologia, patologia e terapêutica; que examinava a natureza de todas as partes do corpo humano, e também fazia conhecer as depravações, origens e efeitos dos humores. E concluía: «Nem também as forças, virtudes, e elementos dos venenos e dos remédios, se podem conhecer se não pelo meio da Química».

Foi ainda no Laboratório de Química que Vandelli ensinou os alunos a fabricar balões. A Gazeta de Lisboa noticiava lançamentos a 25 e 27 de Junho de 1784, dizendo que a máquina aerostática tinha figura piramidal cónica, subira no ar até o seu diâmetro não parecer mais de dois palmos, e informava: «Esta máquina se achava prestes no laboratório químico da Universidade para ser lançada aos ares a 15 de Junho; mas, quando os autores dela, que são Tomás José de Miranda e Almeida, José Álvares Maciel, Salvador Caetano de Carvalho e Vicente Coelho de Seabra, todos aplicados às Ciências Naturais, quiseram autorizar esta experiência (que lhes fora encarregada no princípio do ano lectivo próximo passado pelo seu mestre, o Dr. Domingos Vandelli) com a assistência do Exmo Reitor da Universidade, por esta razão se demorou ali o referido tempo. E efectivamente no dia 27 assistiram à experiência o dito Exmo Reitor com todo o corpo académico, nobreza e povo, por quem os autores dela foram geralmente aplaudidos».

Um ano após a estreia dos irmãos Montgolfier, Vandelli exigira dos alunos que lhe pusessem um aeróstato no ar, o que eles, dignos do mestre, diligentemente cumpriram. Alguns vieram a seguir-lhe as pisadas: Vicente Seabra, já atrás referido por Elmiro Tagideo, foi químico importante. Maciel seria deportado para Angola, dada a sua participação na conjura do Tiradentes.

Elmiro Tagideo usa o Museu e Real Jardim Botânico da Ajuda como pretextos para a sua diatribe política contra o estado de coisas da época. Em muito terá razão. Em muito não terá nenhuma, como ao dizer que no Jardim Botânico não havia plantas exóticas. Vandelli plantou tantos exotismos que chegou a ser acusado de introduzir em Lisboa uma epidemia de dragoeiros. São muito belos, e além disso eram úteis, forneciam o sangue de drago.

Deixemos animaes que nestes Paços
Nunca teem fim quadrupedes e insectos;
Só Aguias no Museu nunca aninharam!
A meu jardim botanico encaminha
Agora os longos pés, que às hervas corres:
Nenhuma planta exotica vegeta
N'este meu logradouro, apenas cardos,
Pasto mimoso de esfaimados Burros.

Em 1791, Brotero sucedeu a Vandelli na direcção do Jardim Botânico de Coimbra. O menor dos seus defeitos foi a dor de cotovelo. É ele a fonte de algumas maldades dirigidas a Vandelli. Encerremos com o retrato que de Padre Félix da Silva e Avelar, verdadeiro nome do Botânico, pinta Elmiro Tagideo, se por acaso não for Veloso de Miranda o retratado - sim, "o nosso Velloso", como diziam os académicos, era brasileiro:

Olha neste recanto as obras todas
Que o gordo, traduziu, Padre das hervas;
D' agro-manía possuído a eito,
Aos Lusos deu theoreticas batatas,
Planos de arroz e mel, cevada e milho,
Fazendeiros da America e mellaço,
Co' as estampinhas mil, (trabalho inutil)
Que a Dom Rodrigo o bom, milhões custaram
Na abertura das chapas e matrizes
Das lettras calcographicas de trampa.
O tractado da Abelha aqui conservo,
Que ensina so despovoar colmeias.

Brotero foi também maçon e sócio da Real Academia das Ciências. É facto que uma das suas obras no Real Jardim Botânico da Ajuda, que dirigiu, foi mandar fazer chapas de metal para a identificação científica das espécies plantadas por Vandelli. E certo ainda que vários escreveram sobre o mel e as abelhas. Não me recordo porém de ter Brotero escrito algum tratado sobre o assunto. A menos que não fossem aquelas de que os alquimistas diziam: A rosa dá o mel às abelhas. E decerto não é Brotero o retratado, sim Veloso de Miranda, o que para o caso não faz grande diferença.

Bibliografia

AZEVEDO, P. (1922) - Geoffroy Saint-Hilaire em Lisboa. Boletim da Classe de Letras, Academia das Ciências de Lisboa. XIV.
COSTA, A.M.A. (1986) - Domingos Vandelli (1730-1816) e a cerâmica portuguesa. ln: História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. Academia das Ciências de Lisboa.
CRUZ, L. (1976) -Domingos Vandelli. Coimbra
PALHINHA, R. T. (1945) - Domingos Vandelli, Revista da Universidade de Coimbra, XV.
VANDELLI, D. (1788) - Florae lusitanicae et brasiliensis specimen et epistolae ab eruditis viris Carolo a Linné, Antonio de Haen ad Domicum Vandelli scriptae. Typ. Acad.-Regia, Coimbra.

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* Artigo publicado originalmente na revista Sol XXI, 12, 1995, pp. 3-10, Lisboa, com o título "Domingos Vandelli & Agostinho de Macedo".