O entusiasmo com o gosto de sangue faz surgir os Piratas, em versos que
escandalizaram muitos críticos. Piratas trazendo não apenas violência,
mas uma concepção de vida totalmente oposta àquela descrita pelo
estoicismo e epicurismo de Ricardo Reis. Em vez da paz encontrada no
meio do caminho, a Ode Marítima descreve o caos dos extremos do caminho,
pelo menos no ponto mais alto que atinge a onda antes de desfazer-se em
espuma.
Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,
Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,
E o terror dos apressados foge pra loucura — essa hora,
No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens,
Brisa, latitude, longitude, vozearia,
Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,
Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho,
Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma! (47)
***
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas p'los piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles!
E sentir tudo isso — todas estas coisas duma só vez — pela espinha!(48)
***
A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo
Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,
Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,
A minha feminilidade que vos acompanha é ser as vossas almas!
Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!
Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações
Quando tingíeis de sangue os mares altos,
Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões
Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das crianças
E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes acontecia! (49)
São versos assustadores, sem dúvida, que nos fazem lembrar do desejo de
se controlar a imaginação, pois ela não nos coloca apenas diante de
imagens sublimes, mas também diante de imagens grotescas e agressivas. A
saída racionalista desta questão foi considerar o primeiro tipo de
imagens, as sublimes, como úteis passatempos embelezadores, qual
pequenos jarros de flores colocados às janelas. Quanto ao segundo grupo
de imagens, as grotescas e intoleráveis, seu surgimento foi associado a
perturbações psíquicas. Porém, no nosso entender, o que estes versos
buscam transmitir não dista muito dos sublimes versos da "Mensagem",
único livro publicado em português por Fernando Pessoa. São uma mesma
moeda: de um lado imagens nobres, do outro imagens ignóbeis. Ambos os
lados nos levam a entrar em contato com a energia da ação da qual
estamos falando, opondo-se à mesmice e à repetição da vida moderna, tal
qual Fernando Pessoa e companhia a concebiam. Não devemos esquecer que,
graças à Nova História, com sua possibilidade de dar direito à voz a
quem antes não podia falar, os feitos dos barões assinalados, em suas
andanças conquistadoras pelo mundo e louvados na Mensagem, não permitem
uma distinção clara às ações dos piratas. Os piratas roubavam o roubo
dos Reis. Aqueles entraram para a história como malfeitores. Estes, como
conquistadores. Para evitarmos idealizações precipitadas, não devemos
esquecer também que Fernando Pessoa não condenava o colonianismo
português. Fechando os olhos às atrocidades cometidas, nem imaginando as
que estariam por vir, julgava que a posse das colônias ultramarinas
portuguesas não fosse necessária para a glória cultural e espiritual do
Portugal Renascido, mas suas perdas poderiam diminuir o país aos olhos
das outras nações. Nações européias colonianistas, com certeza.
Retornando à Ode Marítima. De que modo a Psicologia Arquetípica nos pode
ajudar a compreender seus versos? Através de James Hillman, Thomas Moore
e Lyn Cowan, teremos importantes contribuições ao assunto.
Como mencionamos, a patologia é vista de uma maneira muito específica
por Hillman. Para marcar esta diferença, cunhou o termo patologizar,
para expressar a habilidade autônoma da psique de criar doenças,
morbidez, desordem, anormalidade e sofrimento em qualquer aspecto de seu
comportamento, e de experimentar e imaginar a vida através desta
perspectiva deformada e aflita. (50)
A intenção de Hillman é a de mudar nossas maneiras de avaliar as imagens
e comportamentos que são difíceis de digerir pela perspectiva adaptativa
do eu. Com a mudança do termo, o patologizar, ele tenta um novo começo
na avaliação dos sofrimentos. Ao invés de vê-los como errados e
pecaminosos, devemos descobrir sua necessidade. Todo esforço encontra-se
em dar validade primária a estas experiências e imagens.
Um dos objetivos destas imagens patologizadas (e não patológicas) é
fornecer uma nova perspectiva à nossa vida comum, principalmente se este
estilo comum de vida estiver vazio de experiências que toquem
profundamente a alma. Por isso, Álvaro de Campos, continuando sua Ode,
escreveu:
Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'aqui engenheiro, prático à força, sensível a tudo,
Pr'aqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir de acordo com meu delírio!
Arre! por andar semprte agarrado às saias da civilização!
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
Moços de esquina — todos nós o somos — do humanitarismo moderno!
Estupores de tísicos, de neurastênicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
Ah, os piratas! os piratas!
A ânsia do ilegal unido ao feroz,
A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,
Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzinos,
Os nossos nervos femininos e delicados,
E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!
Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!
Humilhai-me e batei-me!
Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa!
E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,
Ó meus senhores! ó meus senhores! (51)
António Quadros, em seu livro "Fernando Pessoa: Vida, Personalidade e
Génio", cita um estudo de Eduardo Lourenço que percebe nesta corpórea
pirataria, "sentimentos reprimidos de pederastia passiva" (52). Leitura, a
nosso ver, demasiado literal, que é a tônica da maioria dos críticos
quando abandonam a literatura em busca da pessoa. De nossa parte, não
consideramos a escolha sexual de Fernando Pessoa como tendo qualquer
participação importante em sua obra. Ao invés de uma tensão entre
homossexualismo e heterossexualismo, o poeta e sua obra oscilam entre
envolvimento e solidão, independente deste envolvimento ser com uma
mulher ou com um homem, embora concordemos que neste último caso as
dificuldades seriam maiores. Em nossa época denominada pós-moderna as
minorias conquistaram o direito de exporem seus pontos de vista.
Mulheres, negros, inválidos, loucos, pobres, judeus, muçulmanos,
latinos, índios, homossexuais, verdadeira legião de excluídos, têm o
direito de se expressar, contribuindo para uma visão de mundo mais
múltipla, variada e sofisticada. Estas contribuições deslocam a fala que
pretende ser hegemônica, em geral associada ao homem branco, europeu,
cristão, católico, racional, burguês ou aristocrata. A contribuição de
Fernando Pessoa para o alargamento de nossa consciência passa pelo homem
fracassado, sofrido, derrotado, neurastênico, solitário. Não há uma
contribuição homossexual nos seus escritos. Além do mais, se formos nos
prender aos versos, fica fácil provar que Álvaro de Campos era bissexual
e não homossexual. Se é certo que andou com rapazes, "aquele rapazito
que me deu tantas horas felizes", (53) também é certo que desfrutou dos
prazeres com mulheres, pelo menos aquela vez que o velhaco comissário o
pegou com a sueca, "e o resto ele adivinha" (54). Portanto, ao invés de
lermos, nestes versos, sinais e sintomas do homossexualismo de Fernando
Pessoa, achamos mais interessante perguntar a que servem estas imagens,
quais são suas intenções ficcionais, dando respostas imaginativas aos
produtos da imaginação, como recomenda Hillman.
Em vez de homossexualismo, podemos ler, nos ferozes e animalescos versos
da Ode Marítima, não um homem penetrando um outro homem, mas a ação do
masculino penetrando violentamente a passividade do feminino com a
intenção de despertá-lo. Este é torturado, como a Psique do conto, em
função do Amor. São imagens fortes, mas seu efeito é transformador.
Para Hillman a atividade do patologizar, leva-nos ao reconhecimento da
atividade autônoma do psiquismo, como uma outra personalidade que nos
habita, fornecendo outras maneiras de pensar o mundo. Tentamos seguir a
alma aonde quer que ela nos leve, tentando aprender o que a imaginação
está fazendo em sua loucura (55).
O patologizar possui também uma função ficcional, literária. Através da
linguagem deformada e exagerada por ele criada, o psiquismo toma tais
proporções que passa a incomodar, gerar culpa, reflexões, ameaçando
nossa sanidade, afligindo-nos com o ataque às nossas fantasias de
normalidade e aos nossos padrões objetivos.
As imagens patologizadas da Ode Marítima remetem-nos a experiências
descritas comumente como sádicas e masoquistas. Sade, segundo Thomas
Moore, com suas inversões sexuais, suas torturas e humilhações, revela o
lado sombrio do Amor, onde aflição e dor possuem a função de preparar
uma alma inocente para as complexidades da vida.
A mitologia de Sade pode ser vista, portanto, como um exemplo particular
da necessidade da alma do patologizar. Sade desafia nossos valores
usuais, freqüentemente confinados pelos perímetros da consciência e os
fáceis heroísmos da virtude comum, nos convidando a considerar algumas
alternativas sombrias. Nisto ele serve à alma ao invés do ego. Ele fala
em favor do mistério oculto e reprimido contra as normas conhecidas e
testadas da civilização, outra razão para nos referir a ele como o
"Divino Marquês" (56).
Por outro lado, as mortificações sofridas pelo narrador do poema,
interpretadas, como vimos acima, como pederastia passiva, podem ser
entendidas, segundo Lyn Cowan, como um modo de terapia, uma maneira de
servir a algum outro princípio, para ser re-moldado e re-construido.
O que a Psicologia Arquetípica enfatiza, através da idéia do
patologizar, é o fato do psiquismo produzir estas imagens de excessivo
sadismo e masoquismo por serem meios de expressão legítimos e
profundamente eficazes. Estamos lidando com ficções. O problema
encontra-se, para James Hillman, não nas imagens em si, mas em como
trabalhamos estas imagens. Mesmo que Thomas Moore chame nossa atenção
para o fato de que "não é possível traçar claros limites entre
imaginação e vida", (57) ou entre metáfora e literalismo, o único caminho
construtivo é aceitar as imagens criadas pela imaginação e prestar
atenção à sua retórica, prestar atenção ao que a imaginação diz.
A Ode Marítima, contudo, não termina com a carnificina dos piratas.
Satisfeito com a energia animal que as imagens forneceram, passo a passo
vai havendo uma tranqülização. Em harmonia com nossas reflexões, e em
harmonia com a tese pessoana de que a verdade não pode consistir senão
em ser tudo, Álvaro de Campos, continuando seu grande poema, passa a
sentir não mais o prazer do agressor, mas a dor dos agredidos. "O
vermelho anoiteceu".58 Com este verso, marca a ruptura que o leva a
sentir ternura e remorso por todas as vítimas.
Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos à vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães deles),
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para verem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo
tranqüilo em casa) (59).
Tomado por sua "imaginação higiênica", o poeta maravilha-se novamente
com a vida marítima moderna, limpa e cheia de saúde. Com pessoas,
mistura de pessoas de várias raças, viajando a negócios e a passeio.
Tudo muito humano e simples. Volta a imperar a tristeza e a solidão,
marca essencial da antologia, a unidade na diversidade, como quer
Jacinto do Prado Coelho.
Passa, lento vapor, passa e não fiques...
Passa de mim, passa da minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração,
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edifícios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha....
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte...,
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh'alma...(60)
Quando associa o fato de ser um poeta dramático ao seu "diagnóstico" de
histero-neurastênico e, mais especificamente ainda, com o fato de ser
homem, pois no homem a histeria explode para dentro, Fernando Pessoa
está dizendo que aquilo que criou permaneceu no campo da ficção. Esta é
a segurança buscada pelo poeta. Disse ainda mais. A neurastenia impede
que estas ficções se transformem em realidade, que sejam concretizadas e
literalizadas. Não é preciso, no entanto, ser neurastênico para obter a
segurança desejada, basta ser poeta, ou seja, trabalhar ficcionalmente
as imagens.
Mesmo quando Álvaro de Campos se intromete no namoro de Fernando Pessoa,
exigindo que Ophélia se separe do poeta, não podemos falar de
literalização (nem de homossexualismo, como o fato é também
interpretado). Álvaro de Campos encarna princípios, formas de ser e de
viver, concepções de mundo que impedem a aceitação do relacionamento
amoroso, pois sua continuidade levaria ao casamento e este a uma série
de modificações no estilo de vida que Fernando Pessoa parece não foi
capaz ou desejoso de efetuar. Mesmo gostando muito de sua bebé-anjinho.
A histeria interior de Fernando Pessoa permitiu que ele explodisse em
inúmeros seres ou deixou que os inúmeros seres o explodissem; a
neurastenia exterior impediu que esta explosão saísse da esfera do
literário. Profundamente lúcido disso, Fernando Pessoa escreveu, numa
das passagens que acreditamos ser uma das mais esclarecedoras do
processo de criação do poeta:
A confecção destas obras não manifesta um qualquer estado de opinião
metafísica. Quero dizer: com o escrever estes "aspectos" da realidade,
totalizados em pessoas que os tivessem, não pretendo uma filosofia que
insinue que só há de real o haver aspectos de uma realidade ou ilusiva,
ou inexistente. Não tenho, nem essa crença filosófica, nem a crença
filosófica contrária. Adentro do meu mester, que é literário, sou um
profissional, no sentido superior que o termo tem; isto é, sou um
trabalhador científico, que a si não permite que tenha opiniões
estranhas à especialização literária, e que se entrega. E o não ter nem
esta, nem aquela, opinião filosófica a propósito da confecção destas
pessoas-livros, tão-pouco deve induzir a crer que sou um cético. A
questão está num plano onde a especulação metafísica, porque não entra
legitimamente, escusa de ter estes, ou aqueles caracteres. Como o físico
não tem metafísica no seu laboratório, e a não tem o clínico nos
diagnósticos que faça [?] não porque a não possa ter, mas porque (...)
assim o problema metafísico meu não existe, porque não pode, nem tem que
existir adentro das capas destes meus livros de outros (61).
Como seu ofício é literário, os heterônimos são pessoas-livros, "livros
meus de outros", e não gente de carne e osso, embora o fato de serem
ficção não diminua sua importância e sua autonomia.
O ofício literário impede as imagens de explodirem para fora. A
alquimia, ofício "científico" dos séculos XVI e XVII, mas que hoje
sabemos que era um trabalho metafórico usando materiais e substâncias
concretas, possui uma imagem surpreendente que nos ensina a permanecer
no ficcional. Os alquimistas acreditavam que toda imagem possui um
impulso irresistível a concretizar-se, procedimento que eles denominaram
coagulação. Esta força muscular da imagem foi representada como um leão.
O trabalho alquímico ou filosófico — pois os alquimistas se consideravam
filósofos, que buscavam a pedra filosofal, a pedra que não era uma
pedra, expressão inequívoca de sua atitude metafórica — consistia,
então, em preservar o leão (a imagem) ao mesmo tempo que lhe era tirada
a possibilidade de ação (literalização). Isto era feito cortando-se suas
quatro patas, o que o impediria de agir. O leão privado
de suas patas transforma-se em succus vitae (suco vital) que os
alquimistas entendiam como uma capacidade de reflexão. James Hillman diz
que este procedimento alquímico pode ser também percebido nas imagens
onde leão e Santo aparecem lado a lado: o Santo acalma o leão, enquanto
que o leão desperta o Santo com seu rugido. O rugir dos heterônimos
despertou a alma de Fernando Pessoa. Mas o trabalho poético do poeta
arrancou-lhes as "patas", impedindo que deixassem de ser ficções.
Faz parte da genialidade e do ofício literário de poeta jogar
metaforicamente as categorias psiquiátricas de histeria e neurastenia,
especialmente porque a psiquiatria é uma ciência, por definição,
literalmente presa ao corpo. Sabemos, agora, graças ao seu trabalho
alquímico-poético, que histeria é a capacidade dramática de criar
personagens; e que neurastenia é a capacidade de impedir a literalização
destes personagens e de suas falas. Histero-neurastênico é, portanto, o
nome psiquiátrico que Fernando Pessoa dá ao seu modo de poetar. Seu
auto-psico-diagnóstico constitui um dos momentos geniais da sua obra.
Para James Hillman o fim da análise é a conquista da consciência
Dionisíaca. Um dos meios que a alma encontrou, em nossa época moderna,
para obter tal consciência, foi a histeria. Ela forçou a consciência
racional a direcionar seu foco de interesse para outras questões até
então desconsideradas e abandonadas por ela. A imagem da mulher (e,
também, ela, fisicamente) teve um papel preponderante neste processo.
Sobre ela, a mente racional, com a qual associa-se o masculino, colocou
os atributos de fraqueza, inferioridade, inconsistência, fala ambígua,
retórica, metáfora, ficção, mentira. Paul de Man comentou em seu artigo
"A Epistemologia da Metáfora" as opiniões que John Locke teceu acerca da
linguagem. Para o filósofo inglês, as palavras, embora necessárias,
continham em si um grande perigo. Ao se intrometerem entre a percepção e
a verdade, poderiam desviar completamente o entendimento graças ao poder
figurativo que as palavras possuem. Este poder figurativo, encantatório,
Locke comparou com a mulher. Escreve Paul de Man:
Como uma mulher, a quem se assemelha ("como o sexo frágil"), a retórica
é algo desejável, contando que seja mantida em seu devido lugar. Fora
dele, entre os assuntos sérios dos homens ("se formos falar das coisas
tal como são"), é um escândalo desagregador — como a aparição de uma
mulher verdadeira em um clube de cavalheiros, na qual ela só seria
tolerada como um quadro, de preferência nua (como a imagem da Verdade),
emoldurada e pendurada na parede (62).
Hillman chama a atenção para um ponto interessante. No Malleus
Maleficarum, o manual de caça às bruxas da Inquisição, publicado em
1494, a palavra femina é derivada de fe (fé) e minus (menos). Sua
intenção é mostrar que a mulher tem menos fé que o homem. Diríamos de
outra maneira. A mulher tem menos fé nos dogmas, por isso não se pode
confiar nela. É claro que esta mulher nada tem a ver com a entidade
biológica e social de mesmo nome. Essa mulher é, na verdade, uma figura
de linguagem para os homens.
Através da histeria, no final do século passado, as mulheres (e os
homens) puderam expressar seus descontentamentos, suas queixas e
pronunciar seus desejos. Sigmund Freud, ao criar um espaço de liberdade
para este discurso, acabou descobrindo uma outra linguagem, uma outra
fala aquela da razão consciente. Acabou descobrindo, também, a fala de
uma outra, permitindo que heterônimos surgissem, povoando seu
consultório e a alma de seus pacientes de pessoas diferentes.
Dioniso, embora fálico e homem, é um Deus próximo das mulheres. Um deus
andrógino, homem-mulher. A consciência Dionisíaca torna-se,
conseqüentemente, uma consciência andrógina. Como vimos, para Fernando
Pessoa, o Quinto Império é o império do andrógino, e, portanto, o
Império da Consciência Dionisíaca, que combinaria todas as polaridades
associadas ao gêneros. Sadismo-masoquismo, ativo-passivo, vida-morte,
razão-ficção, superior-inferior, sucesso-fracasso, passam a habitar
legitimamente homens e mulheres.
O fim da análise é também seu término. Prevalecendo a atitude misógena
da cultura racional patriarcal, continuaremos a avaliar tudo isso de que
até agora estamos falando como inferior em valor e importância. A nova
consciência andrógina, Dionisíaca, nascida da crescente luta dos vários
grupos de oprimidos e estrangeiros da vida, deve encontrar um espaço de
manifestação positivo em nossa sociedade. Talvez já estejamos vivendo
esta mudança, sob o nome de pós-modernismo. Porém, uma discussão
aprofundada deste tema foge às intenções deste trabalho. Para Hillman a
Consciência Dionisíaca compreende os conflitos em nossas estórias
através de tensões dramáticas, mas não através de opostos conceituais;
somos formados por agonias e não polaridades (63).
Dioniso é, portanto, o Deus do drama, do teatro. Abrir-se à consciência
Dionisíaca significa abrir-se a uma experiência cuja lógica é a ficção,
onde a identidade circula por um número grande de personagens, máscaras
sem um rosto fixo por detrás. |