Em 10 de junho de 1919 Fernando Pessoa escreveu uma carta a dois
psiquiatras franceses, Hector e Henri Durville, em busca de respostas a
seus problemas. Estes dois psiquiatras utilizavam o magnetismo
terapêutico que, segundo as informações do historiador da psiquiatria
Henri Ellenberger, já estava há muito desprestigiado (1) pelo pensamento
médico desde o final do século passado.
Desconhecendo este dado, ou considerando-o sem importância, pois não
estava como não estamos fazendo ciência, Fernando Pessoa queria uma
solução para seu próprio sofrimento: "Minha vida psíquica é uma espécie
de curso de desmagnetismo pessoal." (2). O poeta se imaginava, ou se via
como destituído de qualquer atrativo e abúlico. Só lhe restava a
vivência solitária de seu existir poético.
Mesmo sabendo que gostavam dele, chegando a anotar isto em seu próprio
diário: "também quem é que não gosta de v.?" (3), não era bastante ou
suficiente. Fernando Pessoa queria mais.
Sentía-se ridículo, feio, desajeitado, votado à solidão, forçado à
virgindade, em suma, um narigudo sobre um pescoço que ofende a
humanidade (4). Considerava-se, por este motivo, incapacitado para o amor:
A quem a Natureza não fez bello
Com seu corpo lhe disse: tu não amas! (5)
Mais impressionante ainda para um poeta, embora escrito no desespero dos
dezoito anos, é o apontamento que une beleza e poesia de forma
literalizada:
O artista deve nascer belo e elegante, pois o que cultua a beleza não
deve ser ele mesmo feio. E é seguramente (?) uma terrível dor para um
artista não descobrir absolutamente em si-mesmo aquilo por que ele luta.
Quem, olhando para o retrato de Shelley, de Keats, de Byron, de Milton e
de Poe, pode estranhar que foram poetas? Todos foram belos, foram amados
e admirados, todos tiveram em amor calor de vida e alegria celestial,
até onde qualquer poeta, ou, na verdade, qualquer homem pode ter (6).
Fernando Pessoa havia esquecido, ou ainda não conhecido, que Sócrates,
embora fosse horroroso, era considerado o mais belo dos homens. Da mesma
forma, a beleza de um poeta não está na superficialidade de sua forma,
mas na profundidade de sua poesia.
Contudo, esta beleza externa, muitas vezes, faz falta. Em especial
quando a própria pessoa é seu maior crítico. Por isso Fernando Pessoa
ficava feliz quando recebia um olhar ou um sorriso, mesmo efêmero ou por
acaso.
Passava eu na estrada pensando impreciso,
Triste à minha moda.
Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso
Agradou-lhe a cara toda.
Bem sei, bem sei: sorriria assim
A um outro qualquer
Mas então sorriu assim para mim...
Que mais posso eu qu'rer?
Não sou nesta vida nem eu nem ninguem,
Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada sorria alguém
Ainda que por acaso.(7).
Nesta estrada obscura e cheia de muros (8) não é de se estranhar a
necessidade de magnetismo, pelo desejo de ser amado pelas multidões e de
ser, qual Dioniso, "o amado das mulheres, atraindo-as arrebatadamente
para fora das suas casas." (9)
Mas destes arrebatamentos Dionisíacos, sabia que passava longe. Pelo
menos no tocante à sexualidade. O pouco que possuía gastou-o nos
incontáveis e ardorosos beijos em Ophélia Queirós e nos poemas Antinous e Epithalamium, escritos em inglês e considerados pelo poeta como os
únicos poemas explicitamente obscenos que escreveu.
Há em cada um de nós, por pouco que especialize instintivamente na
obscenidade, um certo elemento desta ordem, cuja quantidade,
evidentemente, varia de homem para homem. Como esses elementos, por
pequeno que seja o grau em que existem, são um certo estorvo para alguns
processos mentais superiores, decidi, por duas vezes, eliminá-los pelo
processo simples de os exprimir intensamente (10).
Definitivamente o gênio ou o demônio de Fernando Pessoa não era o da
sexualidade. Por outro lado, foi Dionisíaco atá à alma em outras duas
atividades: na bebida e no drama.
Todos apontam a embriaguez como sua causa mortis. Em 1935, com 47 anos
de idade, planejando publicar no próximo ano sua obra poética, tendo
recebido o prêmio pelo seu livro Mensagem, Fernando Pessoa morreu de
cólica hepática, três dias após sua internação. Antes de morrer, pediu
seus óculos. Não era homem de querer ver embaçado e desfocado este
instante, pois a morte foi sempre tema de sua poesia. Excesso de bebida
levou o poeta. Não sabia, como sabia o Barão de Itararé, famoso
heterônimo de Apparício Torelly, que "o fígado faz muito mal à
bebida." (11). Tudo isso, contudo, não tem a menor importância literária,
exceto que uma simples inversão de palavras pode gerar uma
revolucionária visão de mundo, como percebemos no epigrama do Barão de
Itararé, mestre nesta arte.
De importância literária tem a segunda manifestação Dionisíaca no poeta:
o drama. São vastas suas reflexões sobre o assunto, mas as deixaremos
para mais tarde.
Retornemos à carta psiquiátrica. Nela, Fernando Pessoa se
auto-diagnostica de histero-neurastênico. Ao longo de sua obra, Pessoa
aponta dois outros companheiros de sina, figuras ilustres no mundo das
letras: Shakespeare e Hamlet. Sobre este último a Psicologia
Arquetípica, na pessoa de Patricia Berry, traçou algumas considerações.
Em seu artigo "Hamlet's Poisoned Ear" ela faz um pequeno apanhado das
inúmeras interpretações sobre o personagem: sensível, humano,
intelectual, introspectivo, cruel, ético, culpado, melancólico e com
dificuldades para agir. Contudo, diferentemente dos sentinelas, que ao
verem o fantasma do rei, quiseram agredí-lo ou explorá-lo, Hamlet
aceitou acompanhá-lo, mesmo desencorajado pelos bravos soldados. Hamlet
seguiu a aparição para um "more removed ground" para ouvir o que ela
tinha a dizer e não para que a aparição satisfizesse seus desejos, qual
escravizado gênio da lâmpada.
Hamlet aquiesce a uma outra espécie de conhecimento. Ele move-se para um
solo afastado. Exatamente este deslocar-se-para-o-lado fornece uma
imagem de remoção psicológica que, então, permite o fantasma falar. Este
deslocamento sintoniza o ouvido à nuânce, metáfora, duplos significados
ironia, etc., ao mesmo tempo que destrói a fala ingênua, lugar-comum e
banal (12).
Hamlet ouviu a aparição. Hamlet era um histero-neurastênico. Invertendo
os termos da equação obtemos o seguinte resultado: ser
histero-neurastênico é ser capaz de seguir a aparição. Ser capaz de
seguir as aparições. Nada melhor descreve a atitude do nosso poeta. Não
é de se estranhar que Fernando Pessoa, com sua sensibilidade de poeta e
com sua argúcia de crítico, já houvesse percebido e reconhecido, neste
deslocar-se-para-o-lado, a essência da poesia.
A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção,
mas no momento da recordação dela. Um poema é um produto intelectual, e
uma emoção, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque não é, de
si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existência
intelectual de uma emoção é a sua existência na inteligência — isto é,
na recordação, única parte da inteligência, propriamente tal, que pode
conservar uma emoção (13).
Como a Psique do conto, que em busca da lã de ouro foi aconselhada a
esperar, Fernando Pessoa descobriu ser necessário criar um
distanciamento, um intervalo de tempo para que a emoção se transforme em
imagem psíquica e a imagem psíquica em idéia expressa com palavras. Esta
seqüência é que define a poesia: arte que se faz com idéias convertidas
em palavras acompanhadas pelo ritmo (14). Este processo James Hillman
denomina psicologizar, ou seja, a busca de idéias que alimentem a alma.
Neste sentido, uma alma sábia, profunda, carregada de sabedoria, não é
aquela que teve muitas vivências, mas a que tirou idéias profundas das
vivências que teve. Não idéias quaisquer, mas idéias e reflexões sobre
aspectos básicos da existência. Fernando Pessoa, consciente disso,
escrevendo a seu companheiro de Letras Armando Cortes-Rodrigues, revela
ser incapaz de fazer arte meramente pela arte. A "terrível importância
da Vida" (15) exige um engajamento maior. Acrescentamos que este
engajamento não precisa ser literalizado em ações externas, mais
refletido em idéias fecundas, que aí sim, podem ser externalizadas. Nas
palavras de Alberto Caeiro:
Mesmo que meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir. (16)
Dessa forma, quando Fernando Pessoa descreve-se como um
histero-neurastênico a idéia que procura transmitir é que nele existe
(somente nele? ou em nós, também? quem sabe, no ser?), antes mesmo da
cisão heteronímica, uma divisão mais básica. Dualidade primeira,
poderíamos chamá-la; acompanhada de uma multiplicidade segunda. Esta
divisão manifesta-se externamente através da neurastenia; internamente
pela histeria.
Internamente (com ele mesmo, não com os outros, como salientou) é
instável e oscilante emocionalmente, mudando de opinião dez vezes ao
dia. Externamente é controlado, com o estado de humor quase sem
alteração, ou seja, calmo e alegre.
Esta situação não o incomoda. O incômodo vem da abulia. Quer fazer três
ou quatro coisas ao mesmo tempo, embora não consiga realizar nenhuma.
A ação pesa sobre mim como uma danação; agir, para mim, é
violentar-me.(17)
A busca, então, do magnetismo, também conhecido como magnetismo animal,
é uma tentativa de obter esta energia para a ação, para a animação, que
Fernando Pessoa julga tanto lhe faltar. Esta distância entre animal e
homem o levou a escrever:
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.(18)
O poema concorda com algo que Carl Gustav Jung certa vez escreveu, ou
seja, que o animal é mais pio que o homem, pois realiza mais plenamente
os desígnos divinos. O homem, por sua vez, tem a capacidade de trair
leis divinas. Conseqüentemente, se o animal é feliz na sua existência
inconsciente, o homem, angustiado e torturado pela consciência da
existência e de sua precariedade, sofre, mas é com este sofrimento que
cria poesia. A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não
basta.(19)
Este sentimento de não bastar é que distingue os homens dos animais,
pelo menos quando somos conscientes de sua existência. Caso contrário, o
homem será, utilizando a definição criada por Pessoa, mero cadáver
adiado que procria.
Os animais, contudo, mesmo não escrevendo poemas, ou, falando de modo
diferente, suas próprias formas e maneiras de apresentação sendo poemas,
merecem, por isso mesmo, ser respeitados. O comportamento pré-definido
do animal é, para James Hillman, a presença da lei divina revelada a que
o animal obedece. Por não possuir divisões internas, até onde temos
consciência, seu ser nos surge como uno, inteiro, pleno. A
multiplicidade aparece em seu reino através da variedade. Para Hillman
isto se torna mais explícito quando penetramos no mundo dos insetos. Em
seu artigo "Going Bugs", que podemos traduzir taoisticamente como "O
Caminho dos Percevejos", ele comenta rapidamente a fenomenologia deste
encontro entre homem e inseto.
A palavra inglesa bug, insetos como percevejos e besouros, possui outras
denotações bastante significativas para nosso estudo: idéia fixa,
entusiasmo, defeito mecânico ou eletrônico, loucura, escuta clandestina.
Transformando bug em prefixo, podemos ainda traçar estes outros
significados descendo a coluna do dicionário (20): bugaboo: s. fantasma,
bicho papão, temor imaginário; bug eyed: a. que tem olhos saltados;
bugger: s. sodomita, (vulg.) malandro, patife; buggery: s. sodomia,
bestialidade; buggy: a. infestado de bichos, (Ing) charrete; bughouse:
s. (gir.) manicômio, a. (gir.) louco, doido; bug hunter: s. (coloq.)
entomologista.
Este complexo de significações aponta o inseto como animal persistente,
monstruoso, malandro, fora de nosso controle, que pode atrapalhar nossos
trabalhos e destruí-los, que se intromete em nossas conversas e nos
atemoriza paranoicamente com sua imperceptível ameaça de invasão,
traiçoeiramente penetrando pelos buracos, pelos nossos buracos, às
nossas costas, parasitando-nos sem que claramente possamos perceber,
infestando-nos, bestializando, enlouquecendo. Inseto: teu nome também é
legião.
James Hillman comenta a violência de nossas atitudes em relação aos
insetos e aos seus companheiros rastejantes: vassouradas contínuas em
baratas; latas de inseticida gastas, muitas vezes, com um único inseto
mais teimoso; o pavor materialista diante de um foco de cupim; a fuga
desesperada diante de pequenos seres alados que irrompem ameaçadoramente
pela janela aberta, mas que, na verdade, não oferecem quaisquer riscos à
nossa integridade.
Toda esta agressão tem origem em quatro fantasias ameaçadoras que
colocamos sobre os insetos: parasitismo, autonomia, monstruosidade e
multiplicidade. Estas quatro fantasias desafiam e colocam em risco a
visão de mundo unificada, repetida, controladora do eu da civilização
ocidental, em especial na sua versão burguesa-moderna. Vida urbana e
insetos são quase inimigos mortais. A aranha que penetra em nossa casa é
implacavelmente caçada e eliminada; os apetrechos para-militares contra
baratas buscam eliminá-las de uma vez para sempre. Combatemos os
insetos, mas, no fundo, tememos suas metáforas, expressas nas quatro
fantasias acima descritas, em especial a multiplicidade.
Imaginar os insetos numericamente ameaça a fantasia individualizada de
um único e unitário ser humano. Caso os insetos predominem, nos tornamos
meros bocados de matéria rastejante, saltadora e alvoroçada.. Seu
próprio número indica insignificância e ausência de valor como
indivíduos. Assim, usualmente, sonhos com insetos são interpretados como
sinais de fragmentação e rebaixamento da consciência individualizada a
um nível indiferenciado, meramente numérico ou estatístico. Desse modo,
a invasão de insetos num sonho indica dissociação psicótica e a perda de
controle centralizado. Erradicação, então, é "anti-psicótica". Embora, a
fonte da psicose pode não encontrar-se na multiplicidade de bugs, mas na
unidade defensiva do erradicador (21).
Baseando-nos na contabilidade de Teresa Rita Lopes, entomóloga do poeta,
somos informados que ela encontrou em sua arca, logo abaixo do assoalho
do eu, setenta e dois bugs. Muitos estavam ali só de passagem, deixando
apenas pequenos rastros. Outros, porém, tinham ninho e tudo. Ela
listou-os pacientementente por ordem de "entrada em cena" (22).
Não é à toa que o médium destas figuras teme enlouquecer. Descer ao
porão sem equipamentos de dedetização, botas de borracha e máscara de
tela é verdadeiramente amedrontador. Nosso poeta desceu nu.
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
......................................................
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
......................................................
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte,
Não 'stás morto, entre ciprestes.
......................................................
Neófito, não há morte. (23)
Se confiarmos na opinião de Hillman que o problema não está na
quantidade de bugs, mas na atitude do erradicador, poderemos compreender
porque Fernando Pessoa não foi tomado pela loucura, embora a temesse: aceitou e acolheu a multiplicidade de aparições dando-lhes espaço e
direito de expressão, fazendo delas — este é o ponto capital de todo o
processo — não figuras de verdade, mas figuras de ficção. Seu temor à
loucura não fez "içar à meio pau a bandeira da imaginação" (24) como
manifestou André Breton em seu surrealismo.
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