MARIA ESTELA GUEDES
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Esoterismo das “33 Folhas”
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1. Isabel, um pouco de História |
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Ernesto de Sousa foi uma dessas figuras fortemente carismáticas na cultura portuguesa, que atravessaram a barreira da ditadura, para o seu pensamento se abrir, sem censura, com a democracia instaurada em Portugal a 25 de Abril de 1974. O livro “33 Folhas”, cuja última data expressa é 1972, espelha algo do que foi o período salazarista, talvez não para o leitor estrangeiro, sim para quem teve a fortuna de conviver com o autor. Ernesto de Sousa foi várias vezes preso pela PIDE, a polícia secreta de Salazar, como tantos outros intelectuais, sob acusação de actividades subversivas. Para obviar a lapsos de memória, próprios de quem, neste momento, escreve sem fontes debaixo dos olhos (1), transcrevo a nota biográfica de José António Salvador, publicada no Diário Popular na altura da morte de ES, e hoje em linha em vários locais:
José António Salvador refere a exposição de arte negra e Rosa Ramalho, ou Ramalha, uma célebre ceramista popular, em paralelo com o conhecimento íntimo do surrealismo e outras actividades na vanguarda. De facto, Ernesto de Sousa cruzava duas grandes linhas de força, ao contrário, aliás, do que pretendeu o surrealismo de primeira fase, que visava cortar amarras com a arte do passado: aliava a arte vinda da tradição com a modernidade. Esse cruzamento deixou título numa instalação na galeria Quadrum, em Lisboa, “A Tradição como Aventura”. Para protagonizar a Tradição, ES escolheu Mitra, divindade solar iraniana que Cristo espelha em vários aspectos, entre eles, o nascimento, a 25 de Dezembro, no solstício de Inverno, de acordo com outro cineasta português, António de Macedo (3). A vanguarda, ou aventura, vê-se nos procedimentos: uma parede recoberta com cópias, em grandes dimensões, da sua fotografia da pequena escultura de Mitra, tão mínima que ES mostrava o polegar para lhe indicar a altura. No TriploV estão em linha textos e imagens dessa instalação (4). Na época de redacção dos textos, as mais importantes mulheres na vida de Ernesto de Sousa, esposas, por acaso objectivo, decerto, chamavam-se, e chamam-se, Isabel. Para além de mescla de prosa, verso, imagens, etc., o livro apresenta uma linha dramática, expressa no discurso directo, mais óbvia na “Carta a Isabel”. O processo traz então à superfície uma personagem feminina, mas a pessoa a que se refere não é sempre a mesma. Não só o nome se refere a várias Isabéis, como é à Mulher, ou a todas as mulheres, que ES dedica este livro (Folha 6, na edição do TriploV). Espero não violar a privacidade de nenhuma de nós, mulheres, se disser que uma das de “33 Folhas”, minha querida amiga Isabel Alves, é a viúva de Ernesto de Sousa, mulher ligada de várias maneiras à arte contemporânea; e que outra, grande figura da frente guerrilheira que na sombra combateu a ditadura, Isabel do Carmo, estava na prisão à data em que alguns dos poemas do livro foram redigidos. Aliás, a acção de Isabel do Carmo prolongou-se para além da instauração da democracia, o que lhe grangeou longa peregrinação pela cadeia e pelos tribunais:
Foi com Carlos Antunes que Isabel do Carmo fundou as Brigadas Revolucionárias. O livro “33 Folhas” cobre um período de mais de 12 anos, recuando aos anos 60. A presença de Isabel nele, bem como alguns temas, como o apelo à liberdade e à revolução, e referências políticas indiscutíveis, de aprovação de lutas pela independência colonial, como dedicatórias a heróis tombados nesse combate - Patrice Lumumba, do ex-Congo-Belga, assassinado em 1961; Amílcar Cabral, dirigente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, assassinado em Conakri a 20 de Janeiro de 1973; e Che Guevara, assassinado em 1967, no povoado boliviano de Higueras, aos 39 anos de idade, por boinas verdes bolivianos, exército treinado e armado pelos norte-americanos – estas pessoas e temas, repito, precisam de ser postas na mesa deste ensaio, sob pena de ligeireza da minha parte, ao pegar no livro por um lado que não é certamente o mais importante: os elementos relativos a um hermetismo de sempre, mas que assume relevo especial com as obras dos surrealistas, e em Ernesto de Sousa desempenha um papel desconcertante. |
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