MARIA ESTELA GUEDES
Ler ao Luar

Esoterismo das “33 Folhas”
de Ernesto de Sousa


INDEX

1. Isabel, um pouco de História
2. 33 Folhas ou 33 Graus?
3. Mistérios do girassol
4. Notas

2. 33 Folhas ou 33 Graus?

Ernesto de Sousa, que eu saiba, nunca esteve ligado a sociedades iniciáticas, nem ao movimento liderado em Portugal por Mário Cesariny. Foi uma surpresa descobrir na sua obra símbolos que, em princípio, poucos reconhecem, além dos iniciados, como aconteceu há anos, quando abri o TriploV, e lhe dediquei um pequeno ensaio, centrado na principal peça dos paramentos maçónicos, o avental, usado por ele como obra fundamental de uma instalação, na Galeria Diferença (6). Em “33 Folhas” deparamos com outros elementos característicos dos maçons ou arquitectos, entre eles, um texto sobre arquitecturas ideais (Folha 8) (7), no qual figura um enigma, o de “Chão Ave”, cuja chave é “Chave”. E mais se adianta nesse texto: que a Casa tem de ser feita de pedra.

Nesses anos, e porventura ainda hoje, a simbólica era fustigada pela esquerda, com a alegação de pertencer à ideologia de direita, sendo portanto reaccionária. De resto, num país, a antiga URSS, líder da opinião mundial para os comunistas, decretou-se que estavam extintas as religiões. A partir daqui, quem lida com a panóplia do sagrado fica à mercê de falsos rótulos, por muito que vote à esquerda e defenda princípios democráticos. É interessante então ver como Ernesto de Sousa, politicamente ligado a acções revolucionárias, sobre as quais recaía a acusação de terrorismo, ainda nos anos mais impiedosos teve a coragem de se manifestar como um sacerdote, rodeado no templo da arte por novas gerações de crentes.

Porque a ofensa sobre o sagrado existia – e existe -, o Mestre vê-se na necessidade de exercer um magistério que esclareça o mecanismo do símbolo, e fá-lo – bem à maneira surrealista – no interior de um livro, inclassificável como género, mas que eu diria livro de poesia em termos amplos, “33 Folhas”. Não somente o livro contém elementos simbólicos, e labora no âmbito do sagrado, como reflecte e passa a outrem ensinamentos sobre essa matéria, num procedimento meta-simbólico, correspondente a uma dupla iniciação. Na Folha 4, Leitura de Heraclito, o neófito é Isabel:

“Violência. A prova iniciática (de tipo heróico) só pode consumar-se pela violência. O jovem come os frutos da árvore da vida. E até os foliões enterram o carnaval. Tese, antítese, síntese. A violência (...) de todo o erotismo. (...) Negação da negação.

A des-simbolização, como a des-sacralização (da Natureza, em particular) é uma característica do homem moderno. Mas estamos tão perto dos símbolos que ainda quase tudo a que chamamos emoção estética não é outra coisa senão metamorfose dos valores sagrados. A nossa própria linguagem é conotativa, e não denotativa (nocional). Quer dizer que não falamos de coisas, funções, relações, actualizando apenas os respectivos caracteres objectivos, desiderativos, estéticos, contemplativos, morais, e... em última análise, disfarçadamente sagrados, simbólico-sagrados. Sob os signos escondemos os símbolos.

Assim, é necessário estar atento às hierofanias cósmicas (do gr. hieros, sagrado, e faneros, visível).

O Girassol é a metamorfose da lua em sol, da vida mutável e feminina em vida autónoma e soberanamente inteligente; é lua pela forma e sol pela cor. É o fim das distinções. A fusão de DOIS em UM. Pode também (porque, des-sacralizados estes meus símbolos, são emblemas, mnemónicas do todo) ser um símbolo do amor-profano-não-diminuído.

Iniciação é conhecimento e assunção de uma nova personalidade. O iniciado é aquele que sabe, que conhece os mistérios (do seu corpo, do seu espírito, do seu-mundo). A morte do neófito, do anjo, do adolescente, é a geração do adulto, daquele que sabe. As torturas, as mutilações, estão em relação com as divindades lunares. A lua morre, para a ressurreição três dias depois. Como Cristo, como o Homem. Com a iniciação, tudo recomeça de novo”.

ES integra-se numa estirpe de intelectuais que, não pertencendo a grupos surrealistas, conhecem o movimento, admiram-no, e perfilham alguns dos seus princípios – a defesa intransigente da liberdade; a arte como forma de vida em oposição declarada a regimes anti-democráticos, e simultaneamente meio para alcançar a revolução; o princípio de que toda a arte é sagrada; o amor único; o erotismo; o recurso às potências do inconsciente; o aproveitamento das linhas de força religiosas, nelas incluído o esoterismo.

Além disso, muitos procedimentos do Surrealismo foram adoptados pela comunidade de escritores e artistas. De forma geral, são actuações anti-arte convencional, e hibridadoras, como a colagem. A obra de Ernesto de Sousa está cheia de actos e referências surrealistas, seja referências a autores, seja citações, com ou sem menção de autoridade. Uma das mais notáveis, a que já me referi várias vezes, é o nome do site TriploV=VVV (8; 9). VVV é o título de uma importante revista fundada por André Breton em Nova Iorque. Outra, não menos surpreendente, foi a sua opção pela Gioconda do dadaísta Marcel Duchamp para o logotipo da mais importante manifestação de arte de vanguarda em Portugal, a Alternativa Zero, que organizou.

“33 Folhas” é um livro inédito em papel, em linha no TriploV, num conjunto de 11 páginas .html, de Folha 1 a Folha 11, no directório de Ernesto de Sousa (10). Neste momento, escrevo sem refrescar a memória em escritos meus que porventura esclarecessem alguns mistérios, tais como a autoria do título, porque isso é irrelevante no contexto de uma obra híbrida, que convoca vozes de autores distintos, dispersos no mundo e na História. Desde a “Invenção do dia claro”, de Almada Negreiros, até Aragon, que parafraseia Marx (“O destino do homem é o homem”), escrevendo que “O destino do homem é a mulher”, o livro é um intertexto e uma polifonia complexos, em que as “33 Folhas” se acomodam bem, chamando a atenção para o esoterismo, precisamente. No caso, tal como no do avental, para uma simbologia ostensivamente maçónica.

Julgo que o título é meu, julgo que lho atribuí por o maço de 33 folhas A4 que Ernesto de Sousa me deu não ter rosto, com alguma frase em corpo grande que pudesse sem dúvida tomar-se por tal, embora tivesse algures a declaração manuscrita de que eram 33 folhas. O maço também não traz imagens, sabendo eu no entanto que esse livro, quando fosse publicado, teria imagens e um esquema gráfico original. Uma delas seria a fotografia da maçã.

Mas o que há de mistério num título como “33 Folhas”, pertença ele ao autor ou a outra pessoa? Esse mistério faz parte de um complexo maior, que inclui outras participações do número 3. Na Folha 2, a rematar o conjunto de textos “O teu corpo é o meu corpo”, vem a seguinte charada/assinatura:

“máquina 3
um nome desconhecido
3172 1/3 L
este número é o inventário e tu
procura…
E.S.”

Não se trata de um testamento, em que se inventariam bens materiais, trata-se de… e pode ser um testamento, porque não? Trata-se de um testamento cujos bens são constituídos por “3172 1/3 L”, e necessário será que o beneficiário procure este tesouro.

A título de curiosidade, usei a máquina de calcular para saber qual seria o terço do inventário. Obtive o resultado seguinte:

1057,3333333333333333333333333333

Na Folha 6, a que dei o título geral “X ou a incógnita”, por o X, símbolo do fogo sagrado, estar presente no texto, vemos uma recapitulação deste mistério:

“re capitulo

faltava acrescentar

a palavra é

333333333333333333333; 313; 3”

Escusado dizer que não disponho de solução para o mistério, de resto o que tem solução são os enigmas e charadas. Os mistérios dizem respeito a rituais. Como já deixei expresso, "33 Folhas" é uma dupla obra de iniciação, aliás tripla: iniciação do sujeito que fala, iniciação de Isabel, e iniciação na Poesia. Não resisto no entanto a olhar de cima para o poema, como objectiva de uma “máquina 3”, ou Leica, sabendo que faço arte com isso, e com essa arte amo o corpo de Isabel.

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