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Maria Estela Guedes

MEMÓRIA DO JARDIM QUE HÁ-DE VIR
Carta a Ana Haddad

Comunicação apresentada ao Encontro Interdisciplinar “Projectos Transatlânticos entre Portugal e América-Latina”, 2 e 3 de Maio de 2007, Biblioteca Pública de Évora.

INDEX

Resumo
1. Esquecimento ou preconceito?
2. Saudade é memória do futuro
Notas

2. Saudade é memória do futuro
“O signo fundamental de Portugal,
dos dois sob que ele nasceu, é o da Saudade”
Agostinho da Silva.

Não foram só as ideias revolucionárias que cruzaram o Atlântico, despoletando na América as independências. Com homens e ideias passa tudo, incluídas as espécies invasoras. Isto é um aparte, Ana: os meus temas habituais nestes encontros decorrem da análise de textos de História Natural, mas agora, que me aposentei e vivo longe das grandes bibliotecas, tive de mudar o rumo à conversa por falta de bibliografia. Porém há sempre um espacinho para relembrar obras passadas na antevisão de negros futuros, como no momento se verifica, ao trazer à colação um documentário que vi ontem na televisão sobre a movimentação das espécies. Com os navios e os aviões, tudo se desloca de um lugar para o outro, e as espécies introduzidas destroem as nativas. Na Baía de São Francisco, 99% das espécies marinhas são invasoras.

Enfim, tudo transita no Atlântico e noutros mares, como os livros. Fernando Pessoa foi exportado para o Brasil, e agora do Brasil regressa, reciclado, como novo. Refiro-me a uma colectânea de poemas esotéricos organizada e prefaciada por João Alves das Neves (7), na qual se patenteiam assuntos implícitos no título da minha comunicação: a utopia figurada no jardim, e a temática do V Império, ou Império do Espírito Santo, a realizar-se em Portugal, esse Portugal que de tão longe vem sendo cantado como jardim à beira-mar.

A pátria anterior será a pátria futura, aquela com que sonham os saudosistas, inspirados pela ideia gnóstica da queda inicial e sequente expulsão do Paraíso. A saudade mais não é então do que energia onírica dirigida para um tempo em que os homens hão-de reencontrar a felicidade de viver com Deus. Na mística portuguesa, o mediador do reencontro, rei que mostra o caminho da salvação, é o Encoberto.

A memória não é só farrapos de acontecimentos, é também patchwork, costura harmoniosa de fragmentos, e portanto reconstituição, por integração do que estava escondido. Memória é falsas declarações, falsas biografias, documentos falsos. Memória é invenção, com esse rasto brilhante na cultura portuguesa, que vem desde a “História do Futuro”, de António Vieira, até aos poetas contemporâneos, defensores da utopia do V Império, como Francisco Palma Dias, Eduardo Aroso, Maria Azenha, tantos outros, eu incluída, pelo menos em um dos meus livros (8), na senda mais directa de Fernando Pessoa, como documenta a selecta ocultista editada em São Paulo.

Qualquer utopia inclui jardins ou se exprime na imagem de um locus amoenus, o Paraíso dos sentidos e das alegrias da alma. Nas Poesias ocultistas, temos decerto o jardim, mas mais importante do que o jardim aparece o oásis, a contrastar na sua doçura com a aridez do deserto, e mais importante ainda, na sua áurea metonímia, surge-nos a mais emblemática das flores, a rosa, cujo pé desenha uma cruz. Noutro poeta, como Herberto Helder, por exemplo, essa rosa seria a paixão. Em Fernando Pessoa é explicitamente o emblema dos Rosa-Cruz.

Encerro, querida Ana, com um abraço amigo e com um poema ocultista de Fernando Pessoa, no qual se entrevê o Desejado, protagonista da Pátria anterior que há-de voltar, à força de o sonharmos:

O DESEJADO

Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!

Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucharistia Nova.

Mestre da Paz, ergue teu gladio ungido,
Excalibur do Fim, em geito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral!

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; O Lagarto do Âmbar; a_maar_gato; Lápis de Carvão; Ofício das Trevas; A Boba; Tríptico a Solo