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Maria Estela Guedes

MEMÓRIA DO JARDIM QUE HÁ-DE VIR
Carta a Ana Haddad

Comunicação apresentada ao Encontro Interdisciplinar “Projectos Transatlânticos entre Portugal e América-Latina”, 2 e 3 de Maio de 2007, Biblioteca Pública de Évora.

INDEX

Resumo
1. Esquecimento ou preconceito?
2. Saudade é memória do futuro
Notas

1. Esquecimento ou preconceito?

Querida Ana, tu trabalhas o tema do tempo e correlata memória, na poesia contemporânea. A esse propósito, o do tempo nos poetas gregos, te ouvi falar no CICTSUL, da última vez em que vieste a Portugal. Daí que me aproxime de ti com esse fio de Aracne. Devia ser Ariadne, mas não se trata agora de entrar no Labirinto do Minotauro, sim de tecer com diversos fios uma teia concêntrica.

Antes de pegar na memória do porvir, tão típica da história mítica portuguesa, desde pelo menos a “História do Futuro”, passando pelos saudosistas, para alcançar o nosso tempo, quer em poetas, quer em filósofos como Agostinho da Silva (1), vou parar um pouco noutro tempo de lembrar: o século XVIII, com um poeta luso-brasileiro que sonhava alto com a independência de Minas, Tomás António Gonzaga. E porquê? Porque - lá está o tempo a pregar-nos partidas - me esqueci de o reler há uns anos, quando publiquei um ensaio sobre Álvares Maciel, o doutrinador político e iniciador maçónico do Tiradentes (2). Ou porque não sabia que uma das personagens centrais do drama inconfidente, o visconde de Barbacena, figurava na “Marília de Dirceu”. Ou então porque, sabendo-o, nessa altura não me teria ocorrido apoiar argumentos cientistas na informação expressa em poemas.

Depois disso, já por diversas vezes recorri à Literatura para fundamentar pontos de vista sobre a ciência. Recorri até ao mais notório dos nossos filósofos do esoterismo, Sampaio Bruno, prefaciador de obras de cientistas que também foram poetas, haja em vista Luso da Silva, que estudou os moluscos terrestres de Portugal. Vejamos então um extracto da “Marília de Dirceu”, a Lira XXIII (segunda parte), com informações que teriam sido preciosas para o meu ensaio sobre Álvares Maciel, naturalista implicado na Inconfidência Mineira:

Não praguejes, Marília, não praguejes;
a justiceira mão, que lança os ferros,
não traz debalde a vingadora espada;
.....Deve punir os erros.

Virtudes de Juiz, virtudes de homem
as mãos se deram, e em seu peito moram.
Manda prender ao réu, austera a bôca,
…..porém seus olhos choram.

Se à inocência denigre a vil calúnia,
que culpa aquele tem, que aplica a pena?
Não é o julgador, é o processo,
…..e a lei, quem nos condena.

Só no Averno os Juízes não recebem
acusação, nem prova de outro humano;
aqui todos confessam suas culpas,
…..não pode haver engano.

Eu vejo as Fúrias afligindo aos tristes:
uma o fôgo chega, outra as serpes move;
todos maldizem sim a sua estrêla,
…..nenhum acusa a Jove.

Eu também inda adoro ao grande chefe,
bem que a prisão me dá, que eu não mereço.
Qual eu sou, minha bela, não me trata,
…..trata-me qual pareço.

Quem suspira, Marília, quando pune
ao vassalo, que julga delinqüente,
que gosto não terá, podendo dar-lhe
…..as honras de inocente?

Tu vences, Barbacena, aos mesmos Titos
nas sãs virtudes, que no peito abrigas:
não honras tão sómente a quem premeias,
.....honras a quem castigas. (3)

O visconde de Barbacena (Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro) , licenciado pela Faculdade de Filosofia Natural, era governador de Minas Gerais ao tempo do levante capitaneado por Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Foi ele quem “abafou a conjura”, para usar os termos correntes da História. Foi ele ainda responsável pela condenação dos revolucionários.

De notar que todos foram condenados à morte. Porém, à excepção do Tiradentes, os outros viram comutada a pena em exílio. Tomás António Gonzaga, poeta, e José Álvares Maciel, naturalista com a incumbência de produzir armamento para a luta, foram desterrados para Moçambique na sequência do frustrado levante.

Que se passou no meu artigo publicado em 1999, ao qual teria interessado ver Marília na bibliografia?

Achei muito estranhos certos factos, Ana. Factos patentes no auto da devassa a Maciel, por mim estudado com muita atenção. Segundo a leitura histórica normal, o governador-geral opõe-se aos inconfidentes, ele representa os interesses metropolitanos, daí os julgamentos e as condenações. Porém, atendendo aos factos estranhos do auto da devassa, fiquei convencida de que Barbacena era um dos conjurados. Também ele queria a colónia liberta do jugo económico da Coroa.

Barbacena, Gonzaga, Maciel e outros, como José Bonifácio Andrada e Silva, aos quais podemos dar o nome de naturalistas, pois todos cursaram na Faculdade de Filosofia Natural, e todos, em uma ou outra fase da vida, se ocuparam de tarefas próprias de naturalista, foram discípulos do mestre maçon Domingos Vandelli (4). Todos se conheciam de modo mais familiar e profundo do que em geral se declara. Por exemplo, no caso de Barbacena e Tomás Gonzaga, lê-se na Wikipédia que “curiosamente, o Visconde conhecia o poeta – mais tarde implicado na conjura da Inconfidência Mineira –, já que este havia escrito dois sonetos para celebrar o nascimento de seu filho e herdeiro Francisco Furtado de Mendonça, em Lisboa, no ano de 1780” (5).

Se dedicou dois sonetos ao filho, então conhecia bem o pai. E o pai da criança homenageada com os versos, o co-fundador da Academia das Ciências de Lisboa, 1º Conde de Barbacena, governador-geral de Minas Gerais, que teve o privilégio de apertar a mão a Napoleão Bonaparte, conhecia perfeitamente Tomás António Gonzaga, mas não por ter lido os sonetos nem a “Lira XXIII”, na qual o poeta lhe agradece a honra de o ter condenado ao desterro em Moçambique.

Não é aceitável a ideia de um conhecimento indirecto da pessoa, travado apenas através de versos. Mas os versos abrem caminhos numa floresta de sentidos desconhecidos. Igualmente inaceitável como natural é a situação em que o condenado ama e defende o carrasco. Tal situação só é aceitável se admitirmos que entre réu e juiz existe um laço de cumplicidade que é preciso manter secreta, sob pena de consequências ainda mais graves.

Outro facto estranho patente no auto da devassa relativo a Maciel é o de Barbacena ter tido conhecimento da preparação do levante, e nada ter feito para o reprimir ou denunciar.

Em resumo, ao tempo em que escrevi sobre Maciel, argumentei que Barbacena tinha de estar implicado na Inconfidência Mineira, de outro modo não se entendia o seu comportamento. Não se entendia, para terminar, que Álvares Maciel, seu hóspede, por ele tivesse sido apanhado diversas vezes em flagrante delito de leitura de obras subversivas, como eram as leis dos recém-formados Estados Unidos da América (6), sem que desse delito de leitura tivessem surgido consequências. Alguns destes homens, quando estudantes, em Coimbra, utentes do Laboratório de Química, onde se reuniam à noite em assembleias maçónicas, tiveram de prestar contas ao Tribunal do Santo Ofício por lerem Diderot, Rousseau e Voltaire. Maciel lê a Constituição americana e o representante da Coroa não lhe faz nenhum reparo? Como se Barbacena já a tivesse lido, a conhecesse bem, e esperasse que o hóspede acabasse a leitura para poderem discutir a aplicabilidade ao Brasil das revolucionárias leis do novo país, formado por corte do vínculo com uma potência colonial?

E porque havia o governador-geral de Minas de ter sobre o Brasil uma ambição menos independentista e utópica do que os seus colegas de balandrau e Coimbra? Estavam todos juntos no mesmo golpe. Simplesmente, o levante correu mal, ainda não estavam maduros os homens nem as condições, para ser viável a independência. Por isso é bem correcto o termo usado para reparar os males advindos: “abafar”. Barbacena “abafou”, ocultou os factos, ou decerto também ele se teria sentado no banco dos réus. E terá ajudado os amigos como podia, pois só um afinal perdeu a vida às mãos da Justiça.

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; O Lagarto do Âmbar; a_maar_gato; Lápis de Carvão; Ofício das Trevas; A Boba; Tríptico a Solo