“Saber é poder”, eis a mais conhecida máxima de Francis Bacon. Ela estabelece a dimensão política do conhecimento científico, pois é de política que em geral tratam as utopias, e é de política e ciência que trata o autor do Novum Organum, da New Atlantis, e de obras mais miúdas como as Magnalia Naturae, praecipue quoad usus humanos, ou Maravilhas da Natureza, destinadas sobretudo a uso humano.
As Maravilhas da Natureza são um enigma. Trata-se de uma lista redigida de tal maneira que ficamos sem saber o que é: um projecto de investigação? O rol dos resultados obtidos? Um programa eleitoral com promessas capazes de dar a felicidade a um povo? Vejamos, em tradução minha do francês:
Prolongar a vida.
Devolver, em qualquer grau, a juventude.
Retardar o envelhecimento.
Curar as doenças reputadas incuráveis.
Minorar a dor.
Purgas mais fáceis e menos repugnantes.
Aumentar a força e a actividade.
Aumentar a capacidade de suportar a tortura ou a dor.
Transformar o temperamento, a obesidade e a magreza.
Transformar a estatura.
Transformar a fisionomia.
Aumentar e elevar a capacidade cerebral.
Metamorfosear um corpo noutro.
Instrumentos de destruição, como os da guerra e o veneno.
Tornar alegres os espíritos, dar-lhes boa disposição.
Poder da imaginação sobre o corpo, ou sobre outro corpo.
Acelerar o tempo no que respeita às maturações.
Acelerar o tempo no que toca às clarificações.
Acelerar a putrefacção.
Acelerar a decocção.
Acelerar a germinação.
Fabricar compostos ricos para a terra.
Forças da atmosfera e nascimento das tempestades.
Transformação radical, como a que se verifica na solidificação, amolecimento, etc..
Transformar as substâncias ácidas e aquosas em substâncias gordas e oleosas.
Produzir alimentos novos a partir de substâncias que actualmente não são utilizadas.
Fabricar novos fios para as roupas; e novos materiais, a exemplo do papel, do vidro, etc..
Predições naturais.
Ilusões dos sentidos.
Maiores prazeres para os sentidos.
Minerais artificiais e cimentos.
Francis Bacon
Maravilhas da Natureza, destinadas sobretudo a uso humano
Os problemas levantados pelas Magnalia Naturae não se cingem ao literário, pois está bem de ver que, num primeiro nível de interpretação, a dificuldade advém da inexistência de estruturas sintácticas que definam o tempo e o modo de cada enunciado. Ora é crucial saber se, por exemplo, no último, “Minerais artificiais e cimentos”, Francis Bacon se refere a ter ele conseguido obter diamantes artificiais em laboratório, ou se a frase corresponde a um projecto de investigação para o futuro. É que a realidade científica actual dessa indústria exclui a hipótese de se tratar de um produto da sua imaginação.
Tudo se torna claro e simples, mas claro e simples apenas na dimensão literária, se entendermos o texto como cábula para ajudar à redacção da lista das conquistas da ciência postas ao serviço do bem-estar dos habitantes de Bensalem, na Nova Atlântida. Isto é, as Maravilhas da Natureza seriam um memorando, uma lista para ser usada noutros livros do autor, onde os assuntos são descritos com mais pormenor, mas não para publicar como texto independente.
Vejamos o problema, quando, diante das Magnalia Naturae, alguém pergunta, espantado: “O que é isto?!” O texto não é um poema, nem uma fábula. Aliás, nem as utopias podem tão simplistamente ser catalogadas como ficção. Estamos a lidar com textos políticos e científicos, e sobretudo com textos políticos e científicos que nos põem diante dos olhos conhecimentos, objectos e aparelhos cuja existência desconhecemos na época em que foram publicadas as utopias. A minha mais espontânea e sincera reacção face a estes documentos é a de os considerar falsos: alguém, no nosso tempo, publicou esses livros, atribuindo-lhes uma data remota. O raciocínio está errado mas não é artificial. Pelo contrário, é naturalíssimo, vem na sequência do que sabemos do autor, uma figura misteriosa e problematizante, cujos lances biográficos mais polémicos, a serem verdadeiros, confinariam com o crime: como chanceler da rainha Isabel I, Francis Bacon caiu em desgraça, acusado de corrupção; foi-lhe atribuída a verdadeira autoria dos manifestos Rosa-Cruz - Fama Fraternitatis (1614), Confessio Fraternitatis (1615) e Núpcias Alquímicas de Christian Rozenkreuz. Também foi acusado de ter sido ele o verdadeiro autor da obra completa de William Shakespeare. Enfim, outros acusam-no de ser mais alquimista do que homem de ciência, e de não passar de um divulgador, limitando-se a vulgarizar as descobertas científicas e as tecnologias do seu tempo.
Não parece que a situação se tenha esclarecido com o rótulo de divulgador, por isso vejamos mais de perto as electricidades, os submarinos, os microscópios, as genéticas, e as telefonias e telefones popularizados por este homem no século XVII. |