As duas culturas: o cruzamento dos saberes (in)sustentáveis
                                                      José Augusto Mourão (UNL-DCC)

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Do Unicórnio

A antropomorfização dos animais ocorre nestes Tratados mais de uma vez. É o caso do unicórnio, do crocodilo ou das Harpias. O unicórnio é aqui o rinoceronte asiático que apresenta um forte corno na linha média e superior da cabeça. Para falar do Unicórnio, bastava ao nosso Mestre consultar Isidoro ou qualquer outra enciclopédia medieval. Isidoro escreve, no livro XII, II, 13 das suas Etimologías que o unicórnio tem tanta força que não pode ser capturado pelo poder dos caçadores (1). E também ele, Isidoro, recorre aos que descrevem a natureza dos animais que lhe põe diante uma virgem menina que descobre o seu seio à chegada do animal; este coloca ali a sua cabeça abandonando a sua ferocidade e assim adormece, podendo capturar-se como se fora inerme. Daí colheu a ideia de que “o Unicórnio é mui bravo, e cruel animal, pequeno em comparação do Elefante; porém se peleja com ele mata-o e quando o Unicórnio há-de pelejar aguça o corno em uma pedra, e tão astuto é e ligeiro que por nenhuma arte se pode tomar, salvo pondo-se em a montanha, onde habita uma moça virgem nua, a qual como é vista dele, deixando toda sua ferocidade se vem para ela, e põe sua cabeça entre as tetas dela, e ali se adormece, e assim o matam os caçadores, ou o levam ligado com grandes prisões segundo diz Plinio, e Jacobo. De regresso está o topos da "virgem nua", também comum a outras histórias. O Elefante adormece entre as tetas de uma virgem nua. Do mesmo modo o Crocodilo, do Cocodrilo (sic) que por manha, também se pôe a chorar para mais fácìlmente atrair a vítima”. Quando fala das Fontes e das suas virtudes, benéficas para uns e maléficas para outros (Há outras Fontes que saram  os olhos enfermos, e se algum ladrão é ali trazido, molhando os olhos com a água delas perde a vista e se não é culpado torna mui mais clara que antes), Mestre António usa de vários registos de veridicção, este, por exemplo, “se há homens que têm estas coisas por verdadeiras, não as tem ele por certas”. Já não coloca problema em acreditar que “há uma Fonte na Etiópia junto dos Garamontes, tão fria de dia que com dificuldade se pode beber, e de noute tão quente que não pode tocar com a mão. Acreditar que há outra Fonte que qualquer ferida de qualquer membro cura lavando-a com água dela: outras Fontes há em Bócia que trazem à memória as cousas pasadas, outras que as fazem esquecer será mais problemático”. No Tratado (2) de algumas Aves Raras assume aquilo que dizem alguns escritores das Aves Harpias “que se criam em um deserto junto do Mar Jónico as quais têm o rosto humano, e os corpos muito grandes, e sempre estão prestes para mal fazer, e quando podem haver algum homem logo o matam, e o comem, e depois de comido como vão beber alguma água clara, e ver seu rosto ser semelhante ao que matara não tomam tanto pesar que choram sempre enquanto vivem, as quais tem tão agudo engenho que algumas vezes aconteceu criá-las em casa, e aprender perfeitamente a língua humana, e serem tão domésticas como outras aves”. Menciona no / fl. 46. / outras Aves, que se acham junto do Nilo, “que se chamam Aves do Paraíso, não porque se creia que vem do Paraíso, - mas porque jamais se pode achar seu ninho, nem tao pouco seus filhos, as quais são de tantas cores que se não podem dizer são de tal natura que quando são presas gemem de tal maneira, como uma humana pessoa, e nunca cessam de gemer até cobrar liberdade, ou morrer”.

E passamos ao I fl. 46. v. I Tratado de algumas Serpentes Raras. que há no mundo.

“Há uma Serpente naquelas partes chamada Cerastes de maravilhosa grandura, que tem oito cornos na cabeça é mui venenosa e peçonhenta, tem grande astúcia para matar as Aves, que se esconde debaixo da areia, e deixa os cornos de fora, e as Aves, que neles pousam subitamente morrem; os cornos desta serpente são de mui grande valor, porque tem tanta virtude, que onde quer que um pedaço deste corno estiver, não consente alguma peçonha, e por isso naquelas partes costumam fazer deles cabos, e tachas de cutelos, e facas para as mesas dos Grandes Senhores, porque tem por certo que trazem de cousa empeçonhenta da  Mesa, logo aqueles cabos, e tachas suas. Há outra natura de Serpentes, as quais em mordendo adormecem, e assim dormindo sem nenhuma dor morrem aqueles que assim são mordidos: esta Serpente, segundo se escreve tomou Cleópatra, e dela se deixou morder no braço porque morresse morte quieta junto do sepulcro de Marco António seu Marido”.

E depois das serpentes, as pedras: / fl. 48. / Tratado de algumas pedras raras e suas vertudes raras.

“Na Arcádia faz-se uma pedra chamada Albestão a qual se algum lume chega nunca se apaga, e segundo dizem alguns autores da qual afirmam que se com ela se confecciona uma candeia, com nenhum vento, nem tempestade se apaga e dizem ser mui raras e de muita estima e o devem ser se assim é. O coral tem virtude contra os trovões, relâmpagos (sic), e raios, e contra pedra; e contra toda tempestade”. Isidoro, tratando do coral diz que "os magos afirman que o coral se opone aos rayos si hes que hay que creerles" (XVI, VIII, 1). A Cornerina tem virtude de estancar o sangue de ferida, e de narizes, e o que se chama “sangue chuivo de mulheres, e é de muito maior virtude, e valor se é esculpida, porque as esculpidas foram, a que os filhos de Israel por inspiração Divina no Deserto esculpiram; assim o achei. O Jaspe tem virtude contra a Hidropesia se for moído, e bebido com água água de Fumelho ou Aipo, e aproveita muito as mulheres prenhas trazendo-o consigo que as faz seguras de não mover; donde quer que a Jaspe fogem os Demónios; dos Jaspes são diversas naturas os melhores são os mais luzentes de cor verde, que tenhas peças vermelhas muita virtude para uma pedra mas assim o dizem auctores” (3) / fl. 49. v. / O Jacinto é contra a peste, e contra toda peçonha é de cor de cera da graça a quem o traz consigo, acha-se em terras de Etiópia também é pedra preciosa para sortigas e outras pesas (4).

E chegamos ao Tratado de algumas ervas e suas virtudes.

“A Arruda tem muitas virtudes segundo dizem a qual moída com Raiz de Peónia, e Castor, cozido todo em vinho provoca o sangue monstruoso da mulher, e faz lançar a Criatura; se acontece estar morta no ventre; isto mesmo obra o sumo da Arruda tomado pela boca, e qualquer inchaço quer de golpe, quer d'outra qualquer maneira em que se puser a Arruda pisada, e incorporada em manteiga de vaca tira a dor, e desfaz o inchaço, e bebida aproveita contra toda peçonha; queimada, e moída, e envolta / fl. 50. v. / em açúcar tira a vermelhidão dos olhos; clarifica a vista; é contra todalas venenosas serpentes, e tanto que se um homem for coberto de Arruda verde sem temor pode chegar a matar o Basilisco, o cheiro da qual o mata (5). A salva cozida em vinho é contra toda opilação e contra a perlesya (sic), segundo dizem autores de verdade”.

O último folio / fl. 51. I Tratado 4° trata daquilo que não era desconhecido de ninguém: a boa notícia das índias e do Preste João. É sabido que o interesse dos papas pela geografia data de antes de 1437. Numa Broc mostra que já em 1409 se faz a primeira traduçao de Ptolomeo em latim, dedicada ao papa Alexandre V. No ano a seguir, Pierre D'Ailly na sua Imago Mundi evoca o problema do acesso às índias pelo oeste. Sigamos o relato do nosso autor: “Pogio, Secretario do Papa Eugénio Quarto em a era de mil quatrocentos trinta e sete escreveu um Livro por seu mandado das cousas que nas índias viu, Nicolao Veneto, o qual esteve grande tempo nelas e nas postumeìras partes delas; porque grandes necesidades (6) passou e para o fazer sem perigo de morte houve de renegar da Nossa Santa Fé, e vindo demandar penitência ao Santo Padre, e absolver-se de tão grande pecado em penitência o Santo Padre lhe mandou que em virtude de juramento dissesse a verdade de todalas cousas que nas Índias havia visto no qual Livro se acham as cousas acima escritas, e outras muitas, e o dito Nicolau Veneto afirmou havê-las todas visto e nesse mesmo tempo escreve Pogio que vieram Embaixadores ao Santo Padre Eugénio Quarto de Etiópia aos quais o Santo Padre perguntou se era verdade o que das índias dizia Nicolao Veneto, e disseram que sim e que além do que ele dizia havia naquelas partes outras cousas de que mais se podia maravilhar que das por ele ditas diziam também aqueles Embaixadores que na Etiópia nunca jamais havia peste, nem outras enfermidades gerais, e que viviam os homens mui sãos e chegavam a longa velhice, e a comum idade dos mais eram cento e vinte cento e trinta anos, - e alguns chegavam a cento e cinquenta, e a duzentos anos, e por esta cousa aquela terra era maravilhosamente povoada, e cheia de infinitas gentes, e de mui grandes Cidades, e Vilas, e que havia entre eles um Rei Soberano que se chamava Rei dos Reis, e isto porque tem muitos Reis, que lhe são sujeitos; e que há grande diversidade de animais monstruosos os nomes dos quais escreve Pogio no dito Livro; que há infinito ouro, e prata, e grande abundância de pérolas, e grande diversidade de pedras preciosas, as quais se acham algumas vezes cavando não com muito trabalho e desta guisa; há uma montanha naquela Província mui alta, onde há aí tantas venenosas serpentes que nenhum homem pode ali entrar sem morrer; e para as ver tem esta forma que junto deste monte está outro tão alto, como ele no qual nenhuma cousa venenosa se cria, e daquele artificiosamente lançam postas de carne no outro, e como os Abutres naturalmente tem virtude de (7) cheirar mais que nenhum outro animal ao cheiro da carne vão ali, e por temor das venenosas serpentes tiram as postas da carne, apegadas nelas muitas pedras preciosas, especialmente diamantes, e algumas vezes os engolem, e os Caçadores vão buscar onde os Abutres se cercam, e ali acham as pedras dentro nos buchos; é terra que duas vezes no ano dá fruto, e segundo diz Plínio antre todas as Regiões do mundo é a mais fertil; nela há muitas aromáticas árvores, e cinamomo, pimenta, e canela, e todas as outras odoríferas gomas”.

Não há dúvida que a Etiópia é o grande horizonte de todas as expectativas, como a imagem mítica de Preste João no século XV. E isto bem antes do aparecimento da obra A Etiópia Oriental do dominicano João dos Santos (1607). Toda esta narrativa está, finalmente, ao serviço da narrativa bíblica como o seu referente, como a sua validação. Era preciso que o Rei dos Reis fosse, em última análise, Cristo. Para situar os Reis Magos dividiram-se as índias em três partes. Nota o nosso autor que “são três índias, nas quais com Etiópia reinou El Rei Asocro que foi Senhor de cento e vinte Reinos, na primeira índia foi o Reino de Nubia, no qual ao tempo do nascimento de Nosso Redentor e Salvador Jesus Cristo reinou Melchior o qual ofereceu o ouro; este se chamou Rei de Arábia e de Núbia; Baltazar reinou na segunda India, e intitulou-se Rei de Ogdolia, e Sabá; este lhe ofereceu o incenso: Gaspar reinou na terceira índia, e chamava-se Rei de Társis e da Insula Egrisola, onde hoje em dia está o corpo do Bem aventurado. São Tomé, e este lhe ofereceu a mirra; neste passo escreve Fulgencio em um seu Sermão que a vontade de Nosso Redentor foi que estes tres gloriosos Reis lhe oferecessem a dita oferta a demonstrar que nele era a Divina Magestade a quem pertencia o incenso por sacrificio, e o Real Poderio, e o Poder Real quem se devia a mirra para sepultura, segundo se mostra pela vida, e obras destes Bem aventurados Reis os quais consagrados em Arcebispos por mão do Bem aventurado Apóstolo São Tomé depois do seu martírio juntos com os Reis a eles sujeitos com todos os outros Prelados, e Grande Senhores das Índias, acordarão de eleger um notável Barão em memoria do Apóstolo a quem chamassem o Patriarca Tomé que no espiritual os instruísse, e governasse, a quem como a Padre Santo obedecessem, e um morto - outro perpetuamente elegessem, como neste presente tempo se faz, e porque os Bem aventurados Reis não tinham filhos, nem nunca os houveram, antes, se crê morrerem virgens de consentimento de todos geram outro mui nobre, e virtuoso Barão que no temporal os regesse, e governasse, e fosse Senhor de todos, e não tivesse nome de Rei, nem de Imperador, mas se chamasse Preste João Senhor das índias, como se agora chama, a quem sempre o filho maior sucedesse, como parece pelo Capitulo trinta do Livro da vida, e obras destes Gloriosos Reis Magos; esta Região da índia que grande diversidade Províncias contém é a maior do mundo, e foi assim chamada de um grande rio chamado Indo que por ela corre, segundo diz Isidoro no quinto das Etimologias."

 
(1) Brenda Laurel, designer e te”orica (e teórico?) do hipertetxo, descreveu as “histórias interactivas” como “un ilusive unicorn we can imagine but have yet to capture”.

(2) Ms: "Trado"

(3) Isidoro escreve que "Algunos pretenden que el jaspe beneficia y auxilia a los que lo Ilevan, pero esto no es digno de fe, sino que es superstición" (XVI, VII, 8).

(4) Isidoro: "El jacinto es una planta con flores purpúreas. Tomó su nombre de un noble nino quien fue hallado muerto en un bosque entre flores purpúreas. La muerte de set nino dio nombre a Ia planta. Tiene raiz y flores semejantes ai bulbo; impide que los ninos Ileguen a Ia pubertad” (XVII, IX, 15).

(5) 'Basilisco en griego se dice régulo em latín, porque es el rey de Ias serpientes; los que lo ven huyen, puesto que mata con su olfato; también mata ai hombre con sólo murarlo. Níngún ave puede volar más impunemente delante de I basilisco, sino que, por más lejos que esté, es barsada por su aliento y devorada. Sin ambargo, es vancido por Ias comadrejas, que los hombres colocan en Ias cuevas en Ias cuales se oculta el basilisco; éste, cuando Ias ve, huye, (pero) lo persiguen y le dan muerte" (XII, IV, 6-7).

(6) Ms. "necesidade".

(7) Ms: palavra repetida

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Última Actualização:
18-Sep-2006