O Jardim dos Frades –
Deambulações pelo Aqueduto da Prata

Marjoke Krom e Mariana Valente

marjoke.krom@gmail.com e mjv@uevora.pt

 

 

 

 

 

 

Primeiro tempo: À descoberta

“Le paysage tout entier remonte en chacun des regards, et s’absorbe lentement dans le corps.” (1)

O muro, sempre o muro...
(Ilustração 3)
O muro parecia teimar em nos transportar para a experiência do mirabilis tão ao jeito da Idade Média, que remete, segundo Le Goff, não meramente para algo de intelectual, tal como o nosso maravilhoso, mas para algo de visível, para “coisas perante as quais se arregalam os olhos.” (2). Remete para todo um imaginário ligado ao sentido da vista. (Ilustração 4)
Abordámos esta natureza-paisagem, que se revelava aos nossos olhos, a partir de uma tonalidade afectiva suscitadora de múltiplas ligações com o que percepcionávamos, valorizando uma herança longínqua e quase esquecida da Idade Média na relação com a Natureza, em contraponto com a fragmentação analítica da modernidade. (Ilustração 5)

Os degraus pareciam convidar-nos a percorrer os caminhos dos frades. Nas nossas cabeças entoava o eco das palavras do frade que habita as Horas de Monsaraz:

“Dir-vos-ei somente que a minha história é talvez a vossa história, que comum é entre nós o tempo e a sucessão dos anos; e comuns são os sentimentos dos homens mais as suas ânsias e medos e tudo o que os transtorna e enfurece; mais o que amamos e desconhecemos. De tudo isto somos igualmente feitos e semelhantes, como o seixo de um rio e uma montanha o são.” (3)

Tal qual o primeiro Homem, banido do Éden, tornámo-nos jardineiras imaginárias procurando encontrar neste espaço encantado o nosso paraíso perdido.

Como refere John Gerard no L’Herbier escrito em 1597: “Où donc les humains se promènent-ils pour leur délassement, sinon dans l’endroit où la terre se couvre, pour la joie des regards, de couleurs chatoyantes?” (4)
(Ilustração 6)

Se é verdade que o paraíso só se constrói com barreira, com muro ou sebe de fogo à volta destinado à preservação da sua felicidade, como o afirma Sinclair, podemos bem acreditar tê-lo encontrado aqui neste espaço enclausurado de folhagem luxuriante.

Já a antiga tradição judia situava o paraíso num jardim fechado ou pequeno parque, que ia pelo nome hebreu de ‘gan-eden’, significando ‘doçura’ ou ‘delícia’. (Ilustração 7)

Os jardins ainda anteriores a essa tradição não teriam tido legumes ou ervas aromáticas, nem flores, sendo as suas representações inspiradas nos oásis do deserto e da Pérsia antiga. A palavra paraíso designava então simplesmente um espaço verde e fechado, sendo derivado das palavras pairi (à volta) e daeza (muro). (5)

Ao filosofo Sócrates se atribuí, segundo Sinclair, a introdução da palavra grega paradeisos, quando fala dos jardins do rei Persa, referindo o espaço cultivado para o desfrutar dos prazeres da vida, um espaço “repleto de tudo que há de belo e de bom que a terra se digna oferecer-nos, e no qual o rei passa as suas horas mais agradáveis.”(6)

(Ilustração 8) As descrições bíblicas do Jardim de Éden, com as suas árvores ‘medicinais’ e ‘nutritivas’, serviram de fonte de inspiração para os paraísos cristãos que surgiram dentro da clausura dos conventos da Idade Média: o hortus conclusus , o espaço situado no claustro ou na cerca, sempre protegido por muros, propício à oração e meditação. Com os seus trabalhos de jardinagem, domesticando e ordenando a natureza bruta e selvagem, fazendo com que ela se tornasse útil e produtiva, os monges visaram o restabelecimento do Reino de Deus na terra e a reconstituição do mundo ao estado antes do pecado original.

O muro era a defesa contra o caos reinante no mundo exterior e o jardim símbolo do controlo do homem sobre os seus sentidos e paixões. As árvores e plantas criteriosamente escolhidas referiam as virtudes de Maria e do celeste num simbolismo religioso requintado. (Ilustração 9)

Inicialmente dominado pelos ritmos naturais, o tempo da Idade Média era um tempo religioso e clerical definido pelos sinos das igrejas, que ao longo dos séculos XIII  e XIV veio a ser substituído por um tempo urbano e laico, o tempo dos sinos das torres de atalaia, e mais tarde ainda por um tempo medido em fracções iguais entre si pelos relógios. (7)

Os jardins da alta Idade Média adjacentes aos castelos, palácios ou casas senhoriais, não representavam tanto o reino perdido de Deus mas antes um espaço de recreio destinado à fruição das delicias e prazeres sensoriais, inspirado no locus amoenus da Antiguidade clássica.

Em 1260, o monge dominicano e filósofo Albertus Magnus dá-nos a seguinte descrição (8): um quadrângulo de relvado, à volta plantado de ervas aromáticas e flores diversas, amores perfeito, ancólias, lírios, rosas, e íris; contra a cerca meridional e ocidental árvores de sombra e bem-cheirosas e também uma latada de vinha; no meio uma fonte ou bacia de água; e ainda uma elevação feita em torrões de relva e plantas selvagens onde se possa repousar para desfrutar a beleza do jardim.

O jardim era domínio da mulher, ligado a um imaginário erótico. Assim, a literatura cortês e as iluminuras da época mostram-nos o jardim como cenário de jogos de sedução e amor.

Notas
(1) H. Pena-Ruiz, Le Roman du Monde – Legendes Philosophiques, 95

(2) J. Le Goff, O Imaginário Medieval, 18

(3) S. L. de Carvalho, Horas de Monsaraz, 11.

(4) A. Sinclair, Jardins de gloire, de délices et de Paradis ,12

(5) Ibid, Ibidem, 13

(6) Ibid, Ibidem, 14

(7) J.Le Goff, O Imag inário Medieval, 20

(8) S.Mesquita, Breve História dos Hortos de Aromáticas e Medicinais em Portugal, 8

 

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Última Actualização:
15-Sep-2006