O JARDIM GNÓSTICO DO ÉDEN
Francisco Teixeira

Ponto 3.

O gnosticismo valentino partilha esta leitura monista da criação, i.e., assume que o Divino não é ontologicamente diferente do humano mas que, constitui, antes, um certo nível, ou elaboração, de consciência, de que o humano não é mais que uma gradação ou nível inferior, que vai completamente ao arrepio de uma certa vulgata que insiste em ler o gnosticismo como dualismo. Na verdade, esse dualismo (salvaguardando certos grupos iranianos, como poderá ser o caso do maniqueísmo) é apenas de natureza ética ou social. Já, no entanto, de ponto de vista ontológico, também a matéria é da mesma natureza de Deus, embora num nível de elaboração mínima ou mesmo abortiva, isto é, como se de uma deficiência se tratasse.

Na verdade, o que aqui se vislumbra é que os gnósticos configuram uma visão da verdade (da ontologia do mundo) semelhante à distinção búdica entre “verdade relativa” e “verdade absoluta”. A um nível relativo, vulgar e exotérico, a matéria e o espírito, deus e o homem, são de naturezas diferentes e até irredutíveis (com as quais temos de lidar). Já, no entanto, do ponto de vista de uma compreensão absoluta da realidade, de um ponto de vista esotérico, a matéria e o espírito, Deus e o Homem, não divergem ontologicamente, antes se unem numa única “substância” cosmológica, na qual as determinações substanciais (os acidentes) não são verdadeiramente relevantes. Esta asserção só aparentemente é contraditória. O que aqui se vislumbra é uma compreensão da “matéria” do universo (seja ele material ou espiritual) que se subsume numa absoluta generalidade ou indeterminação originais, que é a “substância” própria de que o pré-Pai, ou o Nada originário, é formado.

Naturalmente, no domínio do Pleroma, que é o domínio onde o divino mais se aproxima da sua densificação máxima (na verdade o pré-Pai subsume o próprio Pleroma), as categorias cosmológicas habituais não se aplicam. Desde logo não se aplicam as categorias físicas e morais terrestres, que configuram os vulgares condicionalismos terrenais e a noção mesma de transcendência (e, portanto, também de imanência). Compreende-se, então, que a elevação dos seres humanos ao Pleroma constitua um momento de libertação e que, pelo contrário, a criação tenha sido encarada como uma queda, no sentido em que o corpo e a mente humanas sempre se configuram dentro dos estreitos limites, na melhor das hipóteses, da verdade relativa, com o seu cortejo de constrangimentos cosmológicos e sociais.

Voltando um pouco atrás, valerá então a pena relembrar que o alegado dualismo antropológico gnóstico não constitui mais que um nível de compreensão meramente propedêutica da essência humana, já que, em rigor, a alma e o corpo não constituem senão dois modos substanciais, e ambos erróneos, de compreender a natureza do Humano e do Divino, que, numa compreensão mais fundamental, se ultrapassa através de uma concepção de consciência e inteligência divinas de natureza mística, sem espaço para as vulgares distinções ontológicas entre sujeito e objecto, imanente e transcendente, temporal e eterno, divino e humano, moral e imoral, entre outras distinções tradicionais.

Mas vejamos então como alguns dos textos de Nag Hammadi tratam o mito do Éden reflectindo alguns destes tópicos.

Detenhamo-nos, no essencial, em três textos, embora não exclusivamente: o “Apócrifo de João”, “A Hipóstase dos Arcontes” e “Sobre a Origem do Mundo” (todos eles de marcada influencia valentina e de composição situada algures entre os séculos II e III e. C.) (4).

Desde logo, o que é marcadamente característico destes textos é a desclassificação que neles se realiza do deus criador, do instanciador das leis físicas e morais, chamado Samael (5) (no caso de “A Hipóstase dos Arcontes”), aquele que assinala a sua ignorância e orgulho pela afirmação de que “Eu sou deus, e nenhum há fora de mim” (BNH, I: 348), num decalque da fórmula bíblica do Génesis. A afirmação de que “nenhum há fora de mim” é particularmente grave e caracterizadora de Samael. Ela afirma a incapacidade de auto-distinção de Samael, a sua cegueira face ao ponto-cego que afecta todo o conhecimento, aquele ponto em que não se sabe que não se sabe. Samael não sabe que até o pré-Pai, para se conhecer a si mesmo, tem que se auto-distinguir em divisões sucessivas. Samael não sabe que não sabe e nisso consiste a sua cegueira. Samael é uma distinção no Pleroma que não sabe que é uma distinção no Pleroma. É uma parte e pensa que constitui o todo. O orgulho de Samael constitui o orgulho cego e louco da visão totalitária, toda-poderosa, que nem a totalidade do pré-Pai e do Pleroma congregam, já que mesmo o pré-Pai, para se conhecer, teve que se dividir.

Samael é chamado o “Deus dos Cegos” (BNH, I: 348), i.e., o deus dos ignorantes. No “Apócrifo de João” Samael tem mais dois nomes: Yaltaboat e Saclas. Yaltaboat/Saclas/Samael nasce da ousadia de Sabedoria, um éon que, sem o acordo do Espírito Invisível nem do seu consorte (sem a compreensão de que a unidade deriva da divisão, ou que a unidade sustenta a dualidade), insistiu e realizou uma obra “imperfeita e diferente da sua forma porque a tinha criado sem o seu consorte. Não se parecia nada com a figura da sua mãe, mas tinha uma outra forma” (BNH, I: 225).

Não vale a pena entrar aqui em pormenores sobre a natureza do Pleroma e dos éons que o constituem. Nem, claro, vale a pena perder muito tempo com a acusação de mitológica à ontologia pleromática. É que essa acusação é particularmente cega à natureza e ao significado existencial do mito, para além da sua semântica particular. O que é necessário entender é como é que no mito, gnóstico como noutros, se revela algum tipo, se se revela, de conhecimento humano fundamental. Ora, essa revelação, ou essa presença, é que devem ser os objectos de estudo e de elucidação.

Assim, o que vale a pena dizer, para já, no que diz respeito ao Pleroma, é relativamente simples e não tem nada de espantoso ou de esdruxulamente complexo ou fantasioso, como o referem, por vezes, os que querem por em causa o valor dos textos gnósticos primitivos.

O Pleroma constitui a totalidade daquilo que são as distinções divinas, i.e., divinamente ordenadas, num nível de elevada e divina integração. Os éons constituem as várias distinções que, dentro do Pleroma, se realizam ou podem realizar, sem porem em causa a sua unidade múltipla. A existência de éons, do próprio Pleroma, releva do facto de até o Divino, para se conhecer, ter que se distinguir a si próprio, estabelecendo um limite mínimo dentro de si, uma cisão interna, através do qual ele é mais (e menos, porque dividido) que aquilo que simplesmente é a si mesmo. Um reflexo de si, por exemplo. Ou uma palavra: Eu.

Os gnósticos tinham intuído aquilo que é, hoje, um princípio epistemo-ontológico fundamental, a saber, que no início conceptual e pensável, cognoscível, está a distinção, a diferença. Ainda assim, o início conceptual e pensável é, afinal, um momento segundo relativamente a um início mais fundamental, que supera toda a distinção, que é, afinal, o locus do pré-Pai.

Ora, o que está presente no Gnosticismo é, exactamente, a ideia segundo a qual Deus dá a si o Pleroma, a rede de diferenças de si, no acto de se referir a si mesmo. A estratégia, ou necessidade criadora, é absolutamente moderna, ou mesmo pós-moderna.

Veja-se, por exemplo, Niklas Luhmann e as aquilo que no seu pensamento é notavelmente coincidente com o Apócrifo de João:

“No início – diz, por exemplo, Niklas Luhmann – portanto, não há nenhuma diferença entre referência e autorreferência ou, numa linguagem mais próxima do social: no início não há nenhuma diferença entre autorreferência e observação – já que o que observa algo deve diferenciar-se do observado, deve ter uma relação consigo mesmo para poder diferenciar-se” (1996: 65).

Já para o Apócrifo de João, no início está o

“absolutamente inexpressável, não pelo facto de possuir incorruptibilidade, perfeição, felicidade e divindade, mas sim porque ultrapassa todos estes atributos. Não é corpóreo nem incorpóreo, nem grande nem pequeno. Acerca dele não se pode expressar nem a quantidade nem a qualidade, porque ninguém pode compreendê-lo. Não é nada do que existe, mas sim absolutamente superior, e mesmo não simplesmente superior, até porque o seu ser não participa nem dos éons, nem do tempo” (BNH, I: 220-221).

Como diz Luhmann, o início é aquele momento em que não há diferença entre autorreferência e observação, em que a conceptualização ainda não veio a si, em que a diferença ainda não está estabelecida e em que só é pensável uma espécie de nada místico, numa notável aproximação à descrição gnóstica do Deus autêntico e completo do, mais uma vez, Apócrifo de João:

“É indefinível, porque ninguém o precede para poder defini-lo. É inescrutável, porque ninguém o precede para poder prescrutá-lo. É incomensurável, porque ninguém o precede para poder medi-lo. É invisível porque nunca ninguém o viu. É um eterno que existe eternamente. É inexpressável porque ninguém o abarca para poder expressá-lo. É inominável, porque ninguém o precede para poder nomeá-lo” (BNH, I: 220).

O absolutamente contraído, sem distinções de si a si, está para lá da própria ideia de distinção, para lá da própria ideia de éon. Não chega a ser o Pai. É o pré-Pai. Mas mesmo o pré-Pai se dividiu e deu início a um processo de divisões sucessivas, que chega aos homens vulgares por símbolos distantes e estranhos. A ideia é relativamente nova … no século II, mesmo que tenha uma raiz genealógica no platonismo. Mas hoje não pode ser surpreendente. Veja-se Nicolau de Cusa: “Por isso, a unidade infinita é a complicação de tudo. Diz-se unidade o que une todas as coisas. E é máxima não só como a unidade é a complicação do número, mas porque é a complicação de todas as coisas.” (2003: 75-76) ou, ainda, “portanto, Deus é o que complica tudo pelo facto de que tudo está nele. E é o que tudo explica pelo facto de que ele está em tudo” (Ibid.: 77) e, ainda, “mas porque foi dito que o universo só é o primeiro contraído, sendo nisto máximo, vê-se como todo o universo vem ao ser através da simples emanação do máximo contraído a partir do máximo absoluto” (Ibid.: 82).

O traçado de uma distinção (draw a distinction, na alusiva máxima de Spencer Brown) está na base da criação, de toda a criação e de todo o discurso. No entanto, humanamente, esta distinção fundamental frequentemente obscurece-se através daquilo que é o seu ponto-cego (a incapacidade de ser ter sistematicamente presente a si mesmo o sistema de distinções pelo quais se vê o mundo), que é tanto uma necessidade como uma limitação epistémico-ontológica. Deus, pelo contrário, é aquele que está para além de todas as distinções, que as subsume a todas, numa espécie de unidade multiplex (Luhmann), no sentido de que tem presente a si todas as distinções de que é composto.

Por sua vez, a criação não é mais que um acto, ou uma sucessão de actos, de distinção de Deus e em Deus, começando pela mais simples de todas as distinções: a de apontar para si, traçando um espaço, e um tempo, entre o início e o fim do dedo que aponta de si para si. Acontece que mesmo nesse acto de criação, aquilo a que se assiste não é mais que uma circularidade, em que o dedo tem origem naquilo que o dedo aponta

Ora, isto não tem nada de mitológico e, pelo contrário, aponta para a natureza mesma da experiência humana, que se pode descrever muito adequadamente como um processo circular virtuoso de autocriação, quando, claro, nos instalamos verdadeiramente num processo de tensa autocriação.

Mas voltemos a Yaltaboat, filho de Sabedoria, constituído como um aborto, como uma distinção falhada de si, sem reconhecimento da unidade múltipla de onde procedia, e que deu azo a esse

“estranho dragão com rosto de leão, de olhos resplandecentes como relampâgos [e] lançou-o para longe dela e daquele lugar afim de que nenhum dos imortais o visse, porque o tinha criado em ignorância. Envolveu-o numa nuvem luminosa e colocou-o num trono no meio de uma nuvem para que ninguém o visse excepto o Espírito Santo, que é chamado ‘a mão dos viventes’. E deu-lhe o nome Yaltaboat” (BNH, I: 225).

Yaltaboat “é um ser ímpio repleto de estultícia” (BNH, I: 226) porque se mostra “ignorante do seu fundamento” (BNH, I: 226), i.e., ignorante da sua natureza de elemento de um sistema de distinções no âmbito e em relação com todos os outros éons do Pleroma, nas quais não constitui mais que uma distinção na Totalidade.

Na verdade, a cegueira de Yaltaboat não é mais que a cegueira ou a reificação ontológica de cada um de nós, manifestada no realismo dogmático, naquele realismo que tende a hipóstasiar o si mesmo e o mundo, incapaz de se libertar das suas convencionais determinações ontológicas. Ou, em alternativa, a cegueira de Yaltaboat também pode ser entendida como uma reificação niilista, i.e., como uma exasperação violenta da inexistência de fundamento, que se manifesta magistralmente no divino que diz que “Eu sou deus, e nenhum há fora de mim”, permitindo-se a criação ex-nhiilo, isto é, criação a partir do nada, a partir de um fundo sem fundo que se reifica como nada. Em qualquer dos casos, a cegueira de Samael consiste num excesso, quer seja um excesso de si (reificação dogmática e realista), quer um excesso de acção sem fundamento de si (i.e., um excesso de acção sem fundamento, uma reificação niilista), incapaz de perspectivar a linha média de toda a emanação, que nem é ser nem não ser, mas antes um entre-os-dois, como uma espécie de virtualidade actual.

Yaltaboat é, finalmente, e então, o demiurgo, o deus criador do céu e da terra e da dimensão corporal do homem, aquela dimensão pela qual nos submetemos às (suas) leis cosmológicas e sociais, aos seus princípios legais e morais. Yaltaboat é, em suma, o deus da sujeição cosmológica, não o deus da libertação.

Chegados aqui os mitos gnósticos variam. Como, aliás, varia o mito da criação no Génesis, dando origem a Génesis 1 e 2. No entanto, de todas as variações gnósticas, aquilo que persiste é a ideia que do interior do Pleroma ocorreu qualquer tipo de intervenção divina (por intermédio de Sabedoria, no Apócrifo de João) visando insuflar o espírito no corpo psíquico do homem, a obra de Yaltaboat, provocando o início de uma trama de relações conflituais entre o Homem (agora já não simplesmente terrenal ou hílico, ou psíquico, na terminologia gnóstica, mas antes conformado à imagem e semelhança do Espírito Vivente, i.e., pneumático) e os vários arcontes terrenais, particularmente o primeiro arconte Yaltaboat.

Um dos primeiros actos deste drama antropogónico conduz Adão ao Éden, por ordem do demiurgo. Ora, o Éden é tanto lugar de felicidade como de contenção, sítio de perfeição como de limite e constrangimento. É, em suma, o cosmos. O Éden é uma criação do demiurgo, Samael, o cego, ignorante e violento arconte, Yaltaboat, o deus do poder e da dominação. O Éden, no Apócrifo de João, não é propriamente o éden, o paraíso:

“Os arcontes arrebataram-no e colocaram-no no paraíso, dizendo-lhe:

‘Come, descansadamente’

O seu alimento é amargo,

a sua beleza é perversa,

o seu alimento é enganoso,

as suas árvores são a impiedade,

o seu fruto é um veneno mortal,

a sua promessa é a morte.

Então, plantaram a árvore da sua vida no meio do paraíso. Vou explicar-vos qual é o segredo da sua vida: vem do conciliábulo que convocaram, é o seu espírito contrafeito.

A raiz desta árvore é amarga,

os seus ramos são a morte,

a sua sombra é ódio,

as suas folhas trazem consigo engano,

a sua seiva é ungento da perversidade,

o seu fruto é a morte,

a sua semente é um desejo que germina na escuridão,

o inferno é o lugar daqueles que o apreciam

e a escuridão o lugar de repouso.

Outra é a denominada por eles ‘árvore do conhecimento do bem e do mal’ – isto é, a intelecção luminosa” (BNH, I: 233).

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