O JARDIM GNÓSTICO DO ÉDEN
Francisco Teixeira

INDEX

O JARDIM GNÓSTICO DO ÉDEN

Ponto 1
Ponto 2
Ponto 3
Ponto 4
Bibliografia
Notas

Ponto 1.
O Gnosticismo, particularmente desde Ireneu (135/140- 202), sempre se tem visto perseguido pela acusação de fantasia ou mitologia religiosa, dado a subjectivismos espúrios: “Cada um deles inventa algo todos os dias e nenhum é considerado perfeito se não é capaz de produzir novidades” (1995: 27), diz Ireneu, no seu Adversus haereses, chocado pela perspectiva de que em matéria de teologia coubesse à criatura quaisquer veleidades subjectivistas. No entanto, particularmente desde a descoberta de Nag Hammaddi (em 1945, no Egipto, e que desocultou uma biblioteca gnóstica completa), a que se deverá somar o mais recente “Evangelho de Judas” (descoberto em 1980, também no Egipto, embora só muito recentemente divulgado), somos obrigados a repensar de modo muito significativo as ideias e os preconceitos sobre o gnosticismo, permitindo-nos superar os apesar de tudo inestimáveis contributos recenseadores de Ireneu.

Hoje sabe-se com segurança que o Gnosticismo cristão constituiu uma das vias (embora politicamente derrotada) daquilo que foram as várias emergências do cristianismo primitivo. Em certo sentido, o Gnosticismo foi o grande adversário e, depois de derrotado, a grande heresia do cristianismo proto-ortodoxo, aquele cristianismo que viria a instituir-se em espaço de domínio e referência da legitimidade institucional, e política, da mensagem primitiva de Jesus, e que começaria em Pedro.

Mesmo nos evangelhos canónicos os sinais de tensão entre os vários partidários das várias mensagens cristãs estão presentes. Será esse o caso da “Carta aos Calossensses”, de Paulo, onde, num estilo abertamente polémico (e a despeito da notável e manifesta presença dos temas, ideias e princípios gnósticos em Paulo (1), se critica os “falsos doutores” e se chama a atenção dos crentes para que “ninguém vos engane com falsas e vãs filosofias, fundadas nas tradições humanas, nos elementos do mundo e não em Cristo. Pois n’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade”. Ou, ainda, na mesma passagem, referindo que “A realidade é Cristo. Ninguém vos seduza, afectando humildade e culto dos anjos, divagando sobre coisas que nunca viu”.

Na verdade, uma das teses centrais do gnosticismo é a da corporalidade aparente do corpo de Cristo (que viria, mais tarde, a inspirar o docetismo), pensado como um éon salvador, um “anjo”, um mestre gnóstico, e não uma encarnação divina, feita verdadeiramente de carne, susceptível de morte e ressurreição. No “Evangelho de Judas” o “docetismo” gnóstico, i.e., a (ilusória) aparência humana de Jesus é por de mais evidente: “‘Em verdade [eu] te digo, Judas, [aqueles que] oferecem sacrifícios a Saklas […] Deus [faltam linhas] tudo o que é mau’. ‘Mas tu superá-los-ás a todos. Porque tu sacrificarás o homem que me reveste’” (O Evangelho de Judas, 2006, Coord. Rodolphe Kasser, Mervin Meyer e Gergor Wurst, Ed. Temas e Debates e National Geographic, Lisboa, p. 48). Jesus, enquanto éon ou mensageiro do Pleroma não poderia morrer, i.e., ser constituído por um corpo e uma historicidades reais e terrenas. Jesus era, é, um puro Homem de Luz, um anjo de aparência humana mas, na realidade, insusceptível de se submeter às determinações do mundo cosmológico ou, sequer, social, dos homens históricos. Assim, Jesus simplesmente não pode ter ressuscitado pela simples razão de que não morreu.

Daí, então, que se perceba a necessidade de Paulo em acentuar a “corporeidade” de Cristo e a crítica do culto dos anjos, onde, ainda assim, “habita a plenitude da divindade”.

Mas, sem dúvida, o território mais elucidativo deste combate é a monumental obra de Ireneu, Adversus haereses, que pretendeu recensear as heresias cristãs da sua época (o século II) (do ponto de vista da ortodoxia que representava), no que acabou por prestar um inestimável trabalho ao futuro entendimento daquilo que foram as várias vias, iniciais, da mensagem e projecto cristãos. Ainda assim, como talvez não pudesse deixar de ser, Ireneu também pôs a nu o sectarismo e a intolerância da proto-ortodoxia cristã para com os grupos minoritários, e vencidos, do combate pela autoridade da invocação da “autêntica” genealogia da palavra cristã. Um dos argumentos (que não o único) de Ireneu contra o gnosticismo, conforme é reproduzido, ainda nos anos 40 do século XX, é o de que “a verdadeira regra da fé é a que se encontra no ensino dos apóstolos inalteravelmente conservado pela igreja. Ora este ensino da Igreja e dos apóstolos contradiz o dos gnósticos: logo …”, cita-o João Baptista Lourenço Insuelas, no seu “Curso de Patrologia”, arcediago e professor, em 1943, do seminário de Braga.

Parte daquilo que pretendo neste texto é mostrar como as críticas recorrentes da proto-ortodoxia e da ortodoxia cristãs desde Ireneu – de que os textos gnósticos são essencialmente conjuntos de ideias marcadas pelo sincretismo e pela mitologia – não são, afinal, e ainda, mais que componentes daquele mesmo combate ideológico e político de legitimação da herança de um cristianismo autêntico, que desembocou, sobretudo, nos cristianismos Católico e Protestante. Pretendo mostrar que, pelo contrário daquelas críticas, é possível vislumbrar, nos textos gnósticos, uma notável unidade e coerência no que diz respeito, por exemplo, à ontologia do mundo, à antropologia e à soteriologia, compondo um cristianismo alternativo àquilo que foi o futuro, e é o presente, da proto-ortodoxia cristã.

O meu ponto de partida para este objectivo é o da interpretação gnóstica do mito do Éden, conforme vem definido no Antigo Testamento e em alguns dos evangelhos gnósticos. Naturalmente, para além destes textos terei que repescar outros mitos e outras narrações.

A interpretação canónica, Católica, perspectiva o mito do Génesis como uma alegoria de uma idade, ou um estado, de ouro, que se quebra através da ambição ou do orgulho humanos em ser como Deus. O Catecismo da Igreja Católica é claro e vai directo ao assunto:

“A ‘árvore de conhecer o bem e o mal’ evoca simbolicamente o limite intransponível que o homem, como criatura, deve livremente reconhecer e confiadamente respeitar. O homem depende do Criador. Está sujeito às leis sobre as quais o Criador constituiu a ordem da Criação e as normas morais que regulam o exercício da liberdade” (2000: 99).

Ou, mais ainda: “Neste pecado o homem preferiu-se a si próprio a Deus, e por isso desprezou Deus; optou por si contra Deus, contra as exigências da sua condição de criatura e, daí, contra o seu próprio bem” (Ibid.: 100).

O que está presente nesta definição canónica do pecado original e da quebra do equilíbrio paradisíaco é, antes de tudo o mais, um princípio de absoluta transcendência divina, ou dualidade humano-divino: face ao homem está um criador que não é ele, que ele não pode ser e a que ele não pode ter cesso. O si humano, a essência humana, é separada de Deus. Poder-se-á dizer que a opção do si humano poderia (deveria) ser a de se dar (ou relacionar com, na terminologia habitual), ou entregar, a Deus. Mas, mesmo neste caso, e isto é o essencial, o si humano é por definição algo que não é Deus e essa dádiva, ou relação, teria que ser, sempre, assimétrica. Entre a natureza humana e a natureza divina existe uma disjunção essencial que nenhum despojamento de si pode transcender.

Mesmo a ideia de que existe entre Deus, o homem e o mundo uma relação de analogia, de que, como disse recentemente Bento XVI,

“entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e a nossa razão criada existe uma verdadeira analogia, em que certamente – como disse o IV concílio de Latrão, no ano 1215 – as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças, porém, apesar disso, não chegam a abolir a analogia e a sua linguagem”
(http://www.we-are-church.org/pt/dossies/RatRat.html in 2006.12.04),

esta precisão não põe em causa a ideia de absoluta transcendência de Deus, como, aliás, se salvaguarda no mesmo momento em que a analogia é referenciada.

A ideia de analogia implica, aliás, a assumpção de que entre o homem e Deus existe uma disjunção essencial, já que a analogia institui uma relação entre semelhanças e, portanto, também entre diferenças, irreconciliáveis, entre os termos que a constituem. A analogia estabelece que tal como são semelhantes, os seus elementos também são diferentes, irredutivelmente diferentes, sem o que, aliás, não haveria analogia. Essa dialéctica irreconciliável e tensa entre semelhanças e diferenças é o que, aliás, constitui o valor explicativo da própria analogia. Sem essa comparação, e disjunção, entre o foro e o tema (2), presente na analogia, ela não seria o que é. Assim, a utilização da analogia como metáfora explicativa das relações ontológicas entre o humano e o divino não elimina, de todo, a disjunção essencial que está no coração mesmo da analogia, antes, na verdade, a reafirma. Na verdade, como a frase referenciada de Bento XVI manifesta de modo claro, a invocação da analogia, no contexto do cristianismo católico, ou, mais amplamente, ortodoxo, nunca é utilizada por si mesma sem a precisão dos limites mesmos da analogia enquanto figura de aproximação ontológica entre o humano e o divino, daí a referência de Bento XVI ao concílio de Latrão, que afirma que, pese embora a relação analógica entre o homem e Deus “as diferenças são infinitamente maiores que as semelhanças”.

“A ‘árvore de conhecer o bem e o mal’ evoca simbolicamente o limite intransponível”. As palavras e os conceitos em causa não deixam espaço para dúvidas: há um limite entre Deus e o homem que é intransponível e que não é superável, nem pela retórica teologicamente correcta sobre a analogia. O pecado é, aliás, a superação ou, mais exactamente, a pretensão de superação desse limite. Naturalmente, o que é especialmente característico do cristianismo ortodoxo é, exactamente, a humanização de Deus, a Sua vinda como Cristo Salvador, a Sua inserção na história, feito Homem, a Sua transformação num rosto pessoal que vela por nós e que nos salva. No entanto, a situação inversa não é possível. O homem não pode fazer-se divino, i.e., entrar no domínio ontológico do divino. Mesmo a morada celeste da vida eterna não contempla a possibilidade de uma prova, de um saborear real, que não meramente analógico, da natureza do divino. A assimetria ontológica entre Deus e o humano é, então, manifesta e um dos fundamentos do próprio cristianismo ortodoxo. Claro que, como muito bem ressalvou Bento XVI, esta assimetria ontológica não quer significar irracionalidade, completa ausência de critério interpretativo ou, pior, de possibilidade de qualquer interpretação (que, de qualquer modo, é humanamente inevitável). Pelo contrário: a assimetria é, para o cristianismo ortodoxo, o garante de própria necessidade interpretativa. A diferença de Bento XVI relativamente à visão gnóstica é que enquanto para o Papa romano a interpretação não é mais que o dinamismo da relação assimétrica entre o humano e o divino já para os gnósticos a interpretação humana é o próprio realizar-se interno do divino, que, mesmo sendo divino não pode deixar de conter em si próprio um principio de indeterminação, um ponto cego, de auto-desconhecimento e fraqueza que exige o próprio movimento de auto-realizar-se, interpretando-se.

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