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BOLETIM DO NCH
Nº 14, 2005

Discursos sobre memória e identidade, a propósito do
V Centenário do Descobrimento dos Açores

Maria Isabel João

Sumário - Summary

Introdução

Conjuntura do Centenário Açoriano

Celebrações Oficiais

Discursos Identitários

Considerações Finais

Bibliografia

Discursos Identitários

As comemorações são momentos privilegiados para a produção de discursos sobre a identidade nacional, amplamente veiculados pelos meios de comunicação disponíveis em cada época. Mas nos centenários dos descobrimentos da Madeira e dos Açores verificou-se uma sensível alteração da perspectiva dos discursos, do plano nacional para o regional. Além disso, as reivindicações autonomistas estavam em qualquer dos arquipélagos bem vivas e tinham por base ideias e sentimentos que confluíam em representações sobre a identidade dos ilhéus. Em geral, não era posta em causa a origem maioritariamente portuguesa dos madeirenses e dos açorianos, que em ambos os casos se consideravam parte indissociável do conjunto da nação e tão portugueses como os continentais. Mas os discursos comemorativos centravam-se, naturalmente, nas ilhas quando se referiam à terra, nos açorianos e nos madeirenses quando falavam do povo e do seu passado. Os enunciados apresentavam uma perspectiva realmente simétrica dos discursos nacionalistas produzidos nas comemorações realizadas no continente. Assim, onde geralmente se lia Portugal e Portugueses, nos Açores e na Madeira apareciam as ilhas e as respectivas populações, o que conferia uma nota regionalista à retórica comemorativa.

As comemorações madeirenses foram dominadas pela preocupação da promoção turística do arquipélago e contribuíram para divulgar a imagem de um «jardim encantado», notável pela uberdade do solo, pelos seus óptimos vinhos, pela suavidade do clima e pelas belezas naturais (Quinto Centenário do Descobrimento da Madeira, 1922: 12). A designação de Pérola do Atlântico transformou-se na imagem de marca da ilha e na expressão do orgulho dos madeirenses em relação à sua terra (O Século, 1922). Quanto à origem dos madeirenses considerava-se que a presença dos portugueses tinha sido dominante e a importância dos escravos negros era desvalorizada, apesar de se reconhecer que foram abundantes na ilha da Madeira. Deste modo, defendia-se que os madeirenses não podiam «renegar a Pátria pela razão natural de não poderem negar a Raça» (Quinto Centenário do Descobrimento da Madeira: 37). O Diário da Madeira (1919) referiu-se, aliás, à «aguerrida sub-raça insular, cruzada de mistura de sangue estrangeiro» que tinha dado sobejas provas de valentia e de radical patriotismo ao longo da história. A reivindicação da autonomia, somente administrativa ou também política, consoante as vozes, não pretendia ser uma ruptura com o continente, mas a afirmação da especificidade insular no contexto nacional, como se reiterava num texto de M. Pestana Reis, inserido na obra dedicada ao centenário ( Reis, 1922: 36-38).

Por sua vez, as comemorações dos Açores deram lugar à publicação de alguns textos fundamentais em torno da memória e da identidade regional. Em 1928, o escritor terceirense Gervásio Lima publicou A Patria Açoreana, com o objectivo expresso de comemorar o quinto centenário do descobrimento dos Açores. A pátria é a «terra-mater» e usa o termo no seu sentido original para expressar a terra onde nasceu e que foi o seu berço. A pátria açoriana é, na sua visão, um «título carinhoso, sintetico da Pátria Portuguesa», uma forma de expressão condensada e sublime das virtudes nacionais que encontraram, naquelas ilhas, as condições ideais para se desenvolverem. Por isso, começa por enaltecer globalmente a terra açoriana. Depois debruça-se sobre cada ilha e sobre as suas belezas naturais, para caracterizar, em seguida, o açoriano como tipo genérico. A mulher merece um capítulo específico e termina com o vasto rol dos heróis que ilustram a história insular: navegadores, apóstolos, santos, homens das letras, das ciências e das artes. Recorre ao longo da obra a citações de muitos autores e viajantes para melhor demonstrar a excelência da terra e da gente dos Açores. E muitas vezes a melhor forma que encontra de exprimir os seus sentimentos é através dos poetas locais e das rimas populares - «Terra do meu orgulho e ultimo bem que espero / Mãe de Bento de Goes e mãe de santo Antero» ( Lima, 1989: 68).

No retrato dos açorianos, traçado por Gervásio Lima, facilmente reconhecemos elementos que estavam presentes no discurso nacionalista da época sobre as características dos portugueses. Considera, aliás, que o povo açoriano é «descendente dos melhores cavaleiros d’Africa, dos heroicos portuguezes que, nas regiões selvaticas e barbaras, ganharam seus titulos de nobresa» ( Idem: 100). Conservaria ainda as virtudes ancestrais da «raça» e as qualidades da velha alma portuguesa. «Trabalhador e crente, laborioso e honesto, respeitador e simples», os açorianos teriam sabido dar em todas as épocas históricas exemplos inexcedíveis da sua «fé patriotica, do seu arrojo indomavel, da sua valentia heroica» ( Idem). É o tipo do português anterior à degenerescência provocada pela riqueza fácil, aquele que desbravou as ilhas e foi colonizar outras regiões com o seu suor, nomeadamente o Brasil. Povo «firme e leal» que esteve ao lado do Prior do Crato e contra o domínio filipino; povo «ousado» que navegou para o Novo Mundo com os Corte Real; povo que se uniu a D. Pedro para implantar a «liberdade» em Portugal; «povo maleavel, indomito e docil, que soluça trovas nas notas dolentes de uma viola, improvisa nos serões e arraiaes; mas ruge e troveja nas horas indecisas ou ameaçadoras da patria e da liberdade» ( Idem: 110). O povo açoriano não se define, segundo Gervásio Lima, pela diferença em relação aos outros portugueses, mas por ser o lídimo representante do que há de mais genuinamente português, ancestral e elevado na alma da nação.

O povo açoriano, supostamente isolado nas suas ilhas no meio do Atlântico, teria conservado as características originais dos portugueses da segunda metade de Quatrocentos. Reencontrámos esta ideia em Vitorino Nemésio e Luís da Silva Ribeiro (cf. João, 1996a: 106). Por sua vez, a mulher açoriana é «bem digna companheira do ilheu trabalhador e sobrio». Mas é também essa Brianda Pereira que deu luta aos exércitos castelhanos, brava padeira de Aljubarrota terceirense, ou a D. Violante do Canto que colocou a sua fortuna à disposição da causa do Prior do Crato. Nos capítulos seguintes, Gervásio Lima empenha-se em redimir do esquecimento as mais variadas figuras que têm em comum o facto de terem nascido nas ilhas açorianas. Algumas delas são figuras efectivamente distintas, mas a maioria não consegue sair da obscuridade, apesar dos esforços denodados do escritor. O estilo de Gervásio Lima é ultra-romântico e francamente hiperbólico. E nesta ordem de ideias remata em jeito de síntese: «Os portuguêses são o maior povo do universo, escreveu o grande tribuno Bluteau»; «Os Açoreanos são das maiores glorias de Portugal, acrescenta o grande dramaturgo D. João da Camara» ( Lima, 1989: 261). Não é ele que o afirma, o modesto relator da excelência da pátria, mas outros com mais autoridade para o efeito.

Uma ordem de ideias muito semelhante segue Armando Narciso na sua «monografia romântica» sobre a Terra Açoreana ( Narciso, 1932), que dedica à memória dos primeiros que povoaram as ilhas. Começa por identificar os Açores como uma «Pequena Pátria», uma região inconfundível no conjunto das províncias portuguesas. A beleza natural e as magníficas paisagens açorianas deixam na sua «alma um repouso suave e bom». Além disso, as qualidades do povo contribuem para traçar um quadro idílico, de simplicidade rústica, laboriosa e honesta, em que os costumes antigos são preservados, mercê do isolamento dos ilhéus. «Tenaz e pachorrento, o Açoreano é - na sua opinião - um modelo de perseverança e trabalho». O mito da Atlântida e outras lendas identificam os Açores com o paraíso perdido e corroboram a imagem de «terras abençoadas, onde a vida corria santa e sem pecado». Com a chegada dos Portugueses e dos primeiros povoadores, no tempo do Infante de Sagres, os Açores passaram a estar inseridos na história de Portugal e a acompanhá-la nos momentos difíceis e de glória. O cunho aventureiro e o êxodo, provocado pela emigração, marcam ainda a realidade açoriana: «Os míseros, os tristes aventureiros lá vão, abanando com os lenços, acenando com os chapéus. Descuidados na rotina da sua cultura, no atraso da sua indústria, eles vão sem preparo, ao abandono de tudo e de todos, sem um Govêrno que os proteja, sem instrução práctica que os arme». No retrato idealizado da sociedade açoriana feito pelo autor, é esta a única nota que aponta para os reais problemas daquele pequeno universo marcado pela pobreza, pelos baixos níveis de escolaridade e pelo reduzido desenvolvimento económico e social.

A par destas obras de Gervásio Lima e de Armando Narciso, que traduzem bem um certo imaginário das minorias letradas dos Açores, sobressaem mais dois textos realmente dignos de nota, no número especial da revista Insula: o artigo de Vitorino Nemésio, onde foi cunhado o termo açorianidade , e outro de um dos patronos dos movimentos autonomistas, o advogado micaelense Aristides Moreira da Mota (Insula (1932), 7 e 8: 59 e 65).

O curto artigo de Nemésio é, nas suas próprias palavras, «uma colaboração estritamente sentimental», uma página emotiva onde procurou alinhar o essencial da sua consciência de ilhéu. Afinal, a consciência da singularidade e da solidão de quem nasceu rodeado pelo mar, uma espécie de «embriaguez de isolamento que impregna a alma e os actos de todo o ilhéu». Se como homens, os açorianos estão soldados ao povo donde vieram, pela vivência nas ilhas enraizaram-se em montes de lava que soltam das próprias entranhas uma substância que os penetra. Assim, Nemésio afirma que «a geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes».

Os Açores são, na perspectiva do escritor, «um autêntico viveiro de lusitanidade quatrocentista» e não se diferenciam pela origem étnica ou pela história, mas pela insularidade e as condições específicas do meio natural que teve uma influência decisiva no modo de ser açoriano. Estas ideias não eram uma novidade na época e correspondiam a noções correntes que se prendiam com as concepções do determinismo geográfico, mas a pena inspirada do escritor e o seu estatuto intelectual conferiram uma importância excepcional ao seu texto. De modo geral, todos os açorianos cultos o conhecem par coeur e a sua citação tornou-se de tal forma recorrente no discurso de identificação regional que podemos considerá-lo como um documento fundador. Mas o próprio Nemésio tinha consciência que o assunto precisava de ser desenvolvido e prometeu que um dia, depois das obrigações da vida civil já cumpridas, tentaria um ensaio sobre a sua «açorianidade subjacente que o destêrro afina e exarceba». Uma promessa que as voltas e reviravoltas da vida não lhe permitiram cumprir. É anterior a este artigo uma conferência proferida em Coimbra sobre «O Açoriano e os Açores», publicada em Sobre os signos de agora ( Nemésio, 1932a). Quatro anos mais tarde, Luís da Silva Ribeiro escreveu os Subsídios para um ensaio sobre a açorianidade, onde procurou analisar de forma mais sistemática, sem deixar de ser impressionista, os efeitos da influência do meio sobre os ilhéus ( Ribeiro, 1983: 515-556).

O texto de Aristides da Mota, publicado na revista Insula, não teve tanto impacto como o de Nemésio, mas não deixa de ser igualmente significativo. Sob o sugestivo título Ilhas dos Açores, Cárceres Floridos, começa por imaginar os primeiros colonos que se fixaram nos Açores, «alguns deles pertencentes a famílias nobres, gozando de situações privilegiadas». Para se isolarem nas ilhas, tinham de possuir uma «admirável paciência», «tenacidade» e «faculdades de adaptação». Para resistir ao apelo da saudade e desbravar o arquipélago, quanta «força de vontade», quanto «espírito de sacrifício» e quanta «abnegação» não teriam sido necessários aos primitivos habitantes do arquipélago. As qualidades dos açorianos foram, por conseguinte, forjadas nesses tempos heróicos do povoamento, que moldaram um amor entranhado pelas nesgas de terra onde vivem e onde esperam descansar para a eternidade. E Aristides da Mota imagina as ilhas como «cárceres floridos e embalsamados, onde é delicioso repousar» e onde também conta «ficar deitado para sempre». A ilha é, deste modo, simultaneamente prisão e sepultura, local de esquecimento e de alheamento do mundo, com algo de embalsamado e, ao mesmo tempo, de balsâmico para o espírito.