A estruturação da sociedade açoriana não beneficia de qualquer disposição específica que a isente da natural integração nos moldes em que a sociedade portuguesa se organiza. Ou seja, no arquipélago dos Açores, no período em estudo, a sociedade está organizada conforme o modelo das sociedades de Antigo Regime.
Isto não impede a verificação de fracturas que permitiam a mobilidade ascendente de pessoas cujo estatuto, riqueza ou benefício de qualquer espécie, permitia aquela promoção. Num dos documentos em que este estudo se baseia – e isto apenas constitui um detalhe avulso, mas, talvez, expressivo – o autor de uma informação relativa à oficialidade faialense, ao caracterizar a avaliação que fazia do capitão de milícias António Garcia da Rosa, dizia não ser nobre, para logo corrigir em nota final, registando “quando é certo que a goza em atenção aos cargos que seu Pai tem servido de Juiz de Fora, Corregedor, e graduação de Desembargador” (BPARAH, 1818-1821: doc. s.n.). De forma a comprovar o fenómeno de mobilidade a que é feita referência, é de ter em conta um documento de 1812 que o Coronel Estácio Machado d’Utra Telles designa “Relação nominal das pessoas, que na Villa da Horta da Ilha do Fayal há pertencentes á Nobreza della” (BPARAH, 1808-1812: doc. s.n.) e na qual inclui vinte e cinco indivíduos (1), acrescentando depois, separadamente, sem explicação, um outro grupo de seis pessoas que diz gozarem de nobreza e que a Câmara também chama para se incorporarem nas cerimónias religiosas, ocupando lugares de destaque ou ajudando a transportar o pálio, lanternas, etc. Pelo conhecimento da documentação deste período, nomeadamente da que se refere aos despachos alfandegários ( Costa, 2003, II), pode concluir-se que todos eles eram negociantes da praça faialense (2). Não surpreenderá um certo hibridismo social que gradualmente foi progredindo na sociedade açoriana, não só como reflexo normal da própria evolução económica, mas até porque a nobreza local parece eximir-se das suas obrigações tradicionais, dando oportunidade a que indivíduos estranhos às elites vão progressivamente ocupando o seu lugar. Tal situação é bem evidente na veemente advertência que o capitão-general dirige à Câmara de Angra reprovando o desinteresse da nobreza da cidade em participar nos actos a que tem obrigação de comparecer e manda punir os que não cumprirem (BPARAH, 20 Set. 1806 - 26 Março 1808: 217). Aliás, em ofício de 13 de Setembro de 1809 do capitão-general para o governador de S. Miguel, sobre queixas quanto ao modo como o coronel de milícias de Ponta Delgada promoveu o alistamento de negociantes para aquele regimento, o mais alto magistrado do arquipélago refere explicitamente que “… sendo, como são os Negociantes Nobres pela dita Profissão convem sejão como outros Nobres contemplados para o acesso aos Postos nos Corpos Melicianos…” (BPARAH, 29 Março 1808 - 2 Maio 1810: 232).
Porém, em termos gerais, a sociedade apresenta-se hierarquizada, dominada pelos estratos da nobreza para os quais, por lei, está reservada a ocupação de determinados postos e cargos. Era esta, pelo menos em termos teóricos, a realidade vigente no tempo. A este propósito, veja-se trabalho sobre as elites micaelenses ( Rodrigues, 2000), onde é chamada a atenção para os inconvenientes de generalizações interpretativas, já que as especificidades locais podem trair tal propósito. Sendo certo que reconhece que para a sociedade micaelense a realidade das elites de Ponta Delgada, não corresponde obrigatoriamente ao modelo dos restantes núcleos populacionais da ilha, aceitar-se-á que o mesmo fenómeno se verifique em ilhas de menor dimensão. Mesmo de forma mais evidente. Ou seja, como defende ( Rodrigues, 2000), estão em presença “níveis de honra” diversificados.
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(1) Da lista transcrevemos, com actualização ortográfica: Gaspar Pereira de Lacerda, Inácio Soares de Sousa, Manuel Inácio do Canto, Luís Peixoto da Silveira e Lacerda, José Francisco da Terra Brum, António Pereira de Labate, Jacinto Manuel de Brum Athayde, Francisco Peixoto da Silveira, Jorge Peixoto da Silveira, Belchior Homem Cardoso, Gonçalo de Labate, Manuel Inácio Brum, António Taveira Frias, Manuel Gutierres da Silveira, António Homem de Melo, Francisco Silveira Vilalobos, desembargador Manuel Garcia da Rosa, António Garcia da Rosa, José Francisco Berquó, Tomaz Francisco Berquó, Bernardo Teles d’Utra Machado, Manuel Jacinto de Labate, Nuno Álvares Pereira Forjaz, Tomaz Luís Leal e António Silveira Betencourt.
(2) Os seis nomes constantes da lista são os seguintes: Sérgio Pereira Ribeiro, Dr. Roque Taveira, António de Oliveira Pereira, Estolano Inácio de Oliveira Pereira, Vitoriano José de Sequeira e João Aurélio Ramos. |