A força da hiperficção como forma literária assenta, em grande parte, no modo como permite traduzir os traços do corpo em mutação, as suas indecisões e sonhos (do corpo perfeito, da imortalidade). Se na Rede as questões de género, sexualidade, nacionalidade e nome são irrelevantes para definir as relações e as identidades, que corpo poderá manifestar a literatura no ecrã senão um corpo-colagem, uma manta de retalhos? Podemos definir os “interfaces” das próteses a partir das impressões que os corpos deixam no seu meio ambiente? Mantendo aquilo que desde Marshall McLuhan se sabe: que as tecnologias da informação estão a transformar a subjectividade, de que ordem é o impacto tecnológico sobre o corpo? Ter-se-á o hipertexto tornado o corpo desterrado de que fala Shelley Jackson? Ter-se-á o corpo, enquanto “superfície de inscrição”, “convertido” à máquina, uma máquina que escreve, por influência da sua mútua (im)pressão? (1)
O corpo das narrativas tecnológicas é um corpo-em-fluxo, em constante metamorfose, em devir portanto, a caminho de figuras tão diversas como “criança”, “cão”, “piano”, “plátano” (no mundo imaginário de M. G. Llansol, por exemplo) ou Mulher/animal/insecto/máquina (na interpretação de Deleuze). É deste corpo que Susan Bordo afirma:.“se o corpo é uma metáfora para a nossa localização no espaço e no tempo, então o corpo pós-moderno não é corpo nenhum”(2). O conceito de escrita feminina de Cixous está umbilicalmente ligado à análise da escrita como “différance” em Derrida. O que desde logo indica que a escrita feminina não depende do sexo biológico do escritor. Exemplos entre nós não faltam (Botto e Sá Carneiro). Os textos femininos são textos que trabalham na diferença , que se esforçam por atingir a diferença, que lutam por destruir a lógica falogocêntrica dominante, que estouram com ele a prisão da oposição binária e se deleitam com os prazeres da textualidade aberta.
O ciberfeminismo, que pode definido em relação com as suas origens na teoria e na prática feminista dos anos 1980 e mais recentemente dos anos 1990s (Kennedy 2000: 285), está em estreita relação com a emergência das tecnologias da informação. Foi o tempo das Riot Girls (Baridoti 1996: 14), das VNS Matrix (1994) ou de Plant’s (1995). As narratologistas femininas, que são um movimento pós-estruturalista da crítica, analisam as formas narrativas quer tendo em atenção o género quer os textos no seu contexto histórico, compreendendo as formas narrativas relacionadas com a era, a classe, o género, a orientação sexual, as circunstâncias raciais e étnicas, bem como os seus produtores e audiências. Por outro lado, a narratologia feminista socorre-se da crítica feminista-epistemológica da objectividade questionando o raciocínio da narratologia clássica “ou/ou”. Os primeiros ensaios em narratologia feminista centravam-se na função e no posicionamento das personagens femininas nas narrativas inclui a famosa análise de Nancy K. Miller sobre os romances ingleses e franceses dos séculos XVIII e XIX – The Heroine’s Text Love (1980) e o estudo de Mieke Bal das mulheres nas narrativas bíblicas, Lethal Love (1987). Os romances “feminocêntricos” franceses e ingleses apenas têm dois destinos possíveis para as personagens femininas: ou casam ou morrem. Susan Snider Lanser criou o nome do movimento Narratologia Feminista no ensaio “Toward a Feminist Narratology” em 1986. Nancy K. Miller escreve em The Heroine’s Text (1980). Não faltam críticas feministas que evitam a narratologia a favor de abordagens menos esquemáticas, havendo outras que encontram na narratologia um vocabulário que permite identificar marcas do género na narrativa.
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(1) Linda Howel, “The Cyborg Manifesto Revisited: issues and Methodes for Technocultural Feminism” in Posmodern Apocalypse, ed.,R. Dellamora, University os Pennsylvania Press, Philadelphia1995,
(2) Susan Bordo, “Feminism, Postmodernism, and Gender-Skepticism”, in Linda Nicholson (org.) Feminism/Postmodernism, Londres e Nova Iorque, Routledge, 1990, p. 145. Cf. J. Bártolo, “As impressões do corpo”, in RCL, nº pp. 305-322. Cf. José Augusto Mourão, “Sobre(impressões) do corpo na literatura digital” (inédito). |