CARLOS MACHADO ACABADO
EXCERTOS DE UMA ENTREVISTA IMAGINÁRIA AO JORNAL “O INEXISTENTE” DO AUTOR DE “LA JEUNE VILLE”, “TODOS SOMOS HAMLET” E “À LA RECHERCHE D’UN LANGAGE COMMUN” 

Para libertinos verdadeiramente
imor(t)ais—como o autor de
Comunidade”, “Diário Remendado”,
“O Cachecol do Artista” ou
“Crítica de Circunstância

INDEX

Parte I..
Parte II..
Parte III

PERGUNTA: A realidade como estrutura ou encadeamento puramente circunstancial (ou circunstanciante, circunstanciador?) de estruturasIsso não é “muito Barthes”, “muito Lévy-Strauss”? A realidade não é um órgão: são os órgãos dela. A realidade, diz você, depende sempre da “generosidade” ou da “benevolência”, no fundo gratuita e contingente, de alguém: la réalité c’est toujours à re/faire”, é isso?  

        
RESPOSTA: La réalité c’est une géométrie imparfaite, toujours à refaire, toujours inachevéeNum certo sentido, sim, claro, poderia ser isso. E a colagem presta-se perfeitamente a representar ou a “encenar” isso. A colagem são as coisas e a sua “crítica”—os objectos e a sua  própria negação. A sua própria superação. Aquilo que ela traz de especificamente seu para a expressão é precisamente essa capacidade para tornar a “impermanência e a insolidez criacional” visíveis—para transferi-las do plano dos puros conceitos ou da pura abstracção para o do imediato, para o domínio da visualidade concreta, redimensionando a nossa própria capacidade específica para produzir representações minimamente humanizadas e tão estáveis ou estabilizadas (tãoestabilizáveis”) quanto possível do real.

A colagem torna a impermanência do real uma experiência visual perfeita—quando é boa, quando resulta, quero eu dizer.

Por outro lado, a minha única hipótese de “chegar” à obra de certos artistas é a gravura. Eu tenho várias gravuras. Mas sobre a gravura eu devo dizer o seguinte—que (acho eu) serve também para falar sobre a colagem: eu nunca gostei, por exemplo, de gravuras que são, afinal “pinturas impressas”. Essas são “pinturas impressas”, pinturas que ‘se enganaram’ no veículo—não verdadeiras gravuras.

A colagem também não “deve” ser, na generalidade dos casos, um “segunda pintura”—só que menor.

Dentro do relativismo da ideia de “dever” em Arte, claro, não deve. Geralmente não deve. Claro que há o Matisse e as suas prodigiosas experiências ou experimentações nesta área. Mas o Matisse era um artista fabuloso que podia dar-se ao luxo de “invadir” um género exactamente para o por em questão, para lhe testar os limites, sublimando-o e ao mesmo tempo “devastando-o” mas num sentido cognitivamente nobre e estética e cognitivamente perfeito.

Para mim, porém, a colagem é, sobretudo, tipicamente a Hanna Höch, isto é, a ruptura, a fractura.

Matisse fecha, agregando-lhe a beleza pura, o equilíbrio ou a estase total. É um instante crítico na colagem.

No sentido em que traz a beleza para um universo onde a chave não é genericamente a beleza mas a rotura, ele é, aliás, também, um dissidente e um dissonante

Mas eu gosto das formas de expressão que têm a capacidade (ou que têm a humildade) de saber quando devem integrar, de forma corajosa, a negação de si, isto é, negar-se para voltarem a ser elas mesmas um pouco mais além.

Olhe, Gaudì, por exemplo

Eu sou um “devoto” de Gaudì, que elevou o mau gosto e o kitsch a um estatuto de “angustiada meditação” sobre a existência que poucas vezes encontrou correspondência na Arte “pop”, nas formas de expressão estética “popular.

Raramente, com efeito, uma obra estéticapara burgueses (a “art déco” era, no fundo, a ideia que o “analfabetismo estético típico” do burguês oitocentista e novecentista tinha de uma “coisa”, para ele brumosamente deslumbrante, chamada “arte antiga”, uma “coisa” que destilava “estatuto” e dava “relevância simbólica” a quem a possuía); raramente dizia, uma Arte originalmente para burgueses e para burgueses ricos (o ‘burguês pobre’ é uma invenção da pós-modernidade) terá sido capaz de constituir-se num veículo tão prodigioso de angústia e de inquietação não apenas estética mas claramente existencial, de um modo capaz de rivalizar com a maneira de “fazer Arte” e de “fazer expressão” em geral dos artistas ditos genuínos: pintores, poetas, etc.

de época: num certo sentido muito preciso, a colagem é uma Arte “de época”.

Eu não consigo deixar de vê-la também um pouco (ou um muito!) como o grafito, por exemplo.

Uma Arte clandestina. Underground. Que “rouba formas” para (as) subverter—e pôr continuamente (tudo) em causa.

A colagem é, como várias vezes tenho repetido, a Arte contendo a sua própria interpretação.

Contendo o olhar de quem a vê, inscrito no próprio corpo da obra vista

Comparo-a com os graffitti no sentido em que é uma arte que “assalta”, uma “Arte hold up” que torna revolucionariamente fluidos, vaporosos, estruturalmente perdíveis, os limites materiais da propriedade.

Da propriedade visual, claro, mas, por extensão, também (e num certo sentido muito preciso: sobretudo!) da propriedade “tout court”.

A propriedade convencional (o poder económico e politico) impõe-nos formas, impõe-nos bairros, impõe-noscidades. Tem aliás um Direito próprio seu que trabalha afanosamente para legitimar essa invasão e essa violência visual e conceptiva, estética, urbanística, cultu(r)al.
Eu hoje visito a zona onde morei em criança e adolescente (os velhinhos bairros dos Anjos e da Graça, da Lisboa remansosamente ‘pós-rural’ dos anos 50) e, pura e simplesmente, não a reconheço.
Alguém me forçou a aceitar no “meu” bairro, uma série inimaginavelmente cacofónica de imagens arquitectónicas, visuais, cromáticas, olfactivas e por aí fora que me roubaram por completo a possibilidade de reviver como aspiro as emoções que experimentei em criança.
Essas estão, hoje, definitivamente perdidas.
E quanto eu não daria para rever a casa dos meus pais, os quartos, os corredores, os recantos—físicos mas também afectivos!—que ela comportava!
Quanto não daria para poder voltar a ver o recanto exacto onde morreu a minha mãe, o sítio onde encontrei o seu corpo defunto, a janela de onde costumava espreitar oculto a primeira paixão e os cheiros de tudo isso, também e talvez sobretudo!

E, todavia, cada uma dessas imagens foi-me tão impiedosa quanto definitivamente roubada, sonegada.

Se quero re/viver a minha adolescência, hoje, tenho de imaginá-la contra aquele novo bairro, contra quem o desfez e refez, contra quem o desfigurou de forma irreversível, contra o conceito de propriedade material impondo-se ao de “propriedade afectiva” (ouolfactiva e “emocional” ou, claro “visual”) que, defendo, deveria poder prevalecer sobre todas as outras

Então, este é o contexto cultu(r)al onde o grafito retalia—e que o grafito desafronta simbolicamente “apoderando-se visualmente das” paredes e inscrevendo-lhes uma marca que é em si mesma (quero crer que sempre e sempre de forma intencional) um protesto visual, um “grito visual e cromático” de rebelião.

Um acto politico?

Um acto politico, também, claro!

Ora, a colagem é um acto de natureza comparável, basicamente similar. Se encerram a Arte em museus (isto é, se a convertem em propriedade deles e de quem pode pagá-los) o “writer” trá-la, outra vez, para a rua: apodera-se dela, inscreve nela a sua marca pessoal, a sua opinião, a sua perspectiva pessoal.

Independentemente do que se diz, a própria decisão de dizê-lo e fazê-lo daquela maneira é já politica. 

Aquilo que eu pessoalmente faço é re/organizar a realidade, começando por rejeitar liminarmente os paradigmas de organização que me são unidireccional e unidimensionalmente impostos pelo “establishment”.

O que eu faço é recusar-me a aceitar aquilo a que poderia chamar um “padrão realicional”, um protótipo particular de realicidade. O que eu faço é fazer-me ouvir. É deixar sobre quanto existe a mensagem de que eu próprio existo e que tenho uma palavra a dizer sobre o que vejo, oiço e sinto—a minha própria palavra. Boa? Má? A minha.  

PERGUNTAS: Sendo que os seus fantasmas e “demónios” interiores fazem parte integrante do processo…

RESPOSTA: Exactamente! Eles e o modo como eu próprio aspiro a lidar com eles. Tudo isso—esse jogo complexo de elisões e aparecimentos, passa objectiva ou mesmo objectualmente para o «objecto» final.

PERGUNTA: Disse uma vez que nos seus melhores momentos, Beckett, um dos seus autores ‘de referência’ era um “colleur” genial

RESPOSTA: E mantenho o que disse. Se você considerar, por exemplo, o trabalho cinematográfico dele, o que tem é uma “colagem” perfeita: o teatro “colado” ao cinema para questionar ambos. Ou as incursões de Beckett ao bailado e, simultaneamente, à televisão: os seus fortíssimos “Quad”, desde logo

PERGUNTA: Mais adiante, teremos, com certeza, oportunidade de regressar ao tema Beckett. É um tema que julgo saber lhe diz qualquer coisaAgora, gostaria, sobretudo, antes ainda, de ouvir a sua opinião sobre o seguinte: por diversas observações que lhe tenho ouvido fazer, parece–me ser legítimo supor que concebe algumas (senão mesmo, de uma maneira genérica todas) as diversas formas de subcultura pop contemporânea (o “western”—que sei que aprecia sobremaneira—o cinema popular emsentido amplo, a própria música ou alguma dela, etc.)como uma espécie de “grande consciência imprecisa e difusa” do mundo ocidental moderno

RESPOSTA: …ou de grande sub-consciência, sim do mundo moderno e do pós-moderno, também. Como uma espécie de larga “projecção reflectiva ou reflexional” dele, talvez, simé um modo de pôr as coisas, suponhoa verdade é que a questão da “consciência” (falo agora sobretudo num sentido ‘moral’ específico que é uma questão, muitas vezes—demasiadas vezes!...por ausência, hoje-por-hoje, absolutamente fundamental) tem muito que se lhe diga.

Eu sempre tendi a ver o mundo dito “ocidental” como uma entidade esquizofrénica (ou talvez mais rigorosamente: não sei se é correcto dizer assim) “saudável—terapeuticamente—esquizofrénica”.

É outra vez Lang (o R.D. não o “velho” Fritz) e são, outra vez, os anti-psiquiatras.

É, outra vez, o “anti”, numa palavraa loucura como “cura” de si própria—a “lou-cura” ou, se quiser, de uma forma menos ambiciosa, como estratégia premeditada para reencontrar sempre secundariamente  algum do equilíbrio atrás posto em causa

Muita gente se escandaliza por eu gostar, por exemplo, ao lado dos do já citado Lang ou do Truffaut e do Godard, dos filmes do Tarzan, em particular dos que dirigiu Richard Thorpe, um excelente realizador pop(ular) americano.

A minha mulher e alguns amigos escandalizam-se com o facto de eu os ter gravado ao lado dos outros. Acham todos eles que não me ‘fica bem’ ter “aquilo” gravado, ao lado de coisas como os filmes que citei ou os do Tati (que são puro génio!) ou do Kubrick (de que gosto também muito).

A verdade é que eu vejo nesses filmes “do Tarzan” (como nos fabulosos álbuns do “Fantasma” do Lee Falk e do Sy Barry) algo que não é geralmente procurado pelos leitores e “film-goers”, em geral: o sinal de uma “consciência” ética e crítica (mas, sobretudo, ética: é dessa que estamos aqui, especialmente, a falar porque, como digo, ela é talvez “o grande ausente” do “banquete”, da “ceia da pós-modernidade”); eu busco nesses filmes, dizia, a marca reconhecível de uma consciência ética que o tal mundo ocidental” não chegou a formar—ou não chegou a formar directamente, digamos assim.

PERGUNTA: A esquizofrenia operando, agora, também no plano da moral colectiva… 

RESPOSTA: A esquizofrenia, claro! Há décadas atrás, chamava-se a isso o “double standard. Outros preferiam o termo “farisaísmo” mas enfim Ou seja: um mundo que assenta todo ele numa concepção nuclearmente perversa das relações entre os indivíduos, por um lado, e entre estes e a realidade, por outro, apenas pode segregar e projectar, como uma espécie de subproduto da “re/produção contínua de realidade”, formas marginais de consciência moral que ele fixa (eu diria: que ele fixa e solidifica como uma espécie de “materialização neurótica” do desejo inconsciente—e premente!—de ser punido) nas  múltiplas formas  da sua subcultura.

Dito de outro modo: naquelas onde ele imagina (é a pulsão contrária, ao processo de “desmembramento esquizóide” operando com toda a força da sua dinâmica dicotomizadora) poder escapar à vigilância atenta dessa mesma consciência

PERGUNTA: Um labirinto, outra vez

RESPOSTA: Um labirinto, sim! O que eu observo é que é, sem dúvida, fascinante ver como o “Ocidente” “atira para fora” da sua consciência (ou da sua sub-consciência instintualmente ética” ou “etiforme”, digamos assim), a expressão de um peso que faz, aliás, parte integrante do seu modo particular de aperceber e representar, de forma estável, característica, a realidade em geral: social, económica, politica.

Recordo-me, a propósito de Beckett (lá voltamos, então, por fim, a ele!), de ter participado num colóquio em Almada, entre outros intervenientes de enorme relevância, com essa excelente actriz que é a Maria do Céu Guerra.

Eu tinha acabado de traduzir o texto do “All That Fall” do Beckett (onde a Maria do Céu Guerra fazia uma impressionante “Mrs. Rooney” ao lado do Carlos Paulo que “era” o Dan Rooney, na “leitura” que o João Mota fez do texto) e lembro-me de que a dado passo falei no carácter “excretório” da linguagem em muito do que Beckett escreveu. A Maria do Céu Guerra discordou energicamente de mim mas a verdade é que eu não consigo deixar de achar que o que Beckett faz (o que faz nesse belo “All That Fall” inquestionavelmente!) é “inverter” por completo a lógica da linguagem humana, digamos assim—e nesse sentido (como noutros, possivelmente) a sua concepção da linguagem possui uma natureza excrementícia que para mim permanece evidente.

Ou seja: a linguagem humana possui (i) uma índole analógica usada basicamente para (ii) iniciar ou para desencadear processos de “comunicação” que são, em tese, específicos dos indivíduos humanos.

Ora, em Beckett, com característica frequência, existe (a meu ver, pelo menos) uma crónica indefinição argumentativa, teorizante, entre as diversas áreas ou “reinos” da ‘realicidade ôntica’ (algo a que eu chamei a “comédia ontológica” e que está, aliás, muito bem expresso em “nesse “All That Fall”).

Em “All That Fall”, com efeito, você é premeditadamente levada a não distinguir os sinais, as marcas “decapitadas” ostensiva ou mesmo agressivamente caotizadas dos animais das dos minerais e estas das dos (putativos) “humanos”.

Há um achatamento ôntico deliberado e integral da realidade—em cujo contexto a “fala” humana não surge como desencadeando processos senão que como concluindo (como concluindo e  encerrando, de uma forma im/puramente instintiva—ou institual—e mecânica) esses mesmos (aliás, em si mesmos, impossíveis, irrealizáveis) processos comunicacionais.

Que nunca “nascem”, eles mesmos—como sucede, aliás, com algumas das próprias (não?) personagens.        

A “comédia ontológica” em Beckett é isso mesmo: a redução sistemática, sistémica, da realidade a um único contínuo “reino ôntico” (na peça: a um único “ruído ou ruidicidade ôntica” ininterrupta, “jumbled”, isto é) indiferenciada, magmática, dilacerada e sofredora, onde a “fala” surge sempre como uma espécie de (im!) pura secreção involuntária da matéria ferida, algo que não depende (nem directa nem indirectamente) da intervenção nem do desejo nem da razão (nem, de um modo ou de outro, da acção!) humanos.

É nesse sentido que eu falo da “natureza in/essencialmente excrementícia da linguagem” no Beckett.

No sentido em que eu pessoalmente creio que a linguagem surge nele como uma cor ou o próprio suor (ou a urina) dos corpos, isto é, como algo que estes medeiam mas não controlam realmente nem realmente depende da sua vontade ou da sua determinação.

PERGUNTA: Julgo, aliás, recordar que chegou a usar a expressão “transrealismo” para se referir à técnica usada pelo Beckett na peça

RESPOSTA: De “transrealismo fenomenológico” ou “fenoménico”, sim. Porque, na realidade não existe aqui o projecto de “falar sobre a realidade” (que é o ‘projecto natural’ de todos os realismos) mas de atravessar e, no limite, negar a própria consistência ou a própria gravidade estrutural—num sentido muito exacto e  preciso: a existência—da própria realidade.

Para Beckett, com efeito, a “realidade” é uma “terra de ninguém” primeva onde a “regra” é a homogeneidade ou a amorfia integrais.

Enunciando exaustivamente “fenómenos” ou “fenomenicidades” completamente avulsos, indiferenciados e inorgânicos, provenientes do tal “real (im?) possível” (num processo semelhante, aliás, àquele de que atrás falámos e pelo qual a “fala” se separa ou cinde dos corpos em geral, isto é, “is shed by bodies in general”), Beckett organiza um projecto global de questionamento atormentadíssimo do próprio real como tal, isto é, como possibilidade orgânica de si, que termina exactamente onde tinha começado: na impossibilidade total e no caos.

Quer dizer: o próprio “mundo” nunca chegou a nascer—como na peça algumas das (não!) personagens cuja (não!) existência atrás recordei. E mesmo noutras, essa possibilidade é-lhes raivosa e acintosa (mas de modo algum gratuitamente) retirada pelas circunstâncias, pelo acaso: é o caso da filha de uma das personagens sofrendo a ablação dos ovários como condenação (ou, pelo contrário, como “salvação”, como desesperada “redenção”?...) à impossibilidade de gerar mais “vida” (ou ulteriorvitação”?)

PERGUNTA: Outro termo seu

RESPOSTA: … como “naughtopy” ou “voidotopy”, por exemplo. De “nulotopia” ou sacralização limite do “nesser A esse, “vitação”, “inventei-o” para introduzir um matiz, a meu ver, relevante, essencial mesmo, de “objectividade” no conceito tradicional de “Vida” (que é uma palavra, sobretudo, interpretativa e especificamente valorativa, em minha opinião)

Fi-lo como para o termo “volução”—que prefiro de longe aos termos “evolução” e “involução”. “Evolução” e “involução” não são termos descritivos e humildemente neutros: são “interpretações verbais”, estruturalmente invasivas, da realidade possível.

Daí, eu preferir a rigorosa “equidistância” de um termo como “volução” que não interpreta nem investiga e que, sobretudo, não avalia: tanto quanto é possível a uma palavra fazê-lo, descreve, apenas.

..Como “esser” e “nesser”, dois outros neologismos que tomei a liberdade de “inventar” para me referir não à ideia de “ser” ou, perlo contrário, de não ser mas neutral—e idealmente!—ao próprio “ser”, incontaminado por ideias ou representações sempre arbitrariamente pessoais e/ou estr(e)itamente teóricas de si.

Esser” é, pois, o estado natural das coisas “vistas da” consciência que se pretende recta e justa. O ser é a ideia que eu pessoalmente faço desse estado Mas a minha questão incidia sobre o modo como a cultura dita “ocidental” gera (e sobre os sítios onde ela “arruma”) as formulações de natureza “moral” ou como lhes chameietiforme” que vai contínua (tão contínua como reflexa, embora não reflexionalmente) segregando ou excretando.

O que eu digo é que ela arruma essas formulações instintualmente etiformes no subconsciente colectivo, plasmado na subcultura pop. É o “Fantasma” a proibir severamente o uso do dinheiro na “sua” selva (de Bengala, se bem me lembro: fabuloso país onde passei tantas horas da minha boquiaberta adolescência sempre tão fácil de fascinar com uma palavra ou uma imagem impressas...) ou Tarzan “recomeçando completamente do zero a Criação” (chama-se “Paraíso” o sítio onde, num dos filmes do Thorpe se refugia com Jane); Tarzan correndo a Nova Iorque para desfazer um excelente negócio: a utilização de “Boy” num circo como domador de feras.

Um teórico neo-liberal moderno não hesitaria em louvar (e com o maior entusiasmo, com certeza!) o espírito de “iniciativa” do empresário que imediatamente viu a fabulosa oportunidade de investimento e negócio nos talentos circenses de “Boy

PERGUNTA: Conheço algumas das reflexões que fez a propósito de “Aracnofobia” de Frank Marshall

RESPOSTA: …fi-las também a propósito, por exemplo, de “Poltergeist” to Tobe Hooper que é um dos meus filmes “feticheÉ realmente curiosíssimo o “trânsito” ou a “osmose conceptiva” contínua que tem lugar entre a Cultura formal e a subcultura pop nas suas múltiplas formas conhecidas. Eu diria que esta última actua sempre, no limite, de uma forma extremamente curiosa, como uma espécie de “mola elástica” involuntariamente tensa onde ressaltam continuamente as “ideias” vindas “de cima

PERGUNTA: …uma relação especular

RESPOSTA: Sim! Mas como um espelho que refractasse mais do que apenas reflectisse os «objectos», os «objectos cultu(r)ais» vindos de fora Já várias vezes o disse: é possível ensinar coisas extremamente “sérias” e perfeitamente formais como a tragédia clássica ou o existencialismo operativo de Sartre ou Camus, começando por ilustrar praticamente esses conceitos com coisas como “Rio Bravo” (que só funciona realmente—ou só funciona realmente daquela maneira perfeita—porque Hawks resolveu aplicar com todo o rigor as unidades aristotélicas ao cinema “de aventuras”) ou “Solaris” (o de Tarkovski) ou ainda “They Came To Cordura desse excelente RossenO que é errado fazer é desprezar (ou menosprezar) a subcultura pop com a alegação de que não passa de um eco das coisas que realmente importam—e contam.

Em minha opinião, ela é (ao menos, potencialmente) bastante mais do que isso—em especial hoje em que a massificação acelerou drasticamente os fluxos e refluxos cultu(r)ais, tornando o trânsito entre as “classes do conhecimento” (para o melhor e para o pior)  virtualmente  incessante e bidireccional.           

PERGUNTA: No fundo, aquilo sobre que estivemos a discorrer foi, ainda e sempre, sobre a sua ideia chave de “leituração”

RESPOSTA: Sem dúvida. Leiturar” é (como dizer?) espessar sempre um pouco mais as nossas práticas específicas no âmbito da organização das nossas relações pessoais, individuais e colectivas, com a realidade.

É um acto ou conjunto orgânico, sistémico, de actos não apenas “de colagem”, como (um pouco irónica mas em caso algum gratuitamente!) deixo escrito noutro lugar, mas, num sentido mais amplo e abstracto ou abstraccional, de cultura—no sentido exacto em que começa—obrigatória, assumidamente—por ser um (ou possivelmente vários, todos coordenados!...) actos de contra-cultura.

São essas, as nossas relações cultu(r)ais e/ou cultu(r)almente paradigmáticas com a realidade,  que têm de ser postas em causa—e reajustadas, continuamente reajustadas. Repensadas.  Integralmente revistas. A própria dúvida relativamente à originalidade estrutural de uma “arte secundária” como é geralmente a “colagem” (como é aquela que eu faço, em qualquer caso) permite continuar a repor sempre ulteriormente a questão essencial das nossas relações cultu(r)ais com a realidade e, claro, connosco próprios enquanto parte integrante—primária mas nãoprimária—dela Enquanto sujeitos—não objectos nem sequer “objeitos” ou “subjectos” dela.

Sujeitos!

Gostaria de acreditar ter mesmo se apenas muito modestamente contribuído para possibilitar que esse passo possa ser dado 

CARLOS MACHADO ACABADO 
               Montemor-o-Novo em 22 de Dezembro de 2006

Carlos Machado Acabado (n. 1945), lic. em Filologia Germânica. Professor efectivo do ensino secundário (apos.). Ensaísta ("Seara Nova", "O Professor", "Jornal da Educação", etc.), artista plástico (presente em diversas exposições: Bienal de Artes Plásticas da Festa do "Avante", exposições individuais, colectivas, etc.). Tradutor.

“A colagem é não só Arte como a inteligência e o entendimento da Arte por excelência”.

Porque o afirma o Autor? Porque, segundo ele, se trata da única forma de expressão artística em que o ponto-de-vista do observador (e nesse sentido, ele mesmo, observador…) se convertem em parte integrante, indissociável do próprio objecto homenageado: uma única realidade no momento angular do tributo ou da homenagem estética e cognitiva em geral.

No momento angular da crítica.

Do instante vertic(i)al do juízo.

Na colagem (dessa magnífica Hanna Höch ao absoluto Picasso) passou, devido justamente ao (excelente!) motivo em causa, (objectivo supremo de expressão e fruição!) a ser virtualmente impossível distinguir o ‘objecto’ do respectivo ‘sujeito’—e vice versa (“Transforma-se o amador” e por aí fora...).  

Por isso exactamente, pareceu ao Autor indispensável cunhar dois novos vocábulos a fim de referir cada uma dessas entidades (ele e o seu juízo comprometido: ‘engagé’ sobre as coisas) de modo a exprimir, com o maior rigor possível, os novos papéis que ambas essas entidades desempenham no contexto do acto, com a “invenção” da colagem, (finalmente) mágico—ou finalmente fusorde olhar.

Refiro-me aos termos “objeito” e “subjecto”: uma obra que se deixa lucidamente penetrar e invadir, desse modo ideal, pelo olhar apropriador e (na melhor das hipóteses) ‘inteligentemente apaixonado’ de alguém é, pode dizer-se, o “objeito” perfeito, ideal, desse olhar: a função ou a vocação naturais do mesmo. 

Já este, ao fazê-lo, se converte (levando consigo, no acto, o indivíduo que o suporta ou medeia) no “subjecto” ‘exacto e modelar da sua própria admiração e respeito’.

Uma colagem é, pois, no limite, é uma maneira exemplar, fácil (e quase perfeita) de (desapare)cer.

                                                                              Carlos Machado Acabado