Era um soba com um vestido que eu creio que fosse, portanto, coloridíssimo de mulher. Acho que o meu avô (que era médico e passou uma temporada em África exercendo medicina) a tirou, por uma razão desconhecida, numa qualquer deslocação que fez ao interior, em Moçambique.
Essa fotografia impressionou-me extraordinariamente. Nunca esqueci a imagem do colosso negro de expressão austera, feroz até (pensava eu) improvavelmente cingido por um inverosímil vestido de mulher.
Um soba (tal como eu o imaginava nos meus onze ou doze anos, pelo menos…) era uma referência absoluta de robustez e masculinidade: tinha várias mulheres, era literalmente (eu, pelo menos, via-o desse modo, repito…) proprietário de todas elas, exercia sobre elas (e sobre a tribo, em geral) um poder que, aos meus olhos, tinha alguma coisa de extraordinário ou mesmo de fabuloso pela extensão virtualmente ilimitada que eu lhe atribuía.
Ora, a fotografia do meu avô revelava-mo, de repente, de uma forma tão contraditória e surpreendente quanto, sobretudo, inquietantemente frágil e vulnerável—frágil pela discrepante sugestão de bizarra feminilidade mas sobretudo frágil pelo ridículo.
Para mim, era como naquela sequência (detestável, aliás— repugnante!) de “Chaimite” do Brum do Canto em que o Jacinto Ramos, no ‘Paiva Couceiro’ esbofeteia o ‘Gungunhana’ diante da população da aldeia.
Era uma coisa que profanava, que desflorava e desonrava: um puro (ou impuro!...) acto de violação.
No caso do filme, recordo vivamente que senti aquela bofetada como se ela me tivesse sido dada a mim próprio!...
Se o ‘Couceiro’ do filme tivesse disparado a sua espingarda ou pistola sobre o Gungunhana, isso configuraria, a meu ver, um acto de (apesar de tudo, alguma) admissível “nobreza”, uma atitude de consideração não apenas militar mas, sobretudo, de algum modo, humana, estilo “tributo” de um combatente a outro.
Eu abomino, devo dizer com toda a franqueza, todos esses rituais de “honra” mais ou menos castrenses, mais ou menos militares; mas aceito a intenção que, apesar de tudo, se dissimula por debaixo da barbárie e da violência de algumas das coisas que são feitas em nome da “honra” militar.
Mas a bofetada era um acto de deliberado aviltamento, um enxovalho calculado, frio, cirúrgico. Era, como disse, uma autêntica violação.
Como naqueles livros do “Texas Jack” da minha infância em que o cowboy chamava injuriosa, depreciativamente, “mulher”, “squaw”, ao chefe índio…
A fotografia do meu avô trouxe-me esse episódio de “Chaimite” à memória. Ou talvez fosse ao contrário, já não me recordo com precisão….
Já não me lembro de quando vi o “Chaimite” pela primeira vez: se foi antes ou depois de ter visto a fotografia—provavelmente foi depois mas enfim… a ideia era essa em ambos os casos, da violação, do estupro…
Havia uma fortíssima (uma inquietante, uma extremamente perturbadora!) componente subliminar de sexualidade em tudo aquilo que excedia largamente a questão do vestido.
Na bofetada como (claro!) na fotografia do meu avô.
Na fotografia tudo isso era evidentemente óbvio, passe a redundância: havia o vestido e tudo isso que ele trazia consigo como sugestões possíveis. Para um europeu, pelo menos.
A questão sexual inquietava-me, claro. Desassossegava, punha em alvoroço a minha deficitaríssima… “consciência sexual”, moldada nos velhos moldes do pudicismo ou do moralismo repressor típico da época.
Mas inquietava-me, sobretudo, confusamente embora, a outro nível, também. Quero eu dizer: julgo que inquietava.
Inquieta hoje retrospectivamente, em todo o caso…
Ou seja, dizendo de outro modo ainda: se penso hoje que inquietava, deve ter inquietado…
De algum modo obscuro, eu intuía, de facto, essa realidade que é o relativismo não apenas dos valores como especificamente do próprio poder.
Mais tarde, na docência, no ensino, consolidei adicionalmente, de forma prática, objectual, essa mesma ideia: o poder que temos sobre os outros assenta invariavelmente numa base extremamente frágil e instável, que pode, por isso, ser subvertida e revertida a qualquer momento.
Nuns casos parece mais sólido e estável do que noutros mas a sua “solidez”, a sua aparente “consistência” é sempre, em si mesma, problemática. Pode, repito, parecer absolutamente sólido, seguríssimo, mas é apenas aparência.
O poder, todo o poder, assenta sempre, em última instância, numa espécie de fio permanente da navalha: de um momento para o outro, como disse, perdemo-lo.
Pura e simplesmente, perdemo-lo. As pessoas de idade costumam dizer quando nos morre alguém, para nos consolar (acho eu…): “Não somos nada”. É um pouco isso.
Ali estava um fulano que eu imaginava (não sei se com fundamento ou com que fundamento mas enfim, essa já é outra questão…) como a epítome mesma da virilidade e que eu via, com uma incomodidade indescritível da minha parte, ridicularizado e, por conseguinte, inteiramente dessacralizado, completa e inquietantemente despido daquilo que o tornava perturbante, assustador, pelo menos para o exterior. Para o europeu. Creio que era realmente isso que me inquietava. É o que me incomodas retrospectivamente hoje em todo o caso: a ideia do medo do colonizador e do perigo extraordinário que esse medo é capaz de historicamente gerar.
Um garoto de onze/doze anos percebe isso? Não sei! Talvez o possa intuir, não sei. Talvez eu possuísse uma qualquer forma de processar essa informação ou essa ideia confusa de que aquilo era apenas um instante ainda relativamente precoce de alguma coisa de que o passo seguinte seria fatalmente o colonizador, o poder, perder o medo ou transformá-lo dentro de pouco tempo em agressão brutal, cega, devastadora.
No fundo, a humilhação do colonizado—a humilhação pessoal, individual—é uma fatalidade politica, uma forma de tornar o medo… “sociável” ou até “social” e “cultural”. É um bem? Do ponto de vista da paz imediata, talvez possa dizer-se que se aparenta a uma espécie objectiva ou objectual de “bem”. É uma forma de resolver “ainda pacificamente” o medo. Só quando esse medo emerge completamente “irresolvido” e “puro” na História, isto é, quando já não existem fórmulas passíveis de torná-lo pacífico, ordeiro e “social” ou “sociável” é que a tragédia emerge com toda a sua força.
Em todo o seu… esplendor.
De qualquer modo, talvez eu intuísse na altura que o processo ia começar, que ele se esboçava—ou mesmo que ele entrava mais ou menos discretamente numa fase aguda, decisiva.
Mas nem por isso menos dolorosa. Extremamente inquietante de um modo, como disse, indeterminado, vago—obscuro.
Um sinal simbólico de estatuto em rotura consigo próprio… a marca do poder ferido… eu podia sem dificuldade adivinhar, reconstituir (de forma puramente intuitiva, apenas, embora, seja!) aquilo que as pessoas do lado de cá viam: a dissonância grotesca, o caricato, o ridículo que mata.
Imaginava os risos, a troça, a condescendência ofensiva, numa palavra: a total confirmação da “superioridade” do colonizador com todas as consequências que se adivinham… a atitude do “civilizado” que o é exactamente porque sabe que os vestidos “são para” as mulheres e que um “verdadeiro” homem, um ser “civilizado” nunca aceitaria vestir roupa “de mulher”.
Logo, aquele fulano não podia ser um “verdadeiro homem”. Era-o, talvez, para dentro, para o interior de uma sociedade não civilizada.
Mas em termos “absolutos”, “é claro” que o não era…
Percebia intuitivamente como é, muitas vezes, impossível dialogar, comunicar, numa base de verdadeiro equilíbrio e de autêntico universalismo ou de autêntico ecumenismo, precisamente porque não existem valores absolutos, estéticos, éticos, etc.
Porque, numa palavra, todo o real é em si mesmo algo de estruturalmente insólido e instável. Depende de nós, do nosso olhar, do modo como somos previamente condicionados para vê-lo e perspectivá-lo e tanto nós como o nosso olhar somos incrivelmente falíveis e relativos!
Por isso tudo é também, em si mesmo, falível e relativo ou relatival—como,confesso, prefiro dizer. Não apenas o poder mas também a beleza. A possibilidade de se ser justo e respeitar a dignidade dos outros.
De se ser digno.
A dignidade.
A dignidade é algo que gostamos de acreditar que existe como parte intrínseca e indissociável da ‘condição humana’ mas não é verdade: depende do modo como usamos um bocado de pano, daquilo para que entendemos que existe um chapéu de coco ou um par de óculos.
Havia também uma fotografia de um feiticeiro ou coisa parecida (eu acho que era um feiticeiro, se calhar já era o efeito de uma ‘contaminação transcultu(r)al’ qualquer, do tipo daquela que venho aqui, se quiser, dissecando, vivissecando…) com um chapéu de coco incrivelmente extravagante.
E eu pensava ainda e sempre, perante essa nova “prova”: todo o indivíduo poderoso é afinal estruturalmente vulnerável. Recorda-se daquele episódio grotesco dos ministros fascistas portugueses abrindo um buraco na parede da sala do ministério onde se haviam refugiado para fugirem? Fulanos que nós associávamos à PIDE e às inomináveis violências de que ela era capaz?...
Pois, naquele instante, todo o poder deles ruiu e ei-los a cavarem (se calhar com as unhas…) um alvéolo, um “trou” como no filme do Giovanni, na parede do Ministério para se escapulirem…
Embora detestasse os fascistas, senti, também, aquele comportamento abjectamente cobarde como algo que eu próprio tivesse feito…
Ora, na minha “colagem”, naquela que comecei por lhe referir, está tudo isso: o homenzarrão incrivelmente possante e vigoroso (o “emperor”…) dilacerantemente dividido, cortado ao meio: “il cavaliere dimezatto”, por assim dizer, como no livro do Calvino: há ali (como em cada um dos diversos episódios e circunstâncias que atrás referi) uma espécie de angustiada e angustiante esquizofrenia que inquieta e perturba.
Ou seja: nada ali é ele mesmo.
Mas não é verdade que, com efeito, nada é ele mesmo?
Tudo depende sempre das circunstâncias, dos outros. O “ser” é sempre, no fundo ou no limite, algo de impossível ou de irrealizável, de inatingível (“le pays où l’on arrive jammais”) uma mera convenção e uma simples concessão, uma pura (ou uma… impura) generosidade de alguém ou alguma coisa exterior a nós.
Somos sempre aquilo que a incerteza e a dúvida nos permitem que sejamos. Na minha gravura, o rosto é do colosso mas o corpo é já (sublinho já: deve ler-se naquilo movimento—o movimento irrefreável e irreversível “de” alguém que se desintegra e desagrega “em tempo real”, diante dos nossos olhos…) o do ser inesperadamente delicado e momentâneo, transitório, imensamente vulnerável que ele “contém” e que aqui é dado pelo corpo da bailarina.
Então, ele partiu-se literalmente ao meio. Já não é dono de coisa alguma—nem sequer da sua própria integridade, de uma possibilidade de si como algo de consistente e duradouro. De orgânico. A imagem é a representação (ou a expressão visível) da esquizofrenia cultu(r)al em si mesma.
A impossibilidade de ser está (idealmente: na verdade, não sei se estará de facto: eu apenas gostava que estivesse…) expressa naquela antinomia óbvia, ostensiva, gritante.
Obscena? Obscena, sem dúvida!
De uma obscenidade ontológica (o ser prostituindo-se, vendendo-se ao estar, para criar a ilusão confortável da sua própria sempre irrealizável, sempre impossível realidade perfeita…) mas também, no limite, sexual, claro.
Gostava de acreditar que há ali traços evidentes—marcas claras—daquilo a que um psicólogo ou psiquiatra francês chamou “La Folie Colonisée”: o etno-Édipo, diria eu…
Isso está, aliás, tudo na própria peça do O’Neill onde a negritude sofre, de modo particularmente agudo e crítico, com o facto de ter sido “desterrada” para uma espécie de país um continente mais à frente…
Eu quis, entalo, fazer um “discurso sobre o colonialismo” (para remontar a um título famoso de Aimé Cesaire) mas sobre o colonialismo na sua forma mais interior e mais elemental porque dispondo de um reflexo visível no individuo—do “colonialismo existencial” e “ontológico”.
Quis transmitir através de um ícone concreto as ideias de dissonância e de ruptura.
De tragédia existencial-cultu(r)al.
De neurose ou etno-neurose, de “esquizofrenia étnica” ou “etniforme”.
Aliás, eu penso que toda a colagem é isso mesmo: a expressão da ruptura, o esforço de questionamento da integridade última (ou ultimativa “ultimate”, dizem os anglo-saxónicos) das coisas, da realidade. A esquizofrenia plástica, aquela que induz todas as restantes esquizofrenias de que necessitamos, de modo essencial, para pensar…
…Como nos filmes ditos “de terror”.
Nos filmes de terror do Carpenter, por exemplo como nos livros de terror do Perrault ou naqueles que recolheram os Grimm.
Eu gosto dos filmes “de terror” porque são, acima de tudo, vistos de uma certa perspectiva precisa que é a minha, de… “experimentação ontológica”. São autênticos “laboratórios do ser”. Nos filmes “de terror” somos trazidos (eu diria: ritualmente: há tudo de ritual e de mágico nesse “regresso”…) de volta para o instante original para o ápice fundador da humanidade (ou da… “humanicidade” e das suas possíveis formas de “consciência”) quando o primeiro homem se viu confrontado com uma coisa opaca, completamente desconhecida, que era “a realidade” vista pelos olhos de uma “consciência”.
Eu sempre imagino esse como um primeiro sinal não de evolução mas, pelo contrário, de desintegração e de fragmentação, de decomposição: os olhos, vendo; as mãos, tocando; o nariz, cheirando. E nada daquilo possuindo realmente unidade, lógica, integridade, consistência.
O indivíduo dilacerado nos seus próprios sentidos, incapaz de perceber qual deles, afinal, era ele mesmo…
O filme “de terror” é esse “regresso”: de repente, nada do que parece, é.
A matéria do real torna-se bruscamente espessa, nebulosa, cerrada, hostil.
É, no fundo, outra vez, aquela questão do poder.
De súbito, toda a lógica cede e a realidade converte-se num ecrã, num “screen” negro ou ao invés completamente branco (“blindingly white”…), que encobre literalmente tudo.
E tudo está ali em questão…
PERGUNTA: A realidade como estrutura ou encadeamento puramente circunstancial (ou… circunstanciante, circunstanciador?) de estruturas… Isso não é “muito Barthes”, “muito Lévy-Strauss”? A realidade não é um órgão: são os órgãos dela. A realidade, diz você, depende sempre da “generosidade” ou da “benevolência”, no fundo gratuita e contingente, de alguém: “la réalité c’est toujours à re/faire”, é isso?
RESPOSTA: “La réalité c’est une géométrie imparfaite, toujours à refaire, toujours inachevée”… |