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José Augusto Mourão (UNL-DCC) |
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O mundo agoniza (Petrarca) |
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Desde o fim do século XVIII que a relação entre o religioso e a cultura, definida até então pelo termo “cristandade”, se modificou. A simbiose entre o Evangelho, as contribuições culturais cristãs e as instituições eclesiais e a Cidade, com a sua herança própria, que lhe vem da Antiguidade greco-romana, o mundo germânico ou eslavo e as suas criações institucionais e culturais, entrou em colapso. “As Luzes, ou se preferimos a Aufklärung, que iluminaram profusamente a Europa do século XVIII – introduzindo o telos da emancipação numa razão entendida à maneira de Hobbes como cálculo -, foram o grande ‘tremor de terra' do mundo moderno, aquele que fez aparecer aspectos até então invisíveis à força de serem evidentes, do mundo da vida. Pelo seu recurso a princípios universais, aceleraram o metabolismo dos universos simbólicos, aumentaram a sua instabilidade, sapando tradições, preconceitos e privilégios” (R. Bodei, 1999 222-223). Aí começa a miséria do simbolismo. Porém, já no século XIV, Ockham se insurge contra uma escolástica tão sofisticada que parece ter nas rédeas dos seus raciocínios e dos seus conceitos a própria realidade divina, esvaziando Deus do seu mistério. Aqui começa o nominalismo (a ideia de que cada ser poderia ser diferente do que é; que nenhuma natureza universal se inscreve ele para o definir). Para Vives, que representa a divisória entre a Idade Média e o Renascimento, o sistema de crenças medievais entrou num processo que levará à sua volatilização como fé plena e colectiva. Quando Maquiavel põe em causa a ideia de Príncipe ideal (platónico ou cristão), está a tirar as consequências da desvalorização da referência a uma natureza como modelo inteligível. Quando Hobbes, no seu Leviathan assimila a natureza a uma arte ou a um mecanismo, está a tirar a consequência artificialista do nominalismo: a natureza é uma construção cujas peças podemos compor e recompor. Há que distinguir as épocas da história da técnica. A técnica é aquilo que abre o que Stiegler designa por singularidade ou desejo. A tecnologia representa um novo regime ligado à calculabilidade. A gramatização implica sempre a clonagem. A República de Platão é uma clonagem pela gramatização. Nessa lógica, a evangelização é um processo de gramatização. Está de ver que nominalismo e artificialismo desembocam sobre aquilo que Léo Strauss chamou o historicismo e que diz, em substância: o pensamento humano é incapaz de apreender o que quer que seja de eterno. “Tudo é relativo – é o nosso único absoluto”, dizia o pontífice da religião da Humanidade Auguste Comte. Para cada sagrado social, os seus ministros. Depois dos padres, o magistério do ecrã e do papel. A crise das legitimidades está, pois, instalada. A genealogia da modernidade pode colher-se a partir destas premissas. Maquiavel genuit Hobbes, Hobbes genuit Rousseau, Rousseau genuit Nietzsche ou Max Weber. A “secularização” progressiva da cultura (da ciência à história, à política e à moral) não se fez sem conflitos, malentendidos (Galileu), resistências e condenações (a História crítica do Novo Testamento de Richard Simon, no Index em 1682, a Enciclopédia de Diderot e d'Alembert (Breve de Clemente XII em 1759) ou os métodos modernos de contracepção (Humanae vitae , 1968). Desde o século XVI que o humanismo, ainda maioriariamente cristão, já não é plenamente eclesial nem teológico. A teologia vai viver para o campo de uma sub-cultura clerical e escolástica até à segunda metade do século XX (1). Paul Valadier, L'Église en procès. Catholicisme et société moderne , Calman-Lévy, 1987 (2). |
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