JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

 

O quinto evangelho
a palavra que falta

 

Coda

Quando vemos o léxico do evangelismo do século XII, logo nos deparamos com problemas de semântica e de delimitação do corpus textual a estudar (30). Mas o que de imediato salta aos olhos é a aspiração de regresso às fontes, o apelo a viver sub regula evangélica . O evangelismo é reivindicado por todos os espirituais do século XII – manifestando-se mais como um estado de espírito, uma vocação, do que um corpo de doutrina. Tenere formam (ou normam) primitivae ecclesiae é uma expressão recorrente no discurso de raiz evangélica. Vem a seguir o tema da imitação de Cristo, a sequela Christi ou do Christum sequi. Ou ainda a expressão via apostólica (31). O evangelismo desemboca em movimentos diversos, cristalizados em torno de personalidades carismáticas, como os Wanderprediger . A luta pela apropriação do capital simbólico contido no Evangelho acabará por passar pela divisão entre ortodoxos e heréticos. Em 1022 em Orleães, aquilo que reivindicam os adversários da instituição eclesiástica é o Evangelho e nada mais do que o Evangelho. Há heréticos que defendem uma oposição total entre a Palavra e o seu comentário. Não aceitam o Credo que não consideram verbum evangelicum e menos ainda a palavra dos pregadores.

Unamuno fala da agonia do cristianismo, distinguindo o cristianismo do evangelismo (32). A agonia situa-se onde: no interior desta distinção ou no plano do humano e do inumano? A suspeita cresce, o lado lobo do homem parece mais visível do que o seu instinto de paz. A má-fé e o niilismo devastaram tudo o que restava de confiança (no homem) e de crença (na justiça, por exemplo). Jeremias parece dar razão ao controle bio-político que se está a instalar por toda a parte, de braço dado com uma desmobilização geral.

Que podem as palavras de fogo que são as bem-aventuranças contra o impasse em que caiu o mundo? Que podem este evangelho do desassssego paradoxal (duas verdades que analisadas isoladamente, mutuamente se excluem) contra a peste do niilismo? Onde nos levam estes paradoxos que são inversões radicais das formas de pensar e de agir do mundo? Onde nos levam estes desafios ao bom senso? Pode a verdade crua da existência subtrair-se ao mundo? Estes textos são como o oráculo, que se referem à vida e à sua estrutura interna. A condição humana foi abalada pela palavra de Cristo. Nem todas as palavras que Cristo dirige aos homens na sua língua falam deles. As mais essenciais falam-lhes dele. A nossa relação com Deus que perturba as relações humanas depende daquilo que Cristo diz de si e da sua condição. A relação do paradoxo ao Reino subsiste quando este não é designado mas apenas significado através de algumas das suas propriedades - “satisfação”, “alegria”, “riso”, “visão de Deus”, “misericórdia”. Eis o que indicia o Reino, eis o que vem preencher o imenso Desejo do homem, aquilo que vem realizar a sua relação interior com Deus. É como se por trás deste tecido de proposições inverosímeis, uma outra Razão agisse, um outro Logos que nos toca no mais profundo do nosso ser e que subverte os nossos sentimentos. Não haverá nesta palavra de fogo algo que nos escapa, mas que sentimos consubstancial à nossa experiência ? “Quem acredita na sensualidade do invisível” (M. G, Llansol)?

A vida cristã é paradoxal, eis o que dizem as Bem-aventuranças. O lugar circunscrito pelos paradoxos das Bem-aventuranças é a própria condição humana. Há uma verdade trágica nestas palavras. Estas palavras ferem a concepção que fazemos de nós mesmos e despertam em nós a consciência aguda da fragilidade desta concepção. É no interior da vida que se elevam as relações desconcertantes proclamadas por Cristo. A vida é o que cada um experimenta, a vida é auto-revelação. O próprio do sofrimento é que só cada um o experimenta. É na nossa carne impressional que o sofrimento se nos revela. O mesmo da alegria, da angústia e da esperança. Ora é essa certeza invencível que faz que seja impossível duvidar da dor ou do prazer que faz o carácter mais paradoxal de todos os paradoxos das Bem-aventuranças.

O ateísmo não parece ser em primeiro lugar a denegação duma existência divina, mas a afirmação de que, sem o trágico como horizonte, não existe vida humana digna ou suportável. É preciso não esquecer que a primeira experiência do ser não é a felicidade, mas a sufocação. A pedra de escândalo continua a ser o sofrimento. "O sofrimento crava-me a mim mesmo como nos cravamos à terra - pelo fio de terra. O sofrimento não só me dói como me consigna a mim mesmo como carne", escreve J.L. Marion (33). Lévinas di-lo de outra forma: "O sofrimento físico, em todos os seus níveis, é uma impossibilidade de se desligar do instante da existência. É a própria irremissibilidade do ser. O conteúdo do sofrimento confunde-se com a impossibilidade de se desligar do sofrimento. (...) há no sofrimento uma ausência de qualquer refúgio. E o facto de estar directamente exposto ao ser. E o facto da impossibilidade de fugir e de recuar. Toda a acuidade do sofrimento está nesta impossibilidade de recuo. É o facto de estar encurralado na vida e no ser" (34). Há um tempo de sideração, de paralisia, há um tempo do trabalho do luto em que aprendemos a desfazer-nos dos sonhos através da revolta, da depressão, etc. O tempo enfim, que é o do trabalho de Páscoa: do excesso do mal, ao silêncio, à esperança. Sem a reinterpretação total da saga da incarnação sob a ordem do pathos – da paixão, que foi antes de mais um paskhein, um sofrer -, e sem a resssurreição nada se compreenderá do que é a imagem (Mondzain, 2003: 136). “A morte passa”, é isso que quer dizer a páscoa . O Evangelho oferece-se à leitura como Cristo se ofereceu ao mundo. Entrega-se nas nossas mãos com a sua pobre linguagem crucificada. O quinto evangelho será sempre a palavra que falta, a lacuna a preencher como acontecimento e auto-revelação da vida a si própria a partir de uma palavra nunca ouvida, nunca dita. Entre o dito e o dizer.