JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

 

O quinto evangelho
a palavra que falta

 

O triunfo do livro

S. Agostinho distingue, no começo de A Doutrina Cristã entre os suportes da mensagem e a mensagem: “Há coisas que são objecto de fruição, outras objectos de uso, e algumas para fruir e usar. Aquelas com que fruímos tornam-nos felizes; aquelas que são feitas para o uso ajudam-nos na nossa marcha para a felicidade e servem-nos como de apoio para poder conseguir e unir-nos àquelas que nos fazem felizes. Quanto a nós que fruímos e que utilizamos, encontramo-nos colocados entre umas e outras; porém se queremos fruir das que são feitas para nosso uso, logo a nossa corrida é comprometida e por vezes desviada, de tal modo que, atados pelo amor das coisas inferiores, atrasamo-nos e afastamo-nos daquelas que devíamos fruir uma vez obtidas” (8). A fruição está do lado do corpo, enquanto o livro está do lado do uso. Só o corpo é chamado à fruição mas não sabê-lo sem o livro que o anuncia.

Nos séculos XIII e XIV, menos de uma em cada dez sabe ler na Europa. A revolução de Gutenberg é uma das inovações que marcam a passagem do Idade Média para os tempos modernos. No fim da Idade Média aqueles que sabem ler contam-se por algumas dezenas de milhares. São clérigos, religiosos, legistas. No século XVII, o número de leitores é já da ordem dos milhões. O domínio das técnicas de comunicação permite a difusão das competências e da informação. Veneza, Paris, Nápoles, Lião, Cracóvia, Lovaina, imprimem o seu primeiro livro no curso do decénio 1470-1480. A Reforma trouxe um grande impulso à invenção da imprensa: bíblias, livros de orações em língua nacional, ateliers propagam-se por todo o lado. Cinco séculos depois da China, as duas Alemanhas tornam-se o berço da imprensa. Ao livro de propaganda luteriana e depois calvinista responde o livro de contra-propaganda católica. Mais de metade dos livros impressos nos anos 1517-1525 tratam de assuntos religiosos. Será o livro, face à palavra institucional das autoridades civis e religiosas um instrumento caído do céu? O livro circula e fica. A denúncia feita por Lutero do monopólio clerical da vida religiosa, a que opõe o “sacerdócio universal, acentuará a oposição entre uma Europa em que o livro é libertador e aquela em que se torna logo suspeito, em virtude da sua capacidade de subversão que lhe atribuem os adversários de Roma (9).

.