Não posso explicar como fui parar na plataforma. Talvez tenha sido levado por Ned Land. Porém, o fato é que eu respirava, absorvia o ar vivificante do mar. Os que por infelicidade tenham sido privados de alimento durante muito tempo, não podem depois lançar-se sobre o primeiro suprimento que surja. Nós, ao contrário, não precisávamos nos poupar; podíamos respirar a plenos pulmões aquela brisa que nos proporcionava um prazer indescritível.
A lembrança de nossa prisão entre os gelos ia aos poucos se apagando da memória. Só pensávamos no futuro. O capitão Nemo não havia tornado a aparecer no salão, nem na plataforma. Era evidente que rumávamos para o norte, pela rota do Atlântico.
No dia 1° de abril, quando o Nautilus subiu à superfície, poucos minutos antes do meio-dia, divisamos terra na direção oeste. Era a Terra do Fogo, que recebeu esse nome por seus descobridores terem visto muitas fumaradas que se elevavam das cabanas dos índios. A costa pareceu-me baixa, porém ao longe se destacavam altas montanhas, entre as quais se distinguia o pico Sarmento, com dois mil e sessenta metros acima do nível do mar; um bloco piçarroso em forma de pirâmide, de vértice muito agudo, que estando com ou sem nuvens, indica o bom e o mau tempo, seguindo Ned Land.
Na ocasião, esse pico estava bem destacado ao fundo, no céu. Era um prenúncio de bom tempo.
Tendo o submarino novamente submergido, aproximou-se da costa e a bordejou a poucas milhas de distância. Pelo mirante do salão vi grandes cipós e algas, iguais aos que se desenvolviam nos mares polares. Seus filamentos lisos e viscosos chegam a medir até trezentos metros de comprimento, formando verdadeiros cabos, mais grossos do que um dedo, muito mais resistentes, servindo às vezes para amarras de navios. Outras plantas, conhecidas pelo nome de velp, com folhas de quatro pés de largura, atapetavam o fundo do mar. Servia de ninho e de alimento a milhares de crustáceos e sépias. Nesse loca, as focas e as lontras entregavam-se a notáveis banquetes, misturando a carne de peixe com as verduras marinhas como fazem os ingleses.
O Nautilus atravessou com espantosa velocidade sobre aquele fundo de mar fértil e luxuriante. Ao anoitecer, aproximou-se das ilhas Malvinas, cujos picos escarpados pude ver no dia seguinte. Nossas redes recolheram magníficos exemplares de algas e, principalmente, de certos tipos azeitonados, cujas raízes estavam repletas de amêijoas, que são as melhores do mundo.
Quando os últimos cumes das Malvinas desapareceram por trás do horizonte, o Nautilus submergiu a cerca de vinte e cinco metros e prosseguiu boderjando a costa americana. O capitão Nemo não aparecera.
Até o dia 3 de abril, não saímos das paragens da Patagônia, tanto imersos como submersos. O submarino transpôs o amplo estuário formado pela desembocadura do Prata, chegando no dia 4 à altura do Uruguai, porém a cinqüenta milha da costa. Havíamos percorrido dezesseis mil léguas desde os mares do Japão.
Por volta das onze horas da manhã, atravessamos o trópico de Capricórnio pelo meridiano trinta e sete e passamos em frente ao cabo Frio. Navegávamos a grande velocidade. Nenhum peixe ou ave, por mais rápidos que fossem teriam podido nos seguir, e por isso as particularidades naturais daqueles mares não puderam ser observadas.
Essa velocidade foi mantida durante vários dias, e na tarde do dia 9 de abril, avistamos o ponto mais oriental da América do Sul, formado pelo cabo de São Roque. Porém, o Nautilus afastou- se ainda mais da costa, passando a maiores profundidades em um vale submarino entre esse cabo e a Serra Leoa, na costa africana. Tal vale se bifurca na altura das Antilhas, terminando ao norte em uma enorme depressão de nove mil metros. Nesse local, no perfil geológico do oceano, consta uma escarpa de seus quilômetros, íngreme, e na altura das ilhas de Cabo Verde existe uma muralha também importante, que completa assim o continente submerso da Atlântida. O fundo dessa imensa planície aparece sulcado de várias montanhas, que conferem um aspecto pitoresco àquelas paragens submarinas.
No dia 11 de abril, estávamos na entrada do rio Amazonas, um vasto estuário, cujo caudal é tão grande que afasta o mar em um raio de várias léguas.
Tínhamos atravessado o Equador. A vinte milhas para o oeste, localizavam-se as Guianas, território francês, no qual teríamos encontrado fácil acolhida; porém, a brisa era muito forte e as ondas agitadas não teriam permitido a passagem de um frágil barco. O canadense deve ter percebido isso, pois não fez a menor alusão à fuga em nenhum momento.
Durante os dias 11 e 12 de abril, o submarino permaneceu na superfície. Uma das redes trouxe uma espécie de raia muito achatada, que se não tivesse cauda, seria um disco perfeito, pesando cerca de vinte quilos. Era branca por baixo, vermelha em cima, com grandes manchas redondas azul-escoras e de pele muito lisa, terminando em pequena barbatana bilobada. Estendida sobre a plataforma, agitou-se em movimentos convulsivos com tanta força, que se Conselho não tivesse se lançado sobre ela, teria caído no mar.
No dia seguinte, 12 de abril, o Nautilus se aproximou da costa holandesa, próximo à desembocadura do Maroni. Nesse local, havia vários bandos de manatins, que pertencem como o dugongo à ordem dos sirenídeos. Esses belos animais, pacíficos e inofensivos, de seis a sete metros de comprimento, deviam pesar, pelo menos, quatro mil quilos.
Disse a Ned Land e Conselho que a natureza previdente havia atribuído um papel importante a esses mamíferos. De fato, são como as focas, incumbidos de pastar nas pradarias submarinas, destruindo assim os ajuntamentos de plantas que obstruem as desembocaduras dos rios tropicais.
As redes trouxeram àquele dia um certo número de curiosos peixes, cuja cabeça terminava em uma placa oval de margem carnosa. Eram equidnas, da terceira família dos melacopterígeos transversais, móveis entre as quais o animal pode criar vácuo, o que lhe permite aderir aos objetos como se fosse uma ventosa.
Naquele local, dormiam sobre a superfície das águas várias tartarugas marinhas. Teria sido difícil capturar esses apetitosos répteis, uma vez que o menor ruído os acorda e a sua sólida carapaça é imune ao arpão. Porém, os equidnas deveriam efetuar a captura delas com segurança. De fato, esse animal é um verdadeiro anzol vivo, que auxilia muito pescadores de vara e anzol.
Os marinheiros ligaram a cauda dos peixes uns anéis com largura suficiente para não estorvar os movimentos desses seres aquáticos. As equidnas, lançadas ao mar, começaram a sua tarefa, indo fixar-se no peito das tartarugas. Foram depois içadas com as tartarugas.
Desse modo, pescaram-se vários exemplares com um metro de largura, pesando duzentos quilos. Sua carapaça conferia-lhes bom aspecto. Além disso, eram excelentes do ponto de visa alimentar.
Com essa pesca, terminou nossa estada nas paragens do Amazonas.
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