Um minuto antes de receber a carta do Ministro da Marinha, pensava tanto em empreender a caça ao monstro marinho como fazer uma viagem ao Canadá. Porém, após a leitura da carta, convenci-me de que minha verdadeira missão era caçar o unicórnio, para exterminar assim esse terrível animal, que deixava a humanidade apreensiva.
Resolvi aceitar o convite, apesar de estar cansado de minhas longas viagens. Meu maior desejo era regressar à França, rever meus amigos e recolher-me ao meu modesto pavilhão no Jardim Botânico, cercado de minhas preciosas coleções. Esqueci-me disso tudo após ler a carta do ministro. Aceitei, sem titubear, a oferta do governo norte-americano.
Para ser franco, todos os caminhos conduzem à Europa - pensei. Além disso, pode ser que o unicórnio seja tão manso a ponto de se aproximar das costas da França. Por uma deferência especial, talvez se deixe pescar em mares europeus, e não aceitarei menos de meio metro de suas presas de marfim para expô-las no Museu.
- Conselho! - gritei meio impaciente.
Devo explicar que Conselho era meu criado. Um moço muito serviçal que me acompanhava sempre: um flamengo todo ataviado, a quem dedicava grande afeto, que me era retribuído com juros. Conselho era um indivíduo fleumático por natureza, metódico por princípio, cuidadoso por hábito, pouco impressionável, muito esperto, apto a tudo e, apesar de seu nome, pouco inclinado a interferir em assuntos alheios.
Em virtude da convivência com meus colegas, Conselho chegou a ser um secretário perfeito para minhas classificações de História Natural; conhecia todos os ramos, grupos, classes, subclasses, ordens, famílias, gêneros, subgêneros, espécies e variedades.Porém, seu conhecimento não passava disso. Sabia classificar, mas não se aprofundava no saber. Era uma rotina sem método; creio que não seria capaz de distinguir um cachalote de uma baleia. De qualquer maneira, era uma pessoa excelente e insubstituível.
Conselho estava a meu serviço há dez anos. Nunca reclamou de uma viagem ser muito demorada ou cansativa; nunca se opôs a levar o equipamento para qualquer lugar, quer se tratasse da China ou do Congo. Aceitava tudo sem fazer perguntas. Além disso, desfrutava boa saúde; possuía uma forte musculatura e uma calma contagiante.
Ele havia completado trinta anos, havendo uma diferença de dez anos entre nossas idades. Acho que essa é uma boa maneira de dizer que eu possuía quarenta anos.
Seja como for não existe nada perfeito e Conselho tinha um defeito: falava comigo com demasiada cerimônia, e seu exagero chegava a me exasperar.
- Conselho! - tornei a chamar, começando febrilmente os preparativos de viagem.
- O senhor me chamou? - perguntou ele ao entrar.
- Sim. Temos que nos preparar. Zarpamos dentro de duas horas.
- Como o senhor quiser - concordou calmamente.
- Convém apressar-se. Guarde em minha mala todos os meus pertences, roupa branca e calções. Entendeu? Mas depressa!
- E as suas coleções?
- Mais tarde cuidaremos delas.
- Mas, como, meu senhor? O que faremos com os arquitérios, os hiracotérios, oreodontes, queropótamos e as outras conchas e esqueletos...?
- Não se preocupe. Eles ficarão guardados no hotel.
- Mas e a sua babirussa?
- Não pense nela. Será alimentada em nossa ausência. Além disso, darei ordens para que enviem todo o nosso equipamento para a França.
- Então não voltaremos a Paris? - perguntou Conselho.
- Sim... É claro que voltaremos - respondi de modo evasivo. - Antes, porém, daremos uma volta.
- Como o senhor quiser.
- Ah! Ela será pequena. Embarcaremos inicialmente na fragata Abraham Lincoln.
- Como o senhor desejar - respondeu Conselho tranqüilamente.
- Bem, você já sabe..., trata-se do monstro. Sim, do famoso narval. Vamos exterminá-lo de uma vez por todas. Como você sabe, eu sou o autor do livro Mistérios das profundezas submarinas, e não poderia recusar a incumbência de acompanhar o comandante Farragut. Trata-se de uma missão gloriosa, embora não esteja isenta de perigos... Cumpriremos nosso dever, Conselho. Além disso, o comandante Farragut sabe o que faz.
- Farei o mesmo que o senhor fizer - afirmou o criado.
- Pense bem. Não quero que se iluda. Trata-se de uma viagem muito perigosa. Talvez não voltemos com vida.
- Como o senhor quiser. Irei onde o senhor for.
Quinze minutos depois, o equipamento já estava pronto. Conselho fez as malas num abrir e fechar de olhos e eu tinha a certeza de que não faltava nada, pois o rapaz era muito inteligente e classificava as camisas e as demais peças de roupa, com a mesma perfeição com que tratava das aves e dos mamíferos.
O elevador do hotel levou-nos ao grande vestíbulo da sobreloja. Desci os poucos degraus que conduziam ao andar térreo, paguei a conta, dei ordem para enviarem a Paris meu volume de animais empalhados e plantas secas, deixei uma verba para o tratamento da babirussa e, acompanhado por Conselho, peguei um carro.
O veículo passou pela Broadway até a praça da União, seguiu pela Quarta Avenida, até a sua junção com a rua do Bowery, entrou na Katrin e parou no ancoradouro 34. Desse local, uma balsa nos transportou até o Brooklyn, o grande bairro de Nova York situado na margem esquerda do East River. Poucos minutos depois chegamos ao cais, onde se encontrava a fragata Abraham Lincoln, soltando uma fumaça negra pelas chaminés.
Nossa bagagem foi levada imediatamente par bordo. Um dos marinheiros levou-me ao tombadilho, onde encontrei um oficial de aspecto agradável que me estendeu a mão:
-- O senhor é Pedro Aronnax? - perguntou ele.
-- Sim, um seu criado - respondi - E o senhor é o comandante Farragut?
-- Às suas ordens, professor. Seja bem vindo a bordo. Seu camarote já está pronto.
Cumprimentei o comandante e ele, por sua vez, deu ordem para que um marinheiro me acompanhasse até o meu camarote.
A fragata Abraham Lincoln tinha sido escolhida a propósito para a sua nova tarefa. Era um navio muito rápido e provido de toda espécie de aparelhos de calefação que permitiam aumentar em sete atmosferas a pressão das caldeiras. As instalações internar eram perfeitas. Fiquei muito satisfeito com meu camarote localizado perto da popa e muito próximo da sala dos oficiais.
-- Acho que vamos ficar bem instalados - disse ao meu criado.
-- Sim, senhor, como pardais em ninhos de águias.
Deixei Conselho ocupado com a arrumação de nossa bagagem e subi até o convés para observar os preparativos de viagem.
Naquele momento, o comandante Farragut dava ordens para soltar as últimas amarras que retinham o Abraham Lincoln ao cais do Brooklyn. Bastaria quinze minutos de atraso para que a fragata partisse sem mim, e nesse caso, teria perdido a oportunidade de uma viagem extraordinária, cuja descrição verdadeira não será aceita por muitos.
O comandante Farragut, após receber ordens para zarpar, não quis ficar nem mais um dia, ou mesmo uma hora. Queria seguir depressa para o local onde havia sido mencionada a presença do estranho animal. O comandante chamou o maquinista.
-- Há pressão suficiente? - perguntou.
-- Sim, meu comandante. Está tudo pronto - respondeu o maquinista.
-- Pois, então, podemos partir! - ordenou Farragut.
Ao receberem aquela ordem, transmitida para a sala das máquinas, por meio de aparelhos de ar comprimido, os marinheiros puseram em funcionamento a roda de partida. O vapor silvou ao passar pelos cilindros entreabertos; os grossos êmbolos horizontais gemeram e impulsionaram as bielas, as pás das hélices tocaram as águas cada vez mais depressa e a Abraham Lincoln avançou majestosa entre as centenas de lanchas e pequenos navios, repletos de expectadores, que a escoltavam.
No cais do Brooklyn e em toda a porção de Nova York que rodeia o Hudson havia inúmeros curiosos. Ressoaram sucessivamente três hurras proferidos por quinhentas mil pessoas. Sobre aquela massa compacta humana, agitavam-se milhares de lenços saudando a Abraham Lincoln, que ia empreender a tarefa de exterminar o famoso narval, terror dos mares.
A fragata seguiu ao largo de Nova Jersey e passou entre os fortes que a saudaram com seus canhões de grosso calibre. A Abraham Lincoln respondeu à saudação içando e arriando três vezes o pavilhão norte-americano, cujas estrelas brilhavam no mastro de mezena.
Em seguida, mudou logo de rumo e seguiu o canal balisado, que se curva na baia interior, formada pela ponta de Sandy Hook. Esbarrou naquela língua arenosa, onde se havia reunido milhares de espectadores para saudar o navio.
O cortejo de pequenos navios e lanchas prosseguiu escoltando a fragata e não a deixou até a altura do farol, cujas duas luzes assinalam a entrada do porto de Nova York.
Eram quinze horas. O prático tomou seu barco e embarcou na pequena escuna, que o esperava a sotavento. Os fornos foram ativados; a hélice bateu nas ondas com mais força; a fragata bordejou Long Island; e as oito da noite, depois de haver deixado a noroeste os faróis de Fire Island, seguiu a todo vapor, sob as obscuras águas do Atlântico. |