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OS LIVROS DA WALKYRIA
JÚLIO VERNE
VINTE MIL LÉGUAS SUBMARINAS

CAPÍTULO IV
NED LAND, O ARPOADOR

 

O comandante da fragata Abraham Lincoln era um bom marinheiro, estava habilitado para comandar tal expedição. Ele e seu navio formavam uma unidade. Quanto ao cetáceo, ele não tinha a menor dúvida de sua existência e não permitia que ninguém a bordo duvidasse disso. Assim como certas mulheres ingênuas que acreditavam no Leviatã, ele acreditava no monstro mais por fé do que por convicção. Tinha jurado eliminá-lo e nenhum obstáculo seria suficiente para fazê-lo desistir do seu intento.

Os oficiais a bordo compartilhavam da fé do comandante. Em suas conversas não falavam de outra coisa. Mais de um deles chegou a prestar guarda voluntária nos mastros de joanete para ver se conseguiam ser os primeiros a localizar o animal. Os marinheiros estavam também impacientes, e, apesar do sol, a mastreação estava repleta deles, os quais queimavam a planta dos pés nas tábuas do convés, que os impedia de ficarem quietos. E, apesar disso, a Abraham Lincoln não tinha chegado ainda às águas suspeitas do Pacífico.

Toda tripulação não desejava outra coisa senão deparar-se com o monstro. Para lhes servir de estímulo, o comandante Farragut havia prometido a quantia de dois mil dólares ao primeiro que constatasse a presença do animal. Não é preciso dizer que todos estavam atentos, estimulados pela oferta de tão grande prêmio.

Quanto a mim, não ficava atrás em minhas observações. O único que discordava de todos era Conselho. Desejava apenas servir-me e não participava do entusiasmo geral.

Mencionei anteriormente que o comandante Farragut tinha provido o navio de toda espécie de instrumentos próprios para a pesca do gigantesco cetáceo. Um baleeiro não estaria melhor armado que a Abraham Lincoln. Possuía todos os apetrechos conhecidos, desde o arpão manual até as flechas dentadas, armas de fogo e balas explosivas de grande calibre.

No castelo da proa havia um canhão aperfeiçoado, que era carregado pela culatra, de cano grosso e calibre fino. Esse modelo iria participar da Exposição Universal de 1867. O canhão era de procedência norte-americana e disparava facilmente um projétil cônico pesando quatro quilos a uma distância média de dezesseis quilômetros.

Como disse, a Abraham Lincoln  não faltavam meios de destruição, porém, além disso, tinha algo melhor: contava com Ned Land, o rei dos arpoadores.

Ned Land era natural do Canadá e possuía uma notável habilidade manual, sem rival em sua profissão. Era hábil e frio, audaz e astuto, e uma baleia devia ser muito maliciosa para fugir do seu arpão.

Esse arpoador tinha cerca de quarenta anos de idade; era de estatura elevada e compleição robusta. Era sério e pouco comunicativo, violento e exaltado quando o contrariavam. Seu semblante chamava a atenção, e a firmeza de seu olhar realçava-lhe a fisionomia.

Penso que o comandante Farragut fez uma boa escolha. Ned Land valia pela tripulação toda no que se refere à sua habilidade e força com o arpão.

Aos poucos Ned Land habituou-se a falar comigo, e eu gostava de ouvir a narração de suas aventuras nos mares polares. Sua descrição adquiria às vezes um tom poético, e não cansava de ouvi-lo. Parecia, em certas ocasiões, um Homero canadense cantando a ilíada das regiões boreais.

Qual era a opinião de Ned sobre o monstro? Devo dizer que ele não acreditava na existência dessa criatura e,  nesse ponto, discordava da crença geral sustentada pela tripulação, com exceção de Conselho, o qual, como mencionei, não se interessava pelo assunto.

O arpoador evitava falar de tudo que se referisse a esse animal. Certo dia, disse a ele:

- Como é possível Ned, que não esteja convencido da existência do cetáceo que estamos perseguindo? Tem, por acaso, motivos para duvidar?

O arpoador encarou-me por alguns instantes antes de responder. Finalmente disse:

- Talvez, sr. Arnnoux.

- Mas você - argumentei - que é um baleeiro profissional, não deveria duvidar da existência desses mamíferos marinhos.

- Nesse ponto o senhor se engana, professor - replicou Ned.

- Podemos crer em cometas e monstros antidiluvianos, porém os cientistas não podem aceitar tais embustes. Algo semelhante acontece com os baleeiros. Tenho perseguido em minha vida muitos cetáceos, porém devo dizer-lhe que, por mais fortes e bem dotados que sejam, não teriam conseguido abrir a couraça de um navio, como quiseram que acreditássemos.

- Não obstante, existem embarcações atravessadas de um lado a outro pelos dentes de um narval.

- Talvez fossem navios de madeira - respondeu Ned - embora não tenha certeza. Portanto, a não ser que me provem o contrário, nego que as baleias, os unicórnios, os cachalotes e outros animais possam causar tais avarias.

- O senhor concordará comigo - disse-lhe - que se tal animal existe, se é encontrado em camadas líquidas, situadas a várias milhas abaixo da superfície da água, terá obrigatoriamente um organismo de grande resistência, superior a tudo que se possa imaginar.

- E porque terá que ser assim? - perguntou Ned.

- Não duvide, amigo. Porque precisa de uma força incalculável para poder manter-se nas camadas profundas e suportar a pressão.

- Será verdade? - questionou Ned, piscando com um olho.

- Sim, e vou lhe provar com alguns algarismos.

- Oh, os números! Não vai me convencer por meio deles...

- Ouça, Ned. A matemática nunca falha. Suponhamos que a pressão de uma atmosfera é representada pela pressão de uma coluna de água com trinta e dois pés de altura. Na realidade, essa altura seria menor, pois se trata de água salgada, cuja densidade é superior à da água doce. Pois bem: se uma pessoa submerge, seu corpo poderá suportar uma pressão de tantas atmosferas quantas sejam as vezes que se repitam trinta e dois pés, ou seja, um quilograma para cada centímetro quadrado da superfície daquele. Daí se conclui que a trezentos e vinte pés, tal pressão é de dez atmosferas, a três mil e duzentos pés, é de cem; e de mil atmosferas, a trinta e dois mil pés, ou seja, duas léguas e meia, mais ou menos. Isso quer dizer que se uma pessoa chegasse a essa profundidade no mar, cada centímetro quadrado de superfície do seu corpo sofreria uma pressão de mil quilos. Amigo Ned, você sabe quantos centímetros quadrados de superfície tem seu corpo?

- Não, professor. Não sei.

- Cerca de dezessete mil.

- Caramba! Tantos assim?

- Sim, amigo Ned. E como a pressão atmosférica é algo superior ao peso de um quilo por centímetro quadrado, esses dezessete mil centímetros quadrados resistem a uma pressão de dezessete mil, quinhentos e sessenta e oito quilogramas.

- Será possível? E eu nem noto isso...

- É assim mesmo. E se tal pressão não o esmaga é porque o ar penetra no interior do seu organismo com uma pressão igual. Daí resulta um equilíbrio perfeito entre a impulsão interna e externa, que se neutralizam e permitem que sejam suportadas sem esforço. Porém, na água, sucede algo diferente.

- Estou entendendo professor - replicou Ned. Isso é devido a água que me cerca, porém que não penetra em mim.

- De fato. Portanto, a trinta e dois pés abaixo da superfície do mar, você sofreria uma pressão de dezesseis mil, quinhentos e sessenta e oito quilos; a trezentos e vinte pés, dez vezes mais essa pressão, e, finalmente, a trinta e dois mil, mil vezes esta, ou seja, dezessete milhões, quinhentos e sessenta e oito mil quilos, ou seja, você ficaria esmagado como se fosse tirado do meio de uma prensa hidráulica.

- Caramba! Parece impossível...

- Sim, meu caro amigo. Se existem vertebrados de algumas centenas de metros de comprimento, que habitam as profundezas marítimas, deve-se supor que terão de suportar uma pressão de milhares de milhões, pois possuem uma superfície de milhões de centímetros quadrados. Não é preciso dizer a resistência que deverá ter o seu esqueleto e se organismo para poder suportar tais pressões. Não acha que estou certo?

- Concordo com o senhor. Tais animais devem estar obrigatoriamente cobertos com chapas de aço de oito polegadas, como as fragatas.

- Realmente. E agora entenda as catástrofes que pode causar um desses animais, se for lançado a uma velocidade comparável à de um trem expresso contra o casco de um navio.

- Sim, de fato...é possível - respondeu o canadense, esmorecido pela minha argumentação, embora sem querer alterar totalmente suas convicções.

- Está bem. Concorda comigo? - perguntei a Ned.

- Aceito muitas das explicações que você me deu. Por exemplo, que esses animais devem possuir uma força colossal. Quanto à isso não há dúvida, mas é preciso que existam...

- Mas, se eles não existem, meu teimoso amigo, então como explicar o acidente com o Escócia?

- Poderia ser... - e Ned não se atreveu a concluir a frase.

- Continue, amigo. Poderia ser o que?

- Que tudo isso fosse mentira.  

Porém essa resposta provava apenas a teimosia de Ned Land, que não queria dar-se por vencido. Quanto a mim, o acidente sofrido pelo Escócia era a maior prova da existência do monstro. Não insisti mais e acatei a opinião de meu amigo. Além disso, como convencê-lo de seu equívoco? No meu entender, o animal que provocou a catástrofe no Escócia pertencia ao ramos dos vertebrados, à classe dos mamíferos, ao grupo dos pisciformes e à ordem dos cetáceos.