Na época em que ocorreram esses fatos, eu regressava de uma expedição científica no Nebraska, nos Estados Unidos. O governo francês havia me vinculado à expedição, como professor suplente do Museu de História Natural de Paris. Permaneci durante seis meses no Nebraska e cheguei a Nova York em fins de março. Enquanto isso, dedicava-me a classificar e ordenar minhas riquezas mineralógicas, botânicas e zoológicas. Quando estava me dedicando a esse trabalho, houve o incidente com o Escócia. Interessei-me pelo assunto e li todos os jornais. Não posso negar que esse mistério me empolgava, embora não fosse possível emitir uma opinião a respeito dele.
Quando cheguei a Nova York, continuava apaixonado pelo assunto. Ninguém acreditava mais na hipótese de uma ilha flutuante e na de um rochedo inacessível. Restavam duas soluções para o problema; uns acreditavam tratar-se de um monstro de grande força e outros achavam que devia ser um submarino de grande potência. Porém, essa última opinião era absurda, sendo impossível que uma pessoa tivesse à disposição tal aparelho. Como teria conseguido construí-lo e de que maneira teria mantido o segredo acerca de sua construção? Apenas o governo de um país poderia possuir uma máquina assim sofisticada. Porém, esta hipótese foi descartada quando todas as nações negaram essa possibilidade. Ninguém sabia nada a respeito dessa suposta máquina.
O monstro tornou-se novamente assunto em voga entre o público, apesar de ser alvo das constantes zombarias da imprensa humorística.
Assim que cheguei a Nova York, muitas pessoas me indagaram a respeito do fenômeno. Devemos ter em mente que eu havia publicado na França uma obra, em dois volumes, intitulada Mistérios das profundezas submarinas. Este livro era muito apreciado pelos cientistas que me consideravam um especialista na matéria. Todos me pediam opinião sobre o monstro. Evitei dar quaisquer explicações; mas, por fim, tive que ceder. O jornal New York Herald pediu-me que escrevesse um artigo. A seguir, apresento alguns trechos finais, nos quais exprimo os meus pontos de vista:
"Não há dúvidas de que depois de ter abandonado as demais hipóteses, temos que admitir, com lógica, a existência de um animal marinho de grande força”.
"As grandes profundidades oceânicas nos são totalmente desconhecidas. As sondas não conseguiram alcançá-las. O que sucede nesses abismos inacessíveis? Quais os seres que vivem e habitam os locais que ficam a doze ou quinze milhas abaixo da superfície do mar? Como serão esses animais? Ninguém imagina”.
"Se temos de aceitar a existência de um animal marinho, pertencentes a uma espécie desconhecida, diria que se trata de um unicórnio gigantesco”.
O narval comum alcança, às vezes, o tamanho de sessenta pés. Se aumentarmos cinco ou dez vezes essa dimensão, atribuindo-lhe uma força proporcional ao seu tamanho e ampliando o seu armamento ofensivo, teremos um animal com as proporções determinadas pelos oficiais do navio Shannon. ““.
"De fato, o narval está armado com uma espécie de espada de marfim. De acordo com os estudantes de História Natural, ele possui uma alabarda. Alguns de seus dentes já foram encontrados no corpo das baleias, as quais são atacadas sempre com êxito pelo narval. Outros dentes foram extraídos das carenas dos navios, atravessadas por aqueles. Devo mencionar que o Museu da Faculdade de Medicina de Paris conserva um desses dentes, que mede nada menos que dois metros e vinte e cinco centímetros de comprimento e quarenta e oito de largura, em sua parte superior”.
"Assim, pois, suponhamos uma arma dez vezes mais potente e um monstro dez vezes mais forte. Lancemo-lo a uma velocidade de vinte milhas por hora e multipliquemos o volume pelo quadrado da velocidade. Com tudo isso, conseguiremos um choque suficiente para produzir uma catástrofe”.
Portanto, enquanto não existirem provas dignas de fé, creio que o que sucede se deva única e exclusivamente a um unicórnio marinho, de grandes proporções. Esse monstro possui, em lugar de uma alabarda, um esporão como os navios encouraçados e, além disso, a mesma força motriz daqueles."
"Dessa maneira seria explicado tudo o que sucedeu, a não ser que tenha sido uma ilusão, o que não deixa de ser provável”.
Neste último parágrafo queria, de certa forma, salvaguardar minha reputação profissional, caso tudo isso não passasse de uma visão ilusória. Era como conseguir uma justificativa, embora no íntimo estivesse convencido da existência do monstro. Porém, quando nos dirigimos a um grande público, e o que se diz fica impresso no papel, todo o cuidado é pouco.
O artigo que publiquei no New York Harold, foi muito debatido e comentado, o que me conferiu uma certa notoriedade. A minha tese de que o animal poderia ser de grande tamanho dava asas à imaginação popular. A mente humana é muito inclinada a aceitar essa notável concepção de seres sobrenaturais e o mar é o mais apropriado para formar tais concepções. As massas líquidas transportam as maiores espécies conhecidas de mamíferos e talvez escondam, em seu interior, moluscos de grande tamanho e crustáceos capazes de amedrontar os indivíduos mais corajosos. Tudo isso era provável. Por que o mar deixaria de conservar certos vestígios dos mistérios de épocas remotas?
Contudo, estou sendo levado por ilusões que o tempo poderá encarregar-se de contradizer. Não pensemos mais nelas...Por que não haveria de esconder as últimas variedades dessas espécies?
Assim como muitos leitores interpretaram o meu artigo sob o ponto de vista puramente científico, outros o visualizaram sob um aspecto materialista ou prático, e acreditaram na necessidade de eliminar do oceano um inimigo extremamente nocivo, para assim assegurar as comunicações marítimas. Os jornais industriais e comerciais focalizaram a questão sob esse ponto de vista. A Shipping and Mercantile Gazette, o Lloyd, o Paquebot, a Revue Maritime et Coloniale, publicações vinculada às companhias de seguros, aceitaram unanimemente essa tese. O monstro deveria ser perseguido e exterminado. Os primeiros a organizar essa expedição punitiva foram os Estados Unidos. Fizeram-se, a seguir, preparativos em Nova York, e dentro de pouco tempo uma fragata com esporão, a Abraham Lincon, estava pronta para zarpar. Todavia, durante todo esse tempo, o monstro não deu sinais de vida. Ninguém ouviu falar nele durante esses dois meses. Tinha-se a impressão de que ele soubera que ia ser caçado. Houve até um humorista que declarou que o monstro havia visto o telegrama, o que fez com que se precavesse.
A fragata comandada pelo capitão Farragut não tinha, assim, rumo preestabelecido. Crescia a impaciência em virtude da inatividade forçada; e finalmente, no dia 02 de julho, soubera-se que o Tampico, navio na linha São Francisco - Shangai, havia visto novamente o animal, há aproximadamente três semanas, nas águas do Pacifico norte.
O artigo que publiquei no ia de esconder as últimas variedades dessas espécies?
A noticia causou profunda comoção. O capitão Farragut recebe ordem de partir imediatamente. Tudo já estava preparado: víveres e carvão em quantidade suficiente, e os tripulantes em seus postos. O comandante tinha apenas que dar as ordens necessárias: acender as caldeiras, dar pressão e soltar as amarras. Não era admitido o menor atraso. O comandante Ferragut, que desejava partir, deu a ordem.
Três horas antes recebi uma carta, redigida nos seguintes termos:
"Sr. Pedro Aronnax, professor do Museu de Paris"
Prezado Senhor,
Se não lhe causar nenhum transtorno, poderá unir-se à expedição da fragata Abraham Lincoln. O governo dos Estados Unidos gostaria de ver a França representada nessa expedição por um cientista tão famoso e competente. O comandante Farragut recebeu instruções a respeito e lhe reservou o camarote.
Saúda-o, cordialmente,
J.B.Hobson
Ministro da Marinha